"La dificultad no debe ser un motivo para desistir sino un estímulo para continuar"

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A casa dos espíritos - Isabel Allende

A casa dos espíritos Isabel Allende Capítulo I Rosa, a Bela «Barrabás chegou à família por via marítima», anotou a menina Clara com a sua delicada caligrafia. Já nessa altura tinha o hábito de escrever as coisas importantes e, mais tarde, quando ficou muda, escrevia também as trivialidades, sem suspeitar que cinquenta anos depois os seus cadernos me iriam servir para resgatar a memória do passado e sobreviver ao meu próprio espanto. O dia em que chegou Barrabás era Quinta-Feira Santa. Vinha numa jaula indigna, coberto dos próprios excrementos e de urina, com um olhar extraviado de preso miserável e indefeso, adivinhando-se, porém, pelo porte real da cabeça e pelo tamanho do esqueleto o gigante lendário que veio a ser. Era um dia aborrecido e outonal, que em nada fazia imaginar os acontecimentos que a menina registou para serem recordados e que ocorreram durante a missa das doze, na paróquia de San Sebastián, à qual assistiu com toda a família. Em sinal de luto, os santos estavam tapados com panos roxos que as beatas sacudiam anualmente do arcaz da sacristia e, por baixo dos lençóis de luto, a corte celestial parecia um amontoado de móveis esperando mudança, sem que as velas, o incenso ou os gemidos do órgão pudessem contrastar com esse lamentável efeito. Erguiam-se vultos ameaçadores no lugar dos santos de corpo inteiro, com rostos idênticos, de expressão enjoada, com complicadas cabeleiras de cabelo de morto, rubis, pérolas, esmeraldas de vidro pintado e vestuário de nobres florentinos. O único favorecido com o loto era o padroeiro da igreja, São Sebastião, porque, na Semana Santa, reservava para os fiéis o espectáculo do seu corpo torcido numa posição indecente, atravessado por meia dúzia de flechas, escorrendo sangue e lágrimas, como um homossexual sofredor, cujas chagas, milagrosamente frescas graças ao pincel do padre Restrepo, faziam Clara estremecer de nojo. Era uma longa semana de penitência e jejum, não se jogava às cartas, não se tocava música que incitasse à luxúria e ao esquecimento, observava-se, na medida do possível, a maior tristeza e castidade, apesar de, justamente nesses dias, o aguilhão do demónio tentar com maior insistência a débil carne católica. O jejum consistia em tenros pastéis de massa folhada, saborosos guisados de legumes, fofas tortilhas e grandes queijos trazidos do campo, com que as famílias recordavam a Paixão do Senhor, tendo o cuidado de não provar o mais pequeno pedaço de carne ou de peixe, sob pena de excomunhão, como dizia, insistindo, o padre Restrepo. Ninguém se atreveria a desobedecer-lhe. O sacerdote estava munido de um grande dedo incriminador para apontar os pecadores em público e uma língua treinada para agitar os sentimentos. - Tu, ladrão, que roubaste o dinheiro do culto! - gritava do púlpito apontando um cavalheiro que fingia preocupar-se com qualquer sujidade na lapela do casaco para esconder a cara. - Tu, desavergonhada, que te prostituis nos molhes! - e acusava Dona Ester Trueba, inválida pela artrite e beata da Senhora do Carmo, e que abria os olhos surpreendida, sem saber o significado daquela palavra nem onde ficavam os molhes. - Arrependei-vos, pecadores, carcaças imundas, indignos do sacrifício de Nosso Senhor! Jejuai! Fazei penitência! Levado pelo entusiasmo do seu zelo vocacional, o sacerdote tinha de conter-se para não desobedecer declaradamente às instruções dos superiores eclesiásticos, sacudidos por ventos de modernismo, e que se opunham ao cilicio e à flagelação. Era partidário de vencer as fraquezas da alma com uma boa chicotada na carne. Era famoso pela sua oratória de enfreada. Os fiéis seguiam-no de paróquia em paróquia, suavam ouvindo-o descrever os tormentos dos pecadores no inferno, as carnes estraçalhadas por engenhosas máquinas de tortura, os fogos eternos, os garfos que trespassavam os membros viris, os répteis asquerosos que se introduziam pelos orifícios femininos e outros suplícios que introduzia em cada sermão para espalhar o terror de Deus. O próprio Satanás era descrito até às suas mais intimas anomalias com a pronúncia galega do sacerdote, cuja missão neste mundo era sacudir as consciências dos indolentes crioulos. Severo del Valle era ateu e mação, mas tinha ambições políticas. Não podia por isso darse ao luxo de faltar à missa mais concorrida dos domingos e dias de festa, para que todos pudessem vê-lo. Nívea, a esposa, preferia entender-se com Deus sem auxilio de intermediários, tinha profunda desconfiança das sotainas, aborrecia-se com as descrições do céu, do purgatório e do inferno, mas acompanhava o marido nas suas ambições políticas, na esperança de que, conseguindo ele um lugar no Congresso, ela podia obter o voto feminino, pelo qual lutava fazia dez anos, sem que os seus numerosos estados de gravidez a fizessem desanimar. Nessa Quinta-Feira Santa o padre Restrepo tinha levado os ouvintes ao limite da resistência com as suas visões apocalípticas, e Nívea começou a sentir enjoos. Perguntou a si mesma se não estaria grávida de novo. Apesar das abluções com vinagre e das esponjas de fel, tinha dado à luz quinze filhos, dos quais dez restavam ainda vivos, e tinha razões para supor que já se estava acomodando à idade, porque a sua filha Clara, a mais pequena, tinha dez anos. Parecia que, por fim, tinha acabado o ímpeto da sua assombrosa fertilidade. Fez por atribuir a sua indisposição ao momento do sermão do padre Restrepo, quando ele a apontou referindo-se aos fariseus que pretendiam legalizar os bastardos e o matrimónio civil, desarticulando a Família, a Pátria, a Propriedade e a Igreja, dando às mulheres a mesma posição que aos homens, em aberto desafio à lei de Deus, que nesse aspecto era muito precisa. Nívea e Severo ocupavam com os filhos toda a terceira fila de bancos. Clara sentava-se ao lado da mãe. Esta apertava-lhe a mão com impaciência quando o discurso do sacerdote se estendia demasiado pelos pecados da carne, porque sabia que isso levaria a pequena a imaginar aberrações que iam para lá da realidade, como era evidente pelas perguntas que fazia e a que ninguém sabia responder. Clara era muito precoce e tinha a transbordante imaginação herdada, via materna, por todas as mulheres da família. A temperatura da igreja aumentara e o cheiro penetrante das velas, do incenso e da multidão apinhada contribuiu para a fadiga de Nívea. Queria que a cerimónia terminasse de vez para regressar à frescura da sua casa, sentar-se no corredor dos fetos e saborear o refresco de orchata que a Ama preparava nos dias de festa. Olhou os filhos, os mais pequenos estavam cansados, rígidos na roupa domingueira e os mais velhos começavam a ficar distraídos. Poisou os olhos em Rosa, a mais velha das filhas vivas, e, como sempre, ficou surpreendida. A sua estranha beleza de uma qualidade perturbadora, à qual nem ela escapava, parecia fabricada de material diferente do da raça humana. Nívea soube que ela não era deste mundo ainda antes de a dar à luz porque a viu em sonhos, por isso não se surpreendeu quando a parteira deu um grito ao vê-la. Ao nascer, Rosa era branca, lisa, sem rugas, como uma boneca de louça, com o cabelo verde e os olhos amarelos, a criatura mais formosa que tinha nascido na terra desde os tempos do pecado original, como disse a parteira benzendo-se. Desde o primeiro banho, a Ama lavou-lhe o cabelo com infusão de camomila, que lhe enfraqueceu a cor, dando-lhe tonalidades de bronze velho, e punha-a nua ao sol, para fortalecer a pele, translúcida nas zonas mais delicadas do ventre e das axilas, onde se adivinhavam as veias e a textura secreta dos músculos. Aqueles passes de cigana, no entanto, não foram suficientes e depressa correu o boato que tinha nascido um anjo. Nívea esperou que as ingratas fases do crescimento dessem à sua filha algumas imperfeições, mas nada disso aconteceu, bem pelo contrário, aos dezoito anos Rosa não engordara e não lhe tinham rebentado borbulhas, mas havia acentuado, isso sim, a sua graça marítima. O tom da pele, com reflexos azulados, e o do cabelo, a lentidão dos movimentos e o caracter silencioso evocavam um habitante aquático. Tinha qualquer coisa de peixe e se tivesse uma cauda com escamas seria certamente uma sereia, mas as suas pernas punham-na no limite impreciso entre a criatura humana e o ser mitológico. Apesar de tudo, a jovem fizera uma vida quase normal, tinha um noivo e um dia havia de casar-se, passando dessa maneira a responsabilidade da sua formosura para outras mãos. Rosa inclinou a cabeça e um raio filtrou-se pelos vitrais da igreja, dando-lhe uma halo de luz ao perfil. Algumas pessoas voltaram-se para a ver e cochicharam, como frequentemente sucedia, mas Rosa parecia não dar por nada, era imune à vaidade e nesse dia estava mais ausente que de costume, imaginando novos animais para bordar na sua toalha, metade pássaros, metade mamíferos, cobertos de plumas matizadas e providos de cornos e cascos, tão gordos e com asas tão curtas que desafiavam as leis da biologia e da aerodinâmica. Raras vezes pensava no noivo, Esteban Trueba, não por falta de amor, mas por temperamento esquecedor, e porque dois anos de separação são grande ausência. Ele trabalhava nas minas do Norte. Escrevia-lhe metodicamente e Rosa respondia-lhe de vez em quando, mandando-lhe versos copiados e desenhos de flores a tinta-da-china, em papel de pergaminho. Através dessa correspondência, que Nívea violava regularmente, inteirou-se dos sobressaltos do oficio de mineiro, sempre ameaçado por derrocadas, perseguindo veios fugidios, pedindo créditos por conta da boa sorte, acreditando que acabaria por aparecer um maravilhoso filão de ouro, que lhe permitiria fazer rápida fortuna e regressar para levar Rosa de braço dado ao altar, tornando-se assim o homem mais feliz do universo, como dizia sempre no fim das cartas. Rosa, no entanto, não tinha pressa em casar-se, quase esquecera o único beijo que haviam trocado na despedida e também a cor dos olhos desse noivo tenaz. Por influência das novelas românticas, que eram a sua única leitura, gostava de o imaginar com botas de cabedal, a pele queimada pelos ventos do deserto, cavando a terra em busca de tesouros de piratas, dobrões espanhóis e jóias dos Incas, e era inútil que Nívea a tentasse convencer de que as riquezas das minas estavam metidas nas pedras, porque para Rosa era impossível que Esteban Trueba recolhesse toneladas de penhascos na esperança de que, ao submetê-los a iníquos processos crematórios, cuspissem um grama de ouro. Entretanto, esperava por ele sem se aborrecer, imperturbável na gigantesca tarefa que tinha imposto a si própria: bordar a toalha maior do mundo. Começou com cães, gatos e borboletas, mas logo a fantasia se apoderou do seu trabalho e foi surgindo um paraíso de animais impossíveis que nasciam da agulha em frente dos olhos preocupados do pai. Severo considerava que era tempo da filha sair da modorra e de ter os pés assentes na terra, de aprender algumas tarefas domésticas e preparar-se para o matrimónio, mas Nívea não compartilhava dessa inquietação. Preferia não atormentar a filha com exigências terrenas, pois pressentia que Rosa era um ser celestial, que não tinha sido feito para durar muito tempo no bulício grosseiro deste mundo, por isso deixava-a em paz com os seus fios de bordar e não comentava aquele jardim zoológico de pesadelo. Uma barba do espartilho de Nívea quebrou-se, cravando-se-lhe uma ponta entre as costelas. Sentia-se sufocar dentro do vestido de veludo azul, com a gola de renda demasiado alta, as mangas muito estreitas, a cintura tão apertada que, quando tirava o cinto, passava uma boa meia hora com retorcidelas de barriga até as tripas se acomodarem na sua posição normal. Tinham discutido isso muitas vezes, ela e as amigas sufragistas, e haviam chegado à conclusão de que, enquanto as mulheres não encurtassem as saias e o cabelo e não despissem os saiotes, tudo ficava na mesma, mesmo que pudessem estudar medicina ou tivessem direito a voto, porque de modo algum teriam coragem de o fazer; ela própria não tinha coragem para ser das primeiras a abandonar a moda. Notou que a voz da Galiza tinha deixado de martelarlhe o cérebro. Estava numa dessas grandes pausas do sermão que o padre empregava com frequência, por conhecer bem o efeito de um silêncio incómodo. Os seus olhos ardentes aproveitavam esses momentos para observar os paroquianos um por um. Nívea largou a mão de Clara e procurou um lenço na manga para enxugar uma gota de suor que lhe escorria pelo pescoço. O silêncio tornou-se pesado, o tempo pareceu parar dentro da igreja, mas ninguém se atreveu a tossir ou a ajeitar-se no banco, para não atrair a atenção do padre Restrepo. As suas últimas frases ainda vibravam entre as colunas. E nesse momento, como Nívea recordou anos mais tarde, no meio da ansiedade e do silêncio, ouviu-se com toda a nitidez a voz da pequena Clara: - Pst! Padre Restrepo! Se o conto do inferno for pura mentira chateamo-nos... O dedo indicador do jesuíta, que já estava no ar para assinalar novos suplícios, ficou suspenso como um pára-raios sobre a sua cabeça. As pessoas deixaram de respirar e os que estavam cabeceando acordaram. Os esposos del Valle foram os primeiros a reagir ao sentir que o pânico os invadia e ao ver que os filhos começavam a agitar-se nervosos. Severo compreendeu que devia actuar antes que rebentasse o riso geral ou se desencadeasse algum cataclismo celestial. Pegou na mulher pelo braço e em Clara pelo pescoço e saiu arrastandoas a grandes passadas, seguido pelos outros filhos, que se precipitaram em tropel para a porta. Conseguiram sair antes que o sacerdote pudesse invocar um raio que os transformasse em estátuas de sal, mas do umbral da porta ouviram a sua terrível voz de arcanjo ofendido: - Endemoninhada! Soberba endemoninhada! Estas palavras do padre Restrepo permaneceram na memória da família com o peso de um diagnóstico e, nos anos seguintes, tiveram ocasião de as recordar variadas vezes. A única que não voltou a pensar nelas foi a própria Clara, que se limitou a anotá-las no seu diário para logo as esquecer. Os pais, em contrapartida, não puderam ignorá-las, apesar de concordarem que a possessão demoníaca e a soberbia eram dois pecados demasiado grandes para uma criança tão pequena. Temiam a maldição do povo e o fanatismo do padre Restrepo. Até esse dia, não tinham posto nome às excentricidades da filha mais nova nem as haviam relacionado com influências satânicas. Tomavam-nas como uma característica da menina, como o coxear era a de Luís e a beleza a de Rosa. Os poderes mentais de Clara não causavam incómodo a ninguém e não produziam desordem de maior; manifestavam-se quase sempre em assuntos de pouca importância e na estrita intimidade do lar. Algumas vezes, à hora da refeição, quando estavam todos reunidos na grande sala de jantar da casa, sentados em absoluta ordem de dignidade e hierarquia, o saleiro começava a vibrar e deslocava-se depois pela mesa fora entre copos e pratos, sem ter havido para isso nenhuma fonte de energia conhecida nem truque de ilusionista. Nívea dava um puxão às tranças de Clara e com esse sistema conseguia que a filha abandonasse a distracção lunática e devolvesse a normalidade ao saleiro, que acabava por recuperar a imobilidade. Os irmãos tinham-se organizado para que, no caso de haver visitas, aquele que estivesse mais perto deter com a mão o que estivesse andando sobre a mesa antes que os estranhos dessem conta disso e apanhassem um susto. A família continuava a comer sem comentários. Também se tinham habituado aos presságios da irmã mais nova. Ela anunciava os tremores de terra com alguma antecipação, o que resultava muito útil naquele pais de catástrofes, porque dava tempo de pôr a salvo a baixela e deixar ao alcance da mão as pantufas para sair noite dentro. Aos seis anos Clara previu que o cavalo havia de deixar cair Luís, este negou-se a dar-lhe ouvidos e desde então tinha um quadril deslocado. Com o tempo, encurtou-se-lhe a perna esquerda e teve de usar um sapato especial com uma grande sola que ele próprio fabricava. Nessa ocasião Nívea inquietou-se, mas a Ama tranquilizou-a dizendo que há muitos meninos que voam como as moscas, que adivinham os sonhos e falam com as almas, mas que tudo isso lhes passa quando perdem a inocência. - Nenhum chega a grande nesse estado - explicou. – Espere que à menina lhe chegue a demonstração e vai ver que perde a mania de andar a mover os móveis e a anunciar desgraças. A Ama preferia Clara. Tinha-a ajudado a nascer e era a única pessoa que compreendia a natureza extravagante da menina. Quando Clara saiu do ventre da mãe, a Ama embalou-a, lavou-a e desde esse momento amou desesperadamente a frágil criança com os pulmões cheios de expectoração, sempre à beira de perder o alento e pôr-se roxa, que tinha feito reviver com o calor dos seus grandes peitos quando lhe faltava o ar, porque sabia que era esse o único remédio para a asma, muito mais eficaz que os folhados aguardentados do doutor Cuevas. Nessa Quinta-Feira Santa, Severo passeava pela sala preocupado com o escândalo que a filha tinha dado na missa. Argumentava que só um fanático como o padre Restrepo podia acreditar em possessos em pleno século vinte, o século das luzes, da ciência e da técnica, no qual o demónio tinha ficado definitivamente desprestigiado. Nívea interrom-peu-o para dizer que não era essa a questão. O que era grave é que, se as proezas da filha transcendiam as paredes da casa e o padre começava a investigar, toda a gente iria saber. - Vai começar a chegar gente para a ver como se ela fosse um fenómeno - disse Nívea. - E o Partido Liberal vai para o caralho - rematou Severo, que via o prejuízo que podia ser para a sua carreira política ter uma possessa na família. Estavam nisto quando chegou a Ama arrastando as chinelas, com o frufru de saiotes engomados, a anunciar que no pátio estavam uns homens a descarregar um morto. Assim era. Entraram com uma carraça de quatro cavalos, ocupando todo o primeiro pátio, pisando as camélias e sujando de trampa o empedrado reluzente, num turbilhão de pó, num empinar de cavalos e maldições de homens supersticiosos que faziam gestos contra o mau olhado. Traziam o cadáver do tio Marcos com toda a sua bagagem. Aquele tumulto era dirigido por um homenzinho melífluo, vestido de negro, de labita e chapéu demasiado grande, que iniciou um discurso solene para explicar as circunstâncias do caso, mas que foi brutalmente interrompido por Nívea, que se lançou sobre o ataúde empoeirado que continha os restos do seu irmão mais querido. Nívea gritava que abrissem a tampa, para o ver com os próprios olhos. Já em ocasião anterior havia sido encarregada de o enterrar, e por isso mesmo tinha o direito de duvidar que dessa vez fosse verdadeira a sua morte. Os seus gritos atraíram a multidão de criados da casa e todos os filhos, que acudiram correndo ao ouvir o nome do tio pronunciado com lamentações de luto. Havia um par de anos que Clara não via o tio Marcos, mas recordava-o bem. Era a única imagem perfeitamente nítida da sua infância e para a evocar não necessitava sequer de consultar o daguerrótipo do salão, onde ele aparecia vestido de explorador, apoiado a uma caçadeira de dois canos de modelo antigo, o pé direito sobre um tigre da Malásia, na mesma atitude triunfante que ela tinha visto na Virgem do altar-mor pisando o demónio vencido entre nuvens de gesso e anjos pálidos. A Clara bastava fechar os olhos para ver o tio em carne e osso, curtido pelas inclemências de todos os climas do planeta, magro, com bigodes de flibusteiro, entre os quais assomava um estranho sorriso com dentes de tubarão. Parecia impossível que ele estivesse naquele caixão negro no meio do pátio. Em cada visita que Marcos fez a casa da irmã Nívea, ficou por vários meses, dando alegria aos sobrinhos, especialmente a Clara, e provocando uma tempestade na qual a ordem doméstica perdia os horizontes. A casa atafulhava-se de baús, animais embalsamados, lanças de índios, bagagens de marinheiro. Por todos os lados se tropeçava em utensílios indescritíveis, e apareciam bichos nunca vistos que tinham viajado desde terras remotas para acabarem esmagados debaixo da vassoura implacável da Ama em qualquer canto da casa. As maneiras do tio Marcos eram as de um canibal, como dizia Severo. Passava a noite fazendo movimentos incompreensíveis na sala. Soube-se mais tarde que eram exercícios destinados a aperfeiçoar o domínio da mente sobre o corpo e a melhorar a digestão. Fazia experiências de alquimia na cozinha, enchendo toda a casa de fumaradas fétidas e arruinando as panelas com substancias sólidas que não podiam soltar-se do fundo. Enquanto os outros tentavam dormir, arrastava as malas pelos corredores, ensaiava sons agudos com instrumentos selvagens e ensinava espanhol a um papagaio cuja língua materna era de origem amazónica. De dia, dormia numa rede que tinha esticado entre duas colunas do corredor, cobrindo-se apenas com uma tanga que punha Severo de péssimo humor, mas que Nívea desculpava porque Marcos tinha-a convencido de que era assim que pregava o Nazareno. Clara recordava perfeitamente, apesar de ser muito pequena na altura, a primeira vez que o tio Marcos chegou a casa no regresso de uma das suas viagens. Instalou-se como se fosse para sempre. Ao fim de pouco tempo, aborrecido de apresentar-se em tertúlias de senhoras em que a dona da casa tocava piano, de jogar as cartas e iludir os constrangimentos de todos os seus parentes para que assentasse cabeça e começasse a trabalhar como ajudante no escritório de advogado de Severo del Valle, comprou um realejo e percorreu as ruas com a intenção de seduzir a prima Antonieta e, ao mesmo tempo, alegrar o público com a sua música de manivela. A máquina não passava de um caixote manhoso provido de rodas, mas ele pintou-a com motivos de marinheiros e pôs-lhe uma chaminé falsa de barco. Ficou com aspecto de fogão a carvão. O realejo tocava uma marcha militar e uma valsa alternadamente e entre cada volta de manivela o papagaio, que tinha aprendido espanhol, apesar de manter o sotaque estrangeiro, atraía o público com gritos agudos. Tirava também com o bico papelitos de uma caixa para vender a sorte aos curiosos. Os papéis cor-de-rosa, verdes e azuis eram tão engenhosos que indicavam sempre os mais secretos desejos do cliente. Além dos papéis da sorte, vendia bolinhas de serradura para divertir as crianças e pós contra a impotência, de que falava a meia voz com os transeuntes afectados por esse mal. A ideia do realejo surgiu como um último e desesperado recurso para atrair a prima Antonieta, depois de falharem outras formas mais convencionais de a cortejar. Pensou que nenhuma mulher de perfeito juízo podia permanecer impassível perante uma serenata de realejo. Foi isso que fez. Colocou-se debaixo da janela dela ao entardecer, tocando a sua marcha militar e a sua valsa no momento em que ela tomava chá com um grupo de amigas. Antonieta não se deu por achada até que o papagaio começou a chamá-la pelo seu nome de baptismo e então chegou à janela. A sua reacção não foi a que esperava o enamorado. As amigas encarregaram-se de espalhar a noticia por todos os salões da cidade e, no dia seguinte, as pessoas começavam a passear pelas ruas centrais esperando ver com os próprios olhos o cunhado de Severo del Valle tocando realejo e a vender bolas de serradura com um papagaio barulhento, simplesmente pelo prazer de tirar a prova de que também nas melhores famílias havia boas razões para ter vergonha. Em face da tempestade familiar, Marcos teve de desistir do realejo e escolher métodos menos conspícuos para atrair a prima Antonieta. Marcos não desistiu de a assediar. De qualquer modo, no fim não teve êxito, porque a jovem casou-se dum dia para o outro com um diplomata vinte anos mais velho, que a levou para um pais tropical cujo nome ninguém conseguiu recordar, mas que sugeria negritude, bananas e palmeiras, onde ela ultrapassou a recordação do pretendente que arruinara os seus dezassete anos com uma marcha militar e uma valsa. Marcos ficou abalado durante dois ou três dias, ao fim dos quais anunciou que nunca havia de casar e que iria dar a volta ao mundo. Vendeu o realejo a um cego e deixou o papagaio de herança a Clara, mas a Ama envenenou-o secretamente com uma boa dose de óleo de fígado de bacalhau porque não podia suportar o seu olhar lascivo, as pulgas e os gritos desregrados oferecendo papelinhos para a sorte, bolas de serradura e pós para a impotência. Foi a mais longa viagem de Marcos. Regressou com um carregamento de enormes caixas que se armazenaram no último pátio, entre o galinheiro e a casa da lenha, até acabar o Inverno. No começo da Primavera, fê-las passar ao Parque dos Desfiles, um enorme descampado onde se juntava o povo para ver marchar a tropa durante as festas da Pátria, com um passo de ganso que tinham copiado dos Prussianos. Ao abrir as caixas, viu-se que tinham lá dentro peças soltas de madeira, metal e tela pintada. Marcos passou duas semanas juntando as partes de acordo com as instruções de um manual em inglês, que ele decifrou com uma imaginação invencível e um pequeno dicionário. Quando o trabalho ficou pronto, surgiu um pássaro de dimensões pré-históricas, com um rosto de águia furiosa pintado na parte da frente, asas móveis e um hélice no lombo. Causou emoção. As famílias da oligarquia esqueceram o realejo e Marcos tornou-se a novidade da temporada. As pessoas faziam passeios aos domingos para ir ver o pássaro e os vendedores de quinquilharias e os fotógrafos ambulantes fizeram o seu negócio. No entanto, em pouco tempo começou a esgotar-se o interesse do público. Marcos anunciou então que, mal o tempo desanuviasse, pensava levantar voo no pássaro e passar por cima da cordilheira. A noticia correu em poucas horas e converteu-se no acontecimento mais comentado do ano. A máquina jazia com a pança assente em terra firme, pesada e torpe, mais com o aspecto de um pato ferido do que de um desses modernos aeroplanos que começavam a fabricar-se na América do Norte. Nada na sua aparência permitia supor que pudesse mover-se e muito menos levantar voo e atravessar as montanhas nevadas. Os jornalistas e curiosos acudiram em tropel. Marcos sorria imóvel face à avalancha de perguntas, posando para os fotógrafos sem oferecer nenhuma explicação técnica ou cientifica a respeito de como pensava realizar a sua proeza. Houve gente que viajou da província para ver o espectáculo. Quarenta anos depois, o seu sobrinho-neto Nicolau, a quem Marcos não chegou a conhecer, desenterrou a iniciativa de voar que sempre estivera presente nos homens da sua estirpe. Nicolau teve a ideia de fazê-lo com fins comerciais, numa salsicha gigantesca cheia de ar quente, que levaria impresso um anúncio publicitário de bebidas gasosas. Mas, nos tempos em que Marcos anunciou a sua viagem em aeroplano, ninguém acreditava que esse invento pudesse servir para alguma coisa de útil. Ele fazia-o por espírito aventureiro. O dia marcado para o voo amanheceu enevoado, mas havia tanta expectativa que Marcos não quis adiar a data. Apresentou-se pontualmente no local e não deu sequer uma olhadela para o céu que se cobria de nuvens cinzentas. A multidão atónita encheu as ruas circundantes, empoleirou-se nos telhados, nas varandas das casas próximas e apertou-se no parque. Nenhuma concentração política conseguiu reunir tanta gente até meio século depois, quando o primeiro candidato marxista aspirava, por meios totalmente democráticos, a ocupar a poltrona dos presidentes. Clara recordaria em toda a sua vida esse dia de festa. As pessoas vestiram-se como na Primavera, adiantando-se um pouco à inauguração oficial da temporada, os homens com fatos de linho branco e as senhoras com chapéus de palhinha italiana, que fizeram furor nesse ano. Desfilaram grupos de alunos das escolas, com os professores, levando flores para o herói. Marcos recebia as flores e gracejava, dizendo que esperassem que ele caísse para lhe levarem flores ao enterro. O bispo em pessoa, sem que ninguém lhe pedisse, apareceu com dois incensórios a benzer o pássaro, e o orfeão da polícia tocou música alegre e sem pretensões, para o gosto popular. A policia, a cavalo e com lanças, teve dificuldade em manter a multidão afastada do centro do parque, onde estava Marcos, vestido com calças de mecânico, com grandes óculos de automobilista e o seu capacete de explorador. Para o voo levava, além disso, a sua bússola, um binóculo e uns estranhos mapas de navegação aérea que ele próprio tinha traçado baseando-se nas teorias de Leonardo da Vinci e nos conhecimentos astrais dos Incas. Contra toda a lógica, à segunda tentativa, o pássaro elevou-se sem problemas e mesmo com certa elegância entre os estalidos do esqueleto e os estertores do motor. Subiu dando às asas, perdendo-se nas nuvens, despedido por uma explosão de aplausos, assobios, lenços, bandeiras, acordes musicais do orfeão e aspersões de água benta. Em terra ficou o comentário da concorrência maravilhada e dos homens mais instruídos, que tentaram dar uma explicação razoável do milagre. Clara continuou olhando o céu até muito tempo depois do tio se ter tornado invisível. Acreditou vê-lo dez minutos mais tarde, mas tratava-se apenas de um pardal que passava. Passados três dias, a euforia provocada no país pelo primeiro voo de aeroplano desvaneceuse e ninguém tornou a lembrar-se do episódio, excepto Clara, que olhava incansavelmente as alturas. Sem haver notícias do tio voador durante uma semana, supôs-se que tinha subido até se perder no espaço sideral. Os mais ignorantes especulavam com a ideia de que chegaria à Lua. Severo determinou, com uma mistura de tristeza e de alívio, que o seu cunhado tinha caído com a máquina nalguma garganta da cordilheira, onde nunca mais seria encontrado. Nívea chorou inconsolável e ofereceu velas a Santo António, padroeiro das coisas perdidas. Severo opôs-se à ideia de mandar dizer algumas missas, porque não acreditava nesse recurso para ganhar o céu e muito menos para voltar à terra, e defendia que as missas e as promessas, assim como as indulgências e o tráfico de imagens e escapulários eram um negócio desonesto. Em vista disso, Nívea e a Ama puseram todas as crianças a rezar o terço às escondidas, durante nove dias. Entretanto, grupos de exploradores e andinistas voluntários procuraram-no incansavelmente por picos e quebradas da cordilheira, percorrendo, uma por uma, todas as passagens acessíveis, até que por último regressaram triunfantes e entregaram à família os restos mortais dentro de um féretro selado, negro e modesto. Enterraram o intrépido viajante num funeral grandioso. A morte converteu-o num herói e o seu nome esteve vários dias nos títulos dos jornais. A mesma multidão que se juntou para se despedir dele no dia em que levantou voo no pássaro desfilou em frente do ataúde. Toda a família o chorou como ele merecia, menos Clara, que continuou esquadrinhando o céu com paciência de astrónomo. Uma semana depois da inumação, apareceu no umbral da porta da casa de Nívea e de Severo del Valle o próprio tio Marcos, de corpo presente, com um alegre sorriso entre os bigodes de pirata. Graças às rezas clandestinas das mulheres e das crianças, como ele próprio admitiu, estava vivo e em posse de todas as suas faculdades, incluindo a do bom humor. Apesar da nobre origem dos seus mapas aéreos, o voo tinha sido um fracasso, perdera o aeroplano e teve de regressar a pé, não trazendo todavia nenhum osso partido e com o espírito aventureiro intacto. Isto consolidou para sempre a devoção da família por Santo António e não desenganou as gerações futuras, que também tentaram voar por diversos meios. No entanto, legalmente, Marcos era um cadáver. Severo del Valle teve de pôr todo o seu conhecimento das leis no sentido de devolver a vida e a condição de cidadão ao cunhado. Ao abrir o caixão, diante das autoridades respectivas, todos viram que se tinha enterrado um saco de areia. Este facto enodoou o prestigio, até então sem mácula, dos exploradores e andinistas voluntários; desde esse dia foram considerados pouco menos que malfeitores. A heróica ressurreição de Marcos acabou por fazer esquecer a toda a gente a história do realejo. Voltaram a convidá-lo para todos os salões da cidade e, pelo menos por algum tempo, o seu nome foi solicitado. Marcos viveu em casa da irmã por alguns meses. Uma noite foi-se embora sem se despedir de ninguém, deixando os baús, os livros, as armas, as botas e todo o instrumental. Severo, e até mesmo Nívea, respiraram aliviados. A sua última visita tinha durado tempo de mais. Mas Clara sentiu-se tão afectada que passou uma semana caminhando sonâmbula a chupar no dedo. A menina, que então tinha sete anos, aprendera a ler os livros de contos do tio e, devido às suas habilidades adivinhatórias, estava mais perto dele que de nenhum membro da família. Marcos pretendia que a rara virtude da sua sobrinha podia ser uma fonte de lucros e uma boa oportunidade para desenvolver a sua própria clarividência. Tinha a teoria de que esta condição estava presente em todos os seres humanos, especialmente nos da sua família, e que se não funcionava com eficiência era só por falta de treino. Comprou no Mercado Persa uma bola de vidro que, em sua opinião, tinha propriedades mágicas e vinha do Oriente, embora mais tarde se soubesse que era apenas uma bóia de bote de pesca; pô-la sobre um pano de veludo negro e anunciou que podia ver a sorte, curar o mau olhado, ler o passado e melhorar a qualidade dos sonhos, tudo por cinco centavos. Os seus primeiros clientes foram as criadas da vizinhança. Uma delas fora acusada de ladra, porque a patroa tinha perdido um anel. A bola de vidro indicou o lugar onde se encontrava a jóia: tinha rebolado para baixo de um roupeiro. No dia seguinte havia uma bicha de gente à porta da casa. Chegavam os cocheiros, os comerciantes, os fornecedores de leite e água e mais tarde, apareceram discretamente alguns empregados municipais e senhoras distintas, que deslizavam discretamente ao longo das paredes, procurando não serem reconhecidas. A clientela era recebida pela Ama, que punha as pessoas por ordem na antecâmara e cobrava os honorários. Este trabalho mantinha-a ocupada quase todo o dia e chegou a prendê-la tanto que descuidou os seus afazeres na cozinha. A família começou a queixar-se de que a única coisa que havia para o jantar era feijões e marmelada. Marcos arranjou a cocheira com uns cortinados puídos que tinham pertencido em tempos ao salão, mas que o abandono e a velhice tinham tornado tripas cheias de pó. Era ali que atendia o público com Clara. Os dois adivinhos vestiam túnicas «da cor dos homens da luz», como Marcos chamava ao amarelo. A Ama tingiu as túnicas com pó de açafrão, fazendoas ferver na panela destinada ao manja branco. Marcos tinha, além da túnica, um turbante amarrado na cabeça e um amuleto egípcio pendurado ao pescoço. Deixara crescer a barba e o cabelo e estava mais magro do que nunca. Marcos e Clara ficavam totalmente convincentes, sobretudo porque a menina não necessitava olhar a bola de vidro para adivinhar o que cada um queria ouvir. Soprava-o ao ouvido do tio Marcos, que transmitia a mensagem ao cliente e improvisava os conselhos que lhe pareciam ajuizados. Assim se propagou a sua fama, porque os que chegavam ao consultório débeis e tristes saiam cheios de esperança, os namorados que não eram correspondidos obtinham orientação para cativar o coração indiferente e os pobres levavam infalíveis artimanhas para apostar nas corridas de cães. O negócio chegou a ser tão próspero que a antecâmara estava sempre atafulhada de gente e a Ama começou a ter desmaios por estar parada tanto tempo. Nessa ocasião Severo não teve necessidade de intervir para pôr fim à iniciativa empresarial do seu cunhado, porque os dois adivinhos, ao notar que a sua perícia podia modificar o destino da clientela, que seguia à letra as suas palavras, atemorizaram-se e decidiram que era um oficio de trampolineiros. Abandonaram o oráculo da cocheira e dividiram os ganhos ao meio, ainda que a única que de facto estava interessada no aspecto material fosse a Ama. De todos os irmãos del Valle, Clara era a que tinha mais resistência e interesse em ouvir os contos do tio. Podia repeti-los um por um, sabia de memória várias palavras de índios estrangeiros, conhecia os seus costumes e podia descrever a maneira como atravessavam pedaços de madeira nos lábios e nos lóbulos das orelhas, assim como os ritos de iniciação e os nomes das serpentes mais venenosas e seus antídotos. O tio era tão eloquente que a menina podia sentir na sua própria carne a mordedura quente das víboras, ver o réptil deslizar sobre a almofada, entre os troncos de jacarandás e escutar os gritos das guacamaias (Ave da família dos papagaios. Arara. (N. T.)) através das cortinas do salão. Lembrava-se sem hesitações do trajecto de Lope de Aguirre em busca do El Dorado, dos nomes impronunciáveis da flora e da fauna vistas ou inventadas pelo seu tio maravilhoso, sabia que os lamas comem chá salgado com gordura de iaque e podia descrever com pormenor as opulentas nativas da Polinésia, os arrozais da China ou as planícies brancas dos países do Norte, onde o gelo eterno mata os animais e os homens que se distraem, petrificando-os em poucos minutos. Marcos tinha vários diários de viagem onde escrevia os seus itinerários e as suas impressões, assim como uma colecção de mapas e livros de contos de aventuras, e até de fadas, que guardava nos baús no quarto das vasilhas, ao fundo do terceiro pátio da casa. Saíram dali para povoar os sonhos dos seus descendentes até que foram queimados por erro, meio século depois, numa pira infame. Da sua última viagem, Marcos regressou num caixão. Tinha morrido de uma misteriosa peste africana que o foi pondo enrugado e amarelo como um pergaminho. Ao sentir-se doente iniciou a viagem de volta, esperando que os cuidados da sua irmã e a sabedoria do doutor Cuevas lhe tornassem a dar a saúde e a juventude, mas não resistiu aos sessenta dias de travessia de barco e, por alturas de Guaiaquil, morreu consumido pela febre e delirando sobre mulheres perfumadas e tesouros escondidos. O capitão do barco, um inglês de apelido Longfellow, esteve a ponto de o lançar ao mar embrulhado numa bandeira, mas Marcos tinha feito tantos amigos e apaixonado tantas mulheres a bordo do transatlântico, apesar do seu aspecto campesino e do seu delírio, que os passageiros o impediram, e Longfellow teve de o armazenar, junto às hortaliças do cozinheiro chinês, para o preservar do calor e dos mosquitos do trópico, até que o carpinteiro de bordo improvisasse um caixão. Em El Callao conseguiram um féretro apropriado e alguns dias depois o capitão, furioso pelos contratempos que aquele passageiro tinha causado à Companhia de Navegação e a ele pessoalmente, descarregou-o sem contemplações no cais, estranhando que ninguém aparecesse a reclamá-lo nem a pagar as despesas extraordinárias. Mais tarde soube que naquelas latitudes o correio não oferecia o mesmo crédito que na sua longínqua Inglaterra e que os seus telegramas se tinham evaporado no caminho. Felizmente para Longfellow, apareceu um advogado da alfândega que conhecia a família del Valle e que se ofereceu para tratar do assunto, metendo Marcos e a sua complicada bagagem num carro de aluguer e levando-o para a capital, para o único domicilio fixo que dele se conhecia: a casa da irmã. Para Clara esse teria sido um dos momentos mais dolorosos da sua vida, se Barrabás não tivesse chegado misturado com os instrumentos do tio. Ignorando a confusão que ia pelo pátio, o seu instinto levou-a directamente ao canto onde tinham posto a jaula. Dentro estava Barrabás. Era um montão de ossinhos cobertos por pêlo de cor indefinida, cheio de peladas infectas, um olho fechado e outro escorrendo remelas, imóvel como um cadáver na sua própria porcaria. Apesar desta aparência, a menina não teve dificuldade em identificá-lo: - Um cãozinho! - exclamou. Encarregou-se do animal, tirou-o da jaula, embalou-o contra o peito e, com cuidados de missionária, conseguiu deitar-lhe água no focinho inchado e seco. Ninguém se tinha preocupado em alimentá-lo desde que o capitão Longfellow, que como todos os ingleses tratava muito melhor os animais que os humanos, o depositou no cais. Enquanto o cão esteve a bordo junto ao dono moribundo, o capitão alimentou-o pela própria mão e passeou-o pela coberta, dando-lhe todas as atenções que não dera a Marcos, mas uma vez em terra firme foi tratado como parte da bagagem. Clara tornou-se uma mãe para o animal, sem que ninguém lhe disputasse esse privilégio duvidoso, conseguindo reanimá-lo. Dois dias mais tarde, logo que se acalmou a tempestade da chegada do cadáver e do enterro do tio Marcos, Severo reparou no bicho peludo que a filha levava nos braços: - Que é isso? - perguntou. - É o Barrabás - disse Clara. - Entrega-o ao jardineiro para que o mate. Pode contagiar-nos com alguma doença - ordenou Severo. Mas Clara tinha-o adoptado: - É meu, papá. Se mo tirar, juro-lhe que deixo de respirar e morro. Ficou em casa. Em pouco tempo corria por todos os lados devorando as franjas das cortinas, as almofadas e os pés dos móveis. Saiu rapidamente da agonia e começou a crescer. Quando se lhe deu banho, soube-se que era negro, de cabeça quadrada, patas muito grandes e pêlo curto. A Ama sugeriu que lhe cortassem a cauda para ficar como os cães finos, mas Clara teve uma birra que acabou em ataque de asma e ninguém voltou a falar no assunto. Barrabás ficou com o rabo inteiro, que com o tempo chegou a ter o comprimento de um taco de golfe, com movimentos incontroláveis que varriam as porcelanas das mesas e tombavam candeeiros. Era de raça desconhecida. Não tinha nada em comum com os cães que vagueavam pelas ruas e muito menos com os animais de raça pura que algumas famílias aristocráticas criavam. O veterinário não soube dizer qual era a sua origem e Clara supôs que vinha da China porque grande parte do conteúdo da bagagem do tio eram recordações desse pais distante. Tinha uma capacidade ilimitada de crescimento. Aos seis meses era do tamanho de uma ovelha e com um ano tinha a proporção de um poldro. A família, desesperada, perguntava até onde ele ia crescer, e começou-se a duvidar que fosse realmente um cão. Especularam que podia tratar-se de um animal exótico caçado pelo tio explorador nalguma região remota do mundo e que, provavelmente, no seu estado primitivo era feroz. Quando Nívea lhe observava as patas de crocodilo e os dentes afiados, o seu coração de mãe estremecia ao pensar que o animal podia arrancar a cabeça de um adulto com uma dentada e com maior razão a de um dos seus filhos. Mas Barrabás não mostrava ferocidade alguma, bem pelo contrário. Tinha brincadeiras de gatinho. Dormia abraçado a Clara, dentro da cama, com a cabeça no almofadão de penas, tapado até ao pescoço porque tinha frio, mas depois, quando já não cabia na cama, estendia-se no chão a seu lado, com o focinho de cavalo apoiado na mão da menina. Nunca se ouviu ladrar nem tão pouco rosnar. Era negro e silencioso como uma pantera, apreciava o presunto e as compotas de fruta e, sempre que havia visitas e se esqueciam de o fechar, entrava sorrateiro na sala de jantar, dando volta à mesa para, com delicadeza, tirar dos pratos os bocados preferidos sem que nenhum dos comensais se atrevesse a impedi-lo. Apesar da sua mansidão de donzela, Barrabás inspirava terror Os fornecedores fugiam precipitadamente quando aparecia na rua e uma vez a sua presença provocou pânico entre as mulheres que faziam bicha em frente da carroça que distribuía o leite, espantando o cavalo percherão que saiu disparado no meio de um quebrar de bilhas de leite entornadas na calçada. Severo teve de pagar todos os prejuízos e mandou amarrar o cão no pátio, mas Clara teve outra crise nervosa e a decisão foi adiada por tempo indefinido. A fantasia popular e o desconhecimento da sua raça atribuíram a Barrabás características mitológicas. Constava que continuava a crescer e que, se não fosse a brutalidade de um carniceiro, que lhe pôs termo à existência, teria chegado ao tamanho de um camelo. As pessoas acreditavam que era um cruzamento de cão e égua, supunham que podiam aparecerlhe asas, cornos e um bafo sulfuroso de dragão, como os animais que Rosa bordava no seu interminável manto. A Ama, farta de apanhar porcelana partida e ouvir os boatos de que se transformava em lobo nas noites de lua cheia, usou para ele o mesmo sistema que para o papagaio, mas a superdose de óleo de fígado de bacalhau não o matou, deu-lhe uma caganeira de quatro dias que encheu a casa de alto a baixo e que ela mesma teve de limpar. Eram tempos difíceis. Eu tinha então à volta de vinte e cinco anos, mas julgava que tinha à minha frente pouca vida para construir um futuro e conseguir a posição que desejava. Trabalhava que nem um animal, e as poucas vezes que me sentava para descansar, obrigado pelo tédio de algum domingo, sentia que estava a perder momentos preciosos e que cada minuto de ócio me afastava de Rosa mais um século. Vivia na mina, numa barraca de tábuas com telhado de zinco que eu próprio construi com a ajuda de dois serventes. Tinha uma única divisão, onde arrumei os meus haveres, com um janelo em cada parede, para fazer circular o ar quente do dia, fechados com postigos à noite, quando soprava o vento glacial. Todo o meu mobiliário consistia numa cadeira, uma cama de campanha, uma mesa rústica, uma máquina de escrever e uma pesada caixa forte que teve de ser levada no lombo de uma mula através do deserto, onde eu guardava as jornas dos mineiros, alguns documentos e uma pequena bolsa de lona em que brilhavam os pedacinhos de ouro que representavam o fruto de tanto esforço. Não era cómoda, mas eu estava habituado à falta de comodidades. Nunca havia tomado banho em água quente e as recordações que tinha da infância eram de frio, solidão e um eterno vazio no estômago. Ali comi, dormi e escrevi durante anos, sem mais distracções que uns quantos livros, lidos muitas vezes, uma pilha de jornais já atrasados, textos em inglês, que me serviram para aprender os rudimentos dessa magnifica língua, e um caixa com chave onde guardava a correspondência que mantinha com Rosa. Tinha-me acostumado a escreverlhe à máquina, com uma cópia que guardava para mim e que ordenava por datas junto às poucas cartas que dela recebi. Comia o mesmo rancho que se fazia para os mineiros e tinha proibido que circulasse álcool dentro da mina. Nem o tinha em casa, porque sempre pensei que a solidão e o aborrecimento acabam por fazer do homem um alcoólico. Talvez a recordação que tenho de meu pai, com o colarinho desabotoado, a gravata frouxa, manchada, os olhos turvos e o hálito pesado, com um copo na mão, tenha feito de mim um abstémio. Não tenho boa cabeça para a bebida, embebedo-me com facilidade. Descobri isso aos dezasseis anos e nunca mais o esqueci. Uma vez a minha neta perguntou-me como consegui viver tanto tempo sozinho e tão afastado da civilização. Não sei. Porém, deve ter sido mais fácil para mim do que para muitos outros, porque não sou uma pessoa sociável, não tenho muitos amigos nem gosto de festas nem de barulho, pelo contrário, sinto-me melhor sozinho. Custa-me muito tornar-me intimo das pessoas. Nesse tempo não tinha ainda vivido com uma mulher e por isso não podia deitar fora o que não conhecia. Não era namoradeiro, nunca o fui, nem sou de natureza fiel, apesar de bastar a sombra de um braço, a curva de uma cintura, o redondo de um joelho de mulher para que me venham ideias à cabeça, ainda hoje, quando já estou tão velho que ao olhar-me ao espelho não me reconheço. Pareço uma árvore torcida. Não estou a querer justificar os meus pecados da juventude com a história de que não podia controlar o ímpeto dos meus desejos, nem mais ou menos. Nessa idade estava acostumado às relações sem futuro com mulheres de vida fácil, já que não tinha possibilidade com outras. Na minha geração distinguíamos entre as mulheres decentes e as outras e também dividiam ~s as decentes em próprias e alheias. Não pensava no amor antes de conhecer Rosa, o romantismo afigurava-se-me perigoso e inútil e, se alguma vez gostei de alguma rapariga, não me atrevi a aproximar-me dela com medo de ser repelido e do ridículo. Fui muito orgulhoso e por causa do meu orgulho sofri mais que outros. Passou muito mais de meio século, mas ainda tenho gravado na memória o momento preciso em que Rosa, a bela, entrou na minha vida como um anjo distraído que ao passar me roubou a alma. Ela ia com a Ama e outra criança, provavelmente alguma irmã mais nova. Creio que levava um vestido lilás, mas não estou certo disso, porque não tenho olhos para roupa de mulher e ela era tão formosa que mesmo que levasse uma capa de arminho eu não podia ver senão o seu rosto. Habitualmente não tenho a mania das mulheres, mas teria de ser tarado para não notar essa aparição que provocava um tumulto com a sua passagem, congestionando o tráfego, com aquele incrível cabelo verde que lhe emoldurava a cara como um chapéu de fantasia, o porte de fada e aquela maneira de se mover como se voasse. Passou diante de mim sem me ver e entrou flutuando na confeitaria da Praça de Armas. Fiquei na rua, estupefacto, enquanto ela comprava caramelos de anis, escolhendo-os um por um, com um riso de cascavel, metendo uns na boca e dando outros à irmã. Não fui o único hipnotizado: em poucos minutos formou-se uma multidão de homens que espreitava pela montra. Então não resisti. Não me ocorreu que estava muito longe de ser o pretendente ideal para aquela jovem celestial, uma vez que não tinha fortuna, estava longe de ser bom rapaz e tinha pela frente um futuro incerto. E não a conhecia! Mas estava deslumbrado e decidi nesse momento que ela era a única mulher digna de ser minha esposa e que, se eu a não pudesse ter, preferia ficar solteiro. Segui-a todo o caminho de regresso a casa. Subi para o mesmo eléctrico e sentei-me atrás dela, sem poder tirar os olhos da sua nuca perfeita, do pescoço redondo, dos ombros suaves acariciados pelos caracóis verdes que se escapavam do penteado. Não dei pelo movimento do eléctrico, porque ia com os meus sonhos. Quando deslizou pelo passeio e passou ao meu lado as suas surpreendentes pupilas de ouro detiveram-se um pouco nas minhas. Devo ter morrido um pouco. Não podia respirar e senti o pulso parar. Quando recuperei a compostura, tive de saltar para o passeio, com risco de partir algum osso, e corri em direcção à rua que ela havia tomado. Adivinhei onde vivia ao ver uma mancha lilás esfumando-se por um portão. Desde esse dia montei guarda em frente da casa, passeando pelo quarteirão como cão vadio, espiando, subornando o jardineiro, metendo conversa com as criadas, até que consegui falar com a Ama e essa santa mulher se compadeceu de mim e aceitou fazer-lhe chegar as cartas de amor, as flores e as incontáveis caixas de caramelos de anis com que tentei conquistar o seu coração. Também lhe mandava acrósticos. Não sei fazer versos, mas havia um livreiro espanhol, que era um génio para a rima, a quem eu mandava fazer poemas, canções, qualquer coisa cuja matéria-prima fosse tinta e papel. A minha irmã Férula ajudou-me a aproximar da família del Valle, descobrindo remotos parentescos entre os nossos apelidos e procurando a oportunidade de nos cumprimentarmos à saída da missa. Aconteceu assim que pude visitar Rosa. No dia em que entrei na sua casa e a tive ao alcance da voz, não me veio nada à cabeça para dizer-lhe. Fiquei mudo, com o chapéu na mão e a boca aberta, até que os pais, que conheciam esses sintomas, me ajudaram. Não sei o que Rosa viu em mim, nem por que razão, com o tempo, me aceitou para marido. Cheguei a ser o seu noivo oficial sem ter de legalizar nenhuma proeza sobrenatural porque, apesar da sua beleza inumana e das suas inumeráveis virtudes, Rosa não tinha pretendentes. A mãe deu-me uma explicação: disse-me que nenhum homem se sentia suficientemente forte para passar a vida a defender Rosa do desejo dos outros. Muitos tinham-na rondado, perdendo a razão por causa dela, mas, até eu aparecer no horizonte, não se tinha decidido por ninguém. A sua beleza era de meter medo, por isso admiravam-na de longe, sem se aproximarem. Nunca pensei nisso, na verdade. O meu problema era que eu não tinha nem um tostão, mas sentia-me capaz, por força do amor, de transformar-me num homem rico. Olhei à minha volta procurando um caminho rápido, dentro dos limites da honestidade, em que me tinham educado, e vi que para triunfar precisava de ter padrinhos, estudos especiais ou qualquer capital. Não era bastante ter um apelido respeitável. Suponho que, se tivesse tido dinheiro para começar, teria apostado às cartas ou nos cavalos, mas como não era o caso tive de pensar em trabalhar em alguma coisa que, embora arriscada, pudesse dar-me fortuna. As minas de ouro e de prata eram o sonho dos aventureiros; podia afundá-los na miséria, matá-los de tuberculose ou torná-los homens poderosos. Era tudo uma questão de sorte. Obtive a concessão de uma mina no Norte com a ajuda do prestigio do apelido da minha mãe, que serviu para que o Banco me desse uma fiança. Decidi-me a explorar a mina até ao último grama de ouro, nem que para isso tivesse de espremer o cerro com as próprias mãos e moer as rochas a pontapés. Por Rosa estava disposto a isso e a muito mais. No fim de Outono, quando a família se tranquilizara a respeito das intenções do padre Restrepo, que teve de acalmar a sua vocação de inquisidor depois que o bispo em pessoa o advertiu que deixasse em paz a pequena Clara del Valle, e quando todos se tinham resignado à ideia de que o tio Marcos estava realmente morto, começaram a concretizar-se os planos políticos de Severo. Tinha trabalhado durante anos com esse fim. Foi um triunfo para ele quando o convidaram a apresentar-se com candidato do Partido Liberal nas eleições parlamentares, em representação de uma província do Sul onde nunca tinha estado e que nem se encontrava facilmente no mapa. O partido estava muito necessitado e Severo muito ansioso por ocupar um lugar, de modo que não tiveram dificuldade em convencer os humildes eleitores do Sul a nomearem Severo como seu candidato. O convite foi apoiado por um porco assado, rosado e monumental, enviado pelos eleitores à casa da família del Valle. Ia sobre uma grande bandeja de madeira, perfumado e brilhante, com salsa no focinho e uma cenoura no rabo, repousando num leito de tomates. Tinha uma costura na barriga e dentro ia cheio de perdizes que por sua vez estavam cheias de cerejas. Chegou acompanhado por uma garrafa com meio galão da melhor aguardente do pais. A ideia de tornar-se deputado ou, melhor ainda, senador, era um sonho largamente acarinhado por Severo. Tinha levado as coisas até essa meta com um minucioso trabalho de contactos, amizades, conciliábulos, aparições públicas discretas mas eficazes, dinheiro e favores que fazia às pessoas adequadas no momento preciso. Aquela província do Sul, ainda que remota e desconhecida, era do que ele estava à espera. O dia do porco foi uma terça-feira. Na sexta-feira, quando do porco não restava mais que os coiratos e a pele que Barrabás roía no pátio, Clara anunciou que haveria outro morto em casa: - Mas é um morto por engano - disse. No sábado, passara a noite mal disposta e acordou aos gritos. A Ama deu-lhe um chá de tília e ninguém fez caso, porque estavam ocupados com os preparativos da viagem ao Sul e porque a bela Rosa tinha acordado com febre. Nívea deu ordens para que deixassem ficar Rosa na cama, o doutor Cuevas disse que não era nada de grave, que lhe dessem uma limonada morna bem açucarada, com álcool para ela suar com a febre. Severo foi ver a filha, encontrou-a afogueada e com os olhos brilhantes, afundada nas rendas cor de manteiga dos lençóis. Levou-lhe de presente um carnet de baile e autorizou a Ama a abrir a garrafa de aguardente e deitar-lhe um pouco na limonada. Rosa bebeu a limonada, embrulhou-se no xaile de lã e adormeceu de seguida ao lado de Clara, com quem partilhava o quarto. Na manhã do domingo trágico, a Ama levantou-se cedo como sempre. Antes de ir à missa foi à cozinha preparar o pequeno almoço da família. O fogão a lenha e carvão tinha ficado preparado de véspera, e ela acendeu a fornalha com os restos das brasas ainda mornas. Enquanto aquecia a água e fervia o leite, foi arrumando os pratos para os levar depois para a sala de jantar. Começou a cozer a aveia, a coar o café, a torrar o pão. Arranjou as bandejas, uma para Nívea, que tomava sempre o pequeno almoço na cama, e outra para Rosa que por estar doente tinha direito ao mesmo. Cobriu a bandeja de Rosa com um guardanapo de linho bordado pelas freiras, para o café não esfriar e não entrarem moscas, e espreitou o pátio para ter a certeza de que Barrabás não estava perto. Tinha a mania de a assaltar quando ela passava com o pequeno almoço. Ao vê-lo distraído com uma galinha, aproveitou para sair para a grande viagem pelos pátios e corredores, desde a cozinha, ao fundo da casa, até ao quarto das meninas, no outro extremo. Em frente da porta de Rosa vacilou, apanhada pela força do pressentimento. Entrou no quarto sem se fazer anunciar, como era seu costume, e notou que cheirava a rosas apesar de não ser época de tais flores. Então a Ama soube que se tinha dado uma desgraça irreparável. Pôs a bandeja na mesa de cabeceira com cuidado e caminhou lentamente até à janela. Abriu as pesadas cortinas e o sol da manhã entrou no quarto. Voltou-se angustiada e não ficou surpresa ao ver Rosa morta, mais bela do que nunca, com o cabelo definitivamente verde, a pele cor de marfim novo e os olhos amarelos, abertos. Aos pés da cama estava a pequena Clara observando a irmã. A Ama ajoelhou-se junto da cama, pegou na mão de Rosa e começou a rezar. Ficou a rezar até que se ouviu por toda a casa um terrível lamento de barco perdido. Foi a primeira e última vez que Barrabás teve voz. Uivou todo o dia pela morta, até rebentar os nervos aos habitantes da casa e aos vizinhos, que acudiram atraídos por esse gemido de naufrágio. Ao doutor Cuevas bastou olhar o corpo de Rosa para saber que a morte se devia a algo muito mais grave que uma febre de trazer por casa. Começou a pesquisar por todos os lados, inspeccionou a cozinha, passou os dedos pelas caçarolas, abriu os sacos de farinha, os pacotes de açúcar, as caixas de frutas secas, revolveu tudo e tudo deixou espalhado na sua passagem como se fosse um furacão. Mexeu nas gavetas de Rosa, interrogou os criados um por um, acusou a Ama até pô-la fora de si e, finalmente, as suas pesquisas conduziram-no à garrafa de aguardente que inspeccionou sem hesitações. Não comunicou a ninguém as suas dúvidas, mas levou a garrafa para o laboratório. Três horas depois estava de volta com uma expressão de horror que lhe transformava o rosto rubicundo de fauno numa máscara pálida que não o abandonou durante todo esse caso terrível. Dirigiu-se a Severo, agarrou-o por um braço, chamou-o de parte: - Na aguardente havia suficiente veneno para rebentar um touro - segredou-lhe. - Mas para ter a certeza de que foi isso que matou a menina tenho de fazer uma autópsia. - Quer dizer que a vai abrir? - gemeu Severo. - Não completamente. Na cabeça não vou tocar, apenas no aparelho digestivo - explicou o doutor Cuevas. Severo sentiu-se enfraquecer. A essa hora Nívea estava esgotada de chorar, mas, quando soube que pensavam levar a filha para a morgue, recuperou a energia de repente. Só se acalmou com o juramento de que levariam Rosa directamente de casa para o Cemitério Católico. Então consentiu em tomar o calmante que o médico lhe deu e dormiu durante vinte horas. Ao anoitecer, Severo tratou dos preparativos. Mandou os filhos para a cama e autorizou os criados a retirarem-se mais cedo. Permitiu que Clara passasse a noite no quarto da outra irmã, porque a viu demasiado impressionada com o sucedido. Depois de se apagarem as luzes e da casa entrar no sossego, chegou o ajudante do doutor Cuevas, um jovem mirrado e míope que entaramelava a voz. Ajudaram Severo a transportar o corpo de Rosa para a cozinha e colocaram-no com delicadeza sobre o mármore onde a Ama amassava o pão e picava os legumes. Apesar da força do seu carácter, Severo não pôde resistir no momento em que tiraram a camisa de dormir da sua filha e apareceu a esplendorosa nudez de sereia. Saiu cambaleando, bêbado de dor e deixou-se cair no salão chorando como uma criança. Também o doutor Cuevas, que tinha visto nascer Rosa e a conhecia como a palma da mão, teve um sobressalto ao vê-la sem roupa. O jovem ajudante, por seu lado, começou a dar impressão de cansado e continuou ofegante pelos anos que se seguiram, cada vez que recordava a visão incrível de Rosa a dormir nua sobre a mesa da cozinha, com os grandes cabelos caindo como uma cascata vegetal até ao chão. Enquanto eles trabalhavam no ofício terrível, a Ama, cansada de chorar e de rezar, pressentindo que algo de estranho estava acontecendo nos seus territórios do terceiro pátio, levantou-se, embrulhou-se num xaile e saiu para dar uma volta à casa. Viu luz na cozinha, mas as portas e os postigos das janelas estavam fechados. Seguiu pelos corredores silenciosos e gelados, atravessando os três corpos da casa, até chegar ao salão. Pela porta entreaberta viu o patrão que se passeava com ar desolado. O lume da chaminé tinha-se apagado. A Ama entrou. - Onde está a menina Rosa? - perguntou. - O doutor Cuevas está com ela, Ama. Fica aqui e bebe um copo comigo - suplicou Severo. A Ama ficou de pé com os braços cruzados apertando o xaile contra o peito. Severo apontou-lhe o sofá e ela aproximou-se com timidez. Sentou-se a seu lado. Era a primeira vez que estava tão perto do patrão desde que vivia naquela casa. Severo encheu um cálice de xerez para cada um e bebeu o seu de um trago. Apertou a cabeça com os dedos arrepelando os cabelos e mastigando entre dentes uma incompreensível e triste ladainha. A Ama, que estava rigidamente na beira da cadeira, descontraiu-se ao vê-lo chorar. Estendeu a mão áspera e com um gesto automático alisou-lhe o cabelo com a mesma carícia que durante vinte anos tinha feito para consolar os filhos. Ele levantou os olhos e observou a face sem idade, as maçãs do rosto indígena, o carrapito negro, o amplo regaço onde tinha visto chorar e dormir todos os seus descendentes, e sentiu que aquela mulher quente e generosa como a terra podia dar-lhe consolo. Apoiou-lhe a testa na saia, aspirou o cheiro suave do avental engomado e rompeu a soluçar como uma criança, vertendo todas as lágrimas que tinha aguentado na sua vida de homem. A Ama caçou-lhe as costas, deu-lhe palmadinhas de consolo, falou-lhe a meia voz como fazia para adormecer os meninos, cantou-lhe em sussurro as suas baladas de camponesa, até que conseguiu tranquilizá-lo. Ficaram sentados muito juntos, bebendo xerez, chorando de vez em quando e lembrando os bons tempos em que Rosa corria pelo jardim surpreendendo as borboletas, com a sua beleza de fundo de mar. Na cozinha, o doutor Cuevas e o seu ajudante prepararam os sinistros utensílios e os frascos malcheirosos, puseram aventais de oleado, arregaçaram as mangas e começaram a esgravatar na intimidade da bela Rosa, até provar, sem lugar para dúvidas, que a jovem tinha ingerido um dose superlativa de veneno para ratazanas. - Isto estava destinado a Severo - concluiu o doutor lavando as mãos no lava-loiças. O ajudante, demasiado emocionado pela formosura da morta, não se resignava a deixá-la cosida como um saco e sugeriu arranjá-la um pouco mais. Dedicaram-se ambos à tarefa de preservar o corpo com unguentos e enchê-lo com emplastros de embalsamador. Trabalharam até às quatro da madrugada, hora em que o doutor Cuevas se declarou vencido pelo cansaço e pela tristeza e saiu. Na cozinha ficou Rosa nas mãos do ajudante, que a lavou com uma esponja, tirando-lhe as manchas de sangue, lhe vestiu a camisa bordada para tapar a costura que exibia desde a garganta até ao sexo e lhe deu um jeito no cabelo. Depois limpou os vestígios do seu trabalho. O doutor Cuevas encontrou no salão Severo acompanhado pela Ama, ébrio de pranto e xerez. - Está pronta - disse. - Arranjámo-la um pouco para que a mãe a possa ver. Explicou a Severo que as suas suspeitas eram fundadas e que no estômago de sua filha tinha encontrado a mesma substância mortal que existia na aguardente oferecida. Então Severo recordou-se da previsão de Clara e perdeu o resto da compostura, incapaz de resignar-se à ideia de que a filha tinha morrido em seu lugar. Caiu abatido, dizendo que era ele o culpado, por ser ambicioso e fanfarrão, que ninguém o tinha mandado meter-se na política, que estava muito melhor quando era um simples advogado e pai de família, que renunciava naquele momento e para sempre à maldita candidatura do Partido Liberal, às suas pompas e obras, que esperava que nenhum dos seus descendentes voltasse a misturar-se com a política, que isso era um negócio de aldrabões e bandidos, até que o doutor Cuevas teve dó dele, acabando de o embebedar. O xerez pôde mais que a dor e a culpa. A Ama e o doutor levaram-no em braços até ao quarto de dormir, despiram-no e meteram-no na cama. Depois foram à cozinha, onde o ajudante acabava de aprontar Rosa. Nívea e Severo del Valle despertaram tarde na manhã seguinte. Os parentes tinham ornamentado a casa para os ritos da morte, as cortinas estavam corridas, adornadas com crepes negros e ao longo das paredes alinhavam-se as coroas de flores que enchiam o ar com o seu aroma doce. Tinham feito uma câmara ardente na sala de jantar. Sobre a grande mesa, coberta com um pano negro de reflexos dourados, estava o caixão branco de Rosa com rebites de prata. Doze velas amarelas em candelabros de bronze iluminavam a jovem com luz difusa. Tinham-na vestido com o vestido de noiva e posto a coroa de flores de laranjeira em cera que guardava para o dia do casamento. Ao meio-dia começou o desfile de familiares, amigos e conhecidos a dar os pêsames e acompanhar os del Valle no seu luto. Apresentaram-se em casa até os seus mais encarniçados inimigos políticos e a todos Severo del Valle observou fixamente, procurando descobrir em cada par de olhos que via o segredo do assassino, mas em todos, inclusive no presidente do Partido Conservador, viu o mesmo pesar e a mesma inocência. Durante o velório, os cavalheiros circulavam pelos salões e corredores da casa, comentando em voz baixa os seus assuntos de negócios. Mantinham silêncio respeitoso quando se aproximava alguém da família. No momento de entrar na sala de jantar e aproximar-se do ataúde, para olhar Rosa pela última vez, todos estremeciam, porque a sua beleza não tinha senão aumentado naquelas horas. As senhoras passavam ao salão onde ordenaram em circulo as cadeiras da casa. Ali havia comodidade para chorar à vontade, desabafando as próprias tristezas com o bom pretexto da morte dos outros. O pranto era copioso, mas digno e calado. Algumas murmuravam orações em voz baixa. As criadas da casa circulavam pelos salões e corredores oferecendo chávenas de chá, cálices de conhaque, lenços limpos para as mulheres, bolos caseiros e pequenas compressas embebidas em amoníaco para as senhoras que sofriam de enjoos pelo ambiente fechado, o cheiro das velas e a dor. Todas as irmãs del Valle, menos Clara, que era ainda muito jovem, estavam vestidas de negro rigoroso, sentadas ao redor da mãe como uma roda de corvos. Nívea, que tinha chorado todas as lágrimas, mantinha-se rígida na cadeira, sem um suspiro, sem uma palavra e sem o alivio do amoníaco porque lhe causava alergias. Os visitantes que chegavam davam-lhe os pêsames. Alguns beijavam-na em ambas as faces, outros abraçavam-na estreitamente por alguns segundos, mas ela dava a impressão de não reconhecer nem os mais íntimos. Tinha visto morrer outros filhos na primeira infância ou ao nascer, mas nenhum lhe dera a sensação de perda que tinha naquele momento. Cada irmão despediu-se de Rosa com um beijo na testa gelada, menos Clara que não quis aproximar-se da sala de jantar. Não insistiram porque conheciam a sua extrema sensibilidade e a sua tendência para caminhar sonâmbula quando a imaginação se lhe agitava. Ficou no jardim, de cócoras ao lado de Barrabás, negando-se a comer ou a participar no velório. Só a Ama se preocupou com ela e procurou consolá-la, mas Clara mandou-a embora. Apesar das preocupações que Severo tomou para abafar os murmúrios, a morte de Rosa foi um escândalo público. O doutor Cuevas ofereceu a quem o quis ouvir a explicação perfeitamente razoável de que a morte da jovem se devia, segundo ele, a uma pneumonia fulminante. Mas corria o boato de que tinha sido envenenada por engano, em lugar de seu pai. Os assassinatos políticos eram desconhecidos no pais naquele tempo e o veneno, em qualquer caso, era um recurso de mulheres, algo desprestigiado e que não se usava desde a época colonial, porque mesmo os crimes passionais resolviam-se cara a cara. Elevou-se um clamor de protesto pelo atentado e, antes que Severo o pudesse evitar, saiu a noticia publicada num jornal da oposição, acusando veladamente a oligarquia e acrescentando que os conservadores até eram capazes de fazer isso, porque não podiam perdoar a Severo del Valle que, a despeito da sua classe social, se tivesse passado para o grupo liberal. A policia tentou seguir a pista da garrafa de aguardente, mas a única coisa que se apurou foi que não tinha a mesma origem que o porco cheio de perdizes e que os eleitores do Sul não tinham nada a ver com o assunto. A misteriosa garrafa foi encontrada por casualidade junto da porta de serviço da casa dos del Valle no mesmo dia e à mesma hora da chegada do porco assado. A cozinheira supôs que fazia parte do mesmo presente. Nem o zelo da policia nem as pequenas pesquisas que Severo realizou por sua conta, por intermédio de um detective privado, conseguiram descobrir os assassinos, e a sombra dessa vingança pendente ficou presente em gerações posteriores. Foi o primeiro dos muitos actos de violência que marcaram o destino da família. Recordo-me perfeitamente. Esse dia tinha sido muito feliz para mim porque tinha aparecido um novo veio, o abundante e maravilhoso filão que eu tinha perseguido durante todo aquele tempo de sacrifício, de ausência e de espera, e que poderia representar a riqueza que eu desejava. Estava certo de que em seis meses teria dinheiro suficiente para me casar e que dentro de um ano poderia começar a considerar-me um homem rico. Tive muita sorte, porque, no negócio de minas, eram mais os que se arruinavam do que os que triunfavam, como estava dizendo, escrevendo, a Rosa nessa tarde, tão eufórico, tão impaciente que os dedos travavamse- me nas teclas da velha máquina, saindo palavras pegadas. Estava nisto quando ouvi na porta as pancadas que me cortaram a respiração para sempre. Era um arrieiro com um par de mulas que me trazia um telegrama da povoação, enviado por minha irmã Férula, e que anunciava a morte de Rosa. Tive de ler o pedaço de papel três vezes até compreender o tamanho da minha desolação. A única ideia que não me tinha ocorrido era que Rosa fosse mortal. Sofri muito pensando que ela, aborrecida por esperar por mim, decidisse casar-se com outro, ou que nunca chegasse a aparecer o maldito filão que pusesse uma fortuna nas minhas mãos, ou que a mina se pudesse desmoronar, esmagando-me como uma barata. Considerei todas essas possibilidades e algumas mais, mas nunca a morte de Rosa, apesar do meu proverbial pessimismo, que me faz sempre esperar o pior. Senti que sem Rosa a vida não tinha significado para mim. Esvaziei-me por dentro como um balão picado, foi-se-me todo o entusiasmo. Fiquei sentado na cadeira olhando o deserto pela janela, quem sabe por quanto tempo, até que lentamente a alma me voltou ao corpo. A minha primeira reacção foi de cólera. Dei murros nos frágeis tabiques de madeira da casa até me sangrarem os nós das mãos, rasguei em mil pedaços as cartas, os desenhos de Rosa e as cópias das minhas cartas que eu tinha guardado, meti à pressa nas malas a minha roupa, os papéis e a bolsinha de lona onde estava o ouro e fui logo procurar o capataz para lhe entregar as jornas dos trabalhadores e as chaves da cantina. O arrieiro ofereceu-se para me acompanhar até ao comboio. Tivemos de viajar uma boa parte da noite a cavalo, com mantas de Castela como único abafo contra a morrinha, avançando com lentidão naquelas solidões intermináveis onde só o instinto do meu guia dava garantias de chegarmos ao destino, por não termos nenhum ponto de referência. A noite estava clara e estrelada, sentia o frio trespassar-me os ossos, apertar-me as mãos, entrando-me na alma. Ia pensando em Rosa e desejando com veemência irracional que a sua morte não fosse verdade, pedindo ao céu com desespero que tudo fosse engano ou que, reanimada pelo meu amor, recuperasse a vida e se levantasse do seu leito de morte, como Lázaro. Eu chorava por dentro, afundado na dor e no gelo da noite, cuspindo blasfémias contra a mula que andava tão devagar, contra Férula, portadora de desgraças, contra Rosa por ter morrido e contra Deus por o ter permitido, até que começou a amanhecer, vi desaparecer as estrelas e surgirem as primeiras cores do nascer do Sol, tingindo de vermelho e laranja a paisagem do Norte, e com a luz voltou-me algum alento. Comecei a resignar-me pela minha desgraça e a pedir, não já que ela ressuscitasse, mas apenas que eu conseguisse chegar a tempo de a ver antes de ser enterrada. Apressámos o passo e, uma hora mais tarde, o arrieiro despediu-se de mim na minúscula estação por onde o comboio de via reduzida unia o mundo civilizado com aquele deserto onde passei dois anos. Viajei mais de trinta horas sem parar nem para comer, esquecido até da sede, mas consegui chegar a casa da família del Valle antes do funeral. Dizem que entrei em casa coberto de pó, sem chapéu, sujo e barbudo, com sede e furioso, perguntando aos gritos pela minha noiva. A pequena Clara, que então era apenas uma menina magra e feia, veio ao meu encontro quando entrei no pátio, pegou-me na mão e levou-me silenciosamente à sala de jantar. Estava ali Rosa, entre as pregas brancas de cetim no caixão branco, conservada intacta três dias depois de morrer, e mil vezes mais bela do que eu me lembrava, porque Rosa na morte tinha-se transformado subtilmente na sereia que sempre fora em segredo. - Maldita seja! Fugiu-me das mãos! - dizem que disse, gritei, caindo de joelhos a seu lado, escandalizando os parentes, porque ninguém podia compreender a minha frustração por ter passado dois anos escavando a terra para me tornar rico, com o único propósito de levar um dia a jovem ao altar, e por fim a morte tinha-ma roubado. Momentos depois chegou a carreta, enorme, negra e reluzente, puxada por seis cavalos com penacho, como se usava então, e conduzida por dois cocheiros de libré. Saiu de casa a meio da tarde, debaixo de chuvisco fraco, seguida de uma procissão de carros que levavam os parentes, os amigos e as coroas de flores. Por costume, as mulheres e as crianças não assistiam aos enterros, isso era assunto de homens, mas Clara conseguiu à última da hora misturar-se com o cortejo, para acompanhar a irmã Rosa. Senti a sua mãozinha enluvada agarrada à minha e durante todo o trajecto tive-a a meu lado, pequena sombra silenciosa, que originava uma ternura desconhecida na minha alma. Nesse momento, eu nem dei conta que Clara não tinha pronunciado uma só palavra em dois dias, e passariam mais três antes que a família se alarmasse pelo seu silêncio. Severo del Valle e os filhos mais velhos levaram aos ombros o ataúde branco de Rosa com rebites de prata, e eles próprios o colocaram no nicho aberto do mausoléu. Iam de luto, silenciosos e sem lágrimas, como corresponde às normas de tristeza num pais habituado à dignidade da dor. Depois de fechadas as portas do túmulo e de se terem retirado os parentes, os amigos e os coveiros, fiquei ali, parado, entre as flores que escaparam às dentadas de Barrabás e acompanharam Rosa ao cemitério. Devo ter parecido um pássaro de Inverno, com a aba do casaco abanando ao vento, alto e fraco, como eu era nesse tempo, antes de se cumprir a maldição de Férula e começar a encolher. O céu estava cinzento ameaçando chuva. Suponho que fazia frio, mas julgo que o não sentia, porque a raiva consumia-me. Não podia despregar os olhos do pequeno rectângulo de mármore onde tinham gravado o nome de Rosa, a bela, e as datas que limitavam a sua curta passagem por este mundo, em altas letras góticas. Pensava que tinha perdido dois anos a sonhar com Rosa, a trabalhar para Rosa, a escrever a Rosa, a desejar Rosa e que no fim de tudo nem sequer tinha a consolação de ser enterrado a seu lado. Pensei nos anos que tinha para viver e cheguei à conclusão de que sem ela não valia a pena, porque nunca iria encontrar em todo o universo outra mulher com o cabelo verde e a sua formosura marinha. Se me tivessem dito que ia viver mais de noventa anos teria metido um balázio na cabeça. Não ouvi os passos do guarda do cemitério, que se aproximou por detrás de mim. Por isso surpreendi-me quando me tocou no ombro: - Como se atreve a tocar-me? - rugi. Recuou assustado, o pobre homem. Algumas gotas de chuva molhavam tristemente as flores dos mortos. - Desculpe, cavalheiro, são seis horas e tenho de fechar - julgo que me disse. Tentou explicar-me que o regulamento proibia que pessoas estranhas ao pessoal do cemitério permanecessem no recinto depois do pôr do Sol, mas não o deixei acabar, meti-lhe algumas notas na mão e empurrei-o para que se fosse embora e me deixasse em paz. Vi-o afastar-se olhando-me por cima do ombro. Deve ter pensado que eu era um louco, um desses dementes necrófilos que por vezes rondam os cemitérios. Foi uma longa noite, talvez a mais longa noite da minha vida. Passei-a sentado junto do túmulo de Rosa, falando com ela, acompanhando-a na primeira parte da sua viagem ao Mais- Além, quando é mais difícil desprendermo-nos da terra e se necessita do amor dos que ficam vivos, para ir pelo menos com o consolo de ter semeado alguma coisa no coração dos outros. Recordava o seu rosto perfeito e maldizia a minha sorte. Fiz notar a Rosa os anos que passei metido num buraco na mina, sonhando com ela. Não lhe disse que não tinha visto mais mulheres em todo esse tempo, além de miseráveis prostitutas envelhecidas e gastas, que serviam todo o acampamento com mais boa vontade do que mérito. Mas disse-lhe que tinha vivido entre homens rudes e sem lei, comendo grão-de-bico e bebendo água limosa, longe da civilização, pensando nela noite e dia, levando na alma a sua imagem como um estandarte que me dava forças para continuar picando a montanha, mesmo que desaparecesse o veio, doente do estômago a maior parte do ano, gelado de frio à noite e alucinado pelo calor durante o dia, tudo isso com o único fim de me casar com ela e eis que ela se vai embora e me morre à traição, antes que eu pudesse cumprir os meus sonhos, deixando-me uma desolação miserável. Disse-lhe que ela me tinha enganado, atirei-lhe à cara que nunca tínhamos estado completamente sós, que só a tinha podido beijar uma vez. Tinha mantido o amor com recordações e desejos compensadores, mas impossíveis de satisfazer, com cartas atrasadas e desbotadas que não podiam reflectir os meus sentimentos nem a dor da sua ausência, porque não tenho facilidade para o género epistolar e muito menos para escrever sobre as minhas emoções. Disse-lhe que esses anos na mina tinham sido uma perda irremediável, que se eu tivesse sabido que ela ia durar tão pouco neste mundo teria roubado o dinheiro necessário para casar com ela e construir um palácio ornamentado com tesouros do fundo do mar: corais, pérolas, nácar, onde a teria mantido sequestrada e onde só eu tivesse acesso. Tê-la-ia amado sem parar por um tempo quase infinito, porque estava certo de que se ela tivesse estado ao pé de mim não teria bebido o veneno destinado a seu pai e teria durado mil anos. Falei-lhe das caricias que tinha reservadas para ela, dos presentes com que lhe iria fazer surpresa, da forma como a teria tornado enamorada e feliz. Nessa noite acreditei que tinha perdido para sempre a capacidade de me apaixonar, que nunca mais podia rir-me nem perseguir uma ilusão. Mas nunca mais é muito tempo. Tirei a prova disso ao longo da vida. Vi a raiva crescer dentro de mim como um tumor maligno, manchando as melhores horas da minha existência, incapacitando-me para a ternura ou para a clemência. Mas, acima da confusão e da ira, o sentimento mais forte que me lembro ter tido nessa noite foi o desejo frustrado, porque jamais poderia realizar o desejo de afagar Rosa com as mãos, de penetrar nos seus segredos, de soltar o verde manancial do seu cabelo e afundarme nas suas águas mais profundas. Evoquei com desespero a última imagem que tinha dela, recortada entre as pregas de cetim do seu ataúde virginal, com a flor de laranjeira de noiva coroando-lhe a cabeça e um rosário entre os dedos. Não sabia que assim mesmo, com a flor de laranjeira e o rosário, tornaria a vê-la por um instante fugaz muitos anos mais tarde. Com as primeiras luzes do amanhecer, o guarda voltou. Deve ter sentido pena por aquele louco semicongelado que tinha passado a noite entre os lívidos fantasmas do cemitério e estendeu-me o cantil: - É chá quente. Beba um pouco, senhor - ofereceu-me. Mas eu repeli-o com um empurrão e afastei-me, rogando pragas, a grandes passadas raivosas por entre as fileiras de tumbas e ciprestes. Na noite em que o doutor Cuevas e o seu ajudante estriparam o cadáver de Rosa na cozinha, para descobrir a causa da sua morte, Clara estava na cama com os olhos abertos, tremendo no escuro. Tinha a terrível dúvida de que a irmã morrera porque ela o tinha dito. Acreditava que, assim como a força da sua mente podia mover o saleiro, igualmente podia ser a causa das mortes, dos tremores de terra e de outras desgraças maiores. A mãe tinha-lhe explicado em vão que ela não podia provocar os acontecimentos, apenas os podia ver com alguma antecipação. Sentia-se desolada e culpada, e pensou que se pudesse estar com Rosa sentir-se-ia melhor. Levantou-se descalça, em camisa, e entrou no quarto de dormir que tinha compartilhado com a irmã mais velha, mas não a encontrou na cama, onde a tinha visto pela última vez. Saiu para a procurar pela casa. Tudo estava escuro e silencio o. A mãe dormia drogada pelo doutor Cuevas, e os irmãos e os criados tinham-se retirado mais cedo para os seus quartos. Percorreu os salões, deslizando agarrada às paredes, assustada e gelada. Os móveis pesados, as grossas cortinas drapejadas, os quadros nas paredes, o papel com as suas flores pintadas sobre pano escuro, os candeeiros apagados oscilando nos tectos e os matagais de fetos sobre colunas de loiça pareceram-lhe ameaçadores. Notou que no salão brilhava um pouco de luz por uma frincha debaixo da porta. Esteve vai não vai para entrar, mas receou encontrar o pai e que ele a mandasse de volta para a cama. Dirigiu-se então para a cozinha, pensando que no peito da Ama encontraria aconchego. Cruzou o pátio principal, entre as camélias e as laranjeiras anãs, atravessou os salões do segundo corpo da casa e os sombrios corredores abertos, onde as luzes ténues dos candeeiros a gás ficavam acesas toda a noite, a oscilar durante os tremores de terra e a espantar os morcegos e outros bichos nocturnos, e chegou ao terceiro pátio, onde estavam as dependências de serviço e as cozinhas. Ali, a casa perdia o aspecto senhorial, começava a desordem dos canis, dos galinheiros e os quartos dos serviçais. Mais para a frente estava a cavalariça, onde se guardavam os velhos cavalos que Nívea ainda usava, apesar de Severo del Valle ter sido um dos primeiros a comprar um automóvel. A porta e os postigos da cozinha e o reposteiro estavam fechados. O instinto advertiu Clara de que algo de anormal se estava a passar lá dentro; tratou de espreitar, mas o nariz não lhe chegava ao peitoril da janela e teve de arrastar um caixote e encostá-lo à parede; trepou e pôde olhar por um buraco entre o postigo de madeira e o peitoril da janela que a humidade e o tempo tinham deformado. E foi então que viu o interior. O doutor Cuevas, esse homem grande, bonacheirão e doce, de farta barba e ventre opulento, que a ajudara a nascer e a tratara em todas as doenças da infância e ataques de asma, tinha-se transformado num vampiro gordo e escuro como os das ilustrações do tio Marcos. Estava inclinado sobre a mesa onde a Ama preparava a comida. A seu lado estava um jovem desconhecido, pálido como a lua, com a camisa manchada de sangue e os olhos perdidos de amor. Viu as pernas branquinhas de sua irmã e os seus pés nus. Clara começou a tremer. Nesse momento, o doutor Cuevas afastou-se e ela pôde ver o horrendo espectáculo de Rosa estendida de costas, sobre o mármore, aberta de alto a baixo por um golpe profundo, com os intestinos postos ao lado dentro da saladeira. Rosa tinha a cabeça virada em direcção à janela de onde ela estava espiando, e o seu cabelo verde compridíssimo caia como um feto da mesa até aos azulejos do chão, manchados de vermelho. Tinha os olhos fechados, mas a menina, por efeito das sombras, da distância e da imaginação, julgou ver-lhe uma expressão suplicante e humilhada. Clara, imóvel sobre o caixote, não pôde deixar de olhar até ao fim. Ficou espreitando pela frincha muito tempo, arrefecendo sem dar por isso, até que os dois homens acabaram de esvaziar Rosa, de injectar-lhe líquidos nas veias e banhá-la por dentro e por fora com vinagre aromático e essência de alfazema. Ficou ali até que a encheram de emplastros de embalsamador e a coseram com uma agulha de colchoeiro. Ficou até que o doutor Cuevas se lavou no lava-loiças e enxugou as lágrimas, enquanto o outro limpava o sangue e as vísceras. Ficou até que o médico saiu, vestindo o casaco negro com um gesto de tristeza mortal. Ficou até que o jovem desconhecido beijou Rosa nos lábios, no pescoço, nos seios, entre as pernas, a lavou com uma esponja, lhe vestiu a camisa bordada e lhe ajeitou o cabelo, arquejando de cansaço. Ficou até que o ajudante a carregou nos braços com a mesma ternura comovente que teria tido ao pegar-lhe ao colo para passar pela primeira vez a porta de uma casa, se tivesse sido sua noiva. E não conseguiu mover-se até aparecerem as primeiras luzes. Então deslizou até à cama, sentindo por dentro todo o silêncio do mundo. O silêncio encheu-a por inteiro e não tornou a falar durante nove anos, até puxar da voz para anunciar que se ia casar. Recordo-me perfeitamente. Esse dia tinha sido muito feliz para mim porque tinha aparecido um novo veio, o abundante e maravilhoso filão que eu tinha perseguido durante todo aquele tempo de sacrifício, de ausência e de espera, e que poderia representar a riqueza que eu desejava. Estava certo de que em seis meses teria dinheiro suficiente para me casar e que dentro de um ano poderia começar a considerar-me um homem rico. Tive muita sorte, porque, no negócio de minas, eram mais os que se arruinavam do que os que triunfavam, como estava dizendo, escrevendo, a Rosa nessa tarde, tão eufórico, tão impaciente que os dedos travavamse- me nas teclas da velha máquina, saindo palavras pegadas. Estava nisto quando ouvi na porta as pancadas que me cortaram a respiração para sempre. Era um arrieiro com um par de mulas que me trazia um telegrama da povoação, enviado por minha irmã Férula, e que anunciava a morte de Rosa. Tive de ler o pedaço de papel três vezes até compreender o tamanho da minha desolação. A única ideia que não me tinha ocorrido era que Rosa fosse mortal. Sofri muito pensando que ela, aborrecida por esperar por mim, decidisse casar-se com outro, ou que nunca chegasse a aparecer o maldito filão que pusesse uma fortuna nas minhas mãos, ou que a mina se pudesse desmoronar, esmagando-me como uma barata. Considerei todas essas possibilidades e algumas mais, mas nunca a morte de Rosa, apesar do meu proverbial pessimismo, que me faz sempre esperar o pior. Senti que sem Rosa a vida não tinha significado para mim. Esvaziei-me por dentro como um balão picado, foi-se-me todo o entusiasmo. Fiquei sentado na cadeira olhando o deserto pela janela, quem sabe por quanto tempo, até que lentamente a alma me voltou ao corpo. A minha primeira reacção foi de cólera. Dei murros nos frágeis tabiques de madeira da casa até me sangrarem os nós das mãos, rasguei em mil pedaços as cartas, os desenhos de Rosa e as cópias das minhas cartas que eu tinha guardado, meti à pressa nas malas a minha roupa, os papéis e a bolsinha de lona onde estava o ouro e fui logo procurar o capataz para lhe entregar as jornas dos trabalhadores e as chaves da cantina. O arrieiro ofereceu-se para me acompanhar até ao comboio. Tivemos de viajar uma boa parte da noite a cavalo, com mantas de Castela como único abafo contra a morrinha, avançando com lentidão naquelas solidões intermináveis onde só o instinto do meu guia dava garantias de chegarmos ao destino, por não termos nenhum ponto de referência. A noite estava clara e estrelada, sentia o frio trespassarme os ossos, apertar-me as mãos, entrando-me na alma. Ia pensando em Rosa e desejando com veemência irracional que a sua morte não fosse verdade, pedindo ao céu com desespero que tudo fosse engano ou que, reanimada pelo meu amor, recuperasse a vida e se levantasse do seu leito de morte, como Lázaro. Eu chorava por dentro, afundado na dor e no gelo da noite, cuspindo blasfémias contra a mula que andava tão devagar, contra Férula, portadora de desgraças, contra Rosa por ter morrido e contra Deus por o ter permitido, até que começou a amanhecer, vi desaparecer as estrelas e surgirem as primeiras cores do nascer do Sol, tingindo de vermelho e laranja a paisagem do Norte, e com a luz voltou-me algum alento. Comecei a resignar-me pela minha desgraça e a pedir, não já que ela ressuscitasse, mas apenas que eu conseguisse chegar a tempo de a ver antes de ser enterrada. Apressámos o passo e, uma hora mais tarde, o arrieiro despediu-se de mim na minúscula estação por onde o comboio de via reduzida unia o mundo civilizado com aquele deserto onde passei dois anos. Viajei mais de trinta horas sem parar nem para comer, esquecido até da sede, mas consegui chegar a casa da família del Valle antes do funeral. Dizem que entrei em casa coberto de pó, sem chapéu, sujo e barbudo, com sede e furioso, perguntando aos gritos pela minha noiva. A pequena Clara, que então era apenas uma menina magra e feia, veio ao meu encontro quando entrei no pátio, pegou-me na mão e levou-me silenciosamente à sala de jantar. Estava ali Rosa, entre as pregas brancas de cetim no caixão branco, conservada intacta três dias depois de morrer, e mil vezes mais bela do que eu me lembrava, porque Rosa na morte tinha-se transformado subtilmente na sereia que sempre fora em segredo. - Maldita seja! Fugiu-me das mãos! - dizem que disse, gritei, caindo de joelhos a seu lado, escandalizando os parentes, porque ninguém podia compreender a minha frustração por ter passado dois anos escavando a terra para me tornar rico, com o único propósito de levar um dia a jovem ao altar, e por fim a morte tinha-ma roubado. Momentos depois chegou a carreta, enorme, negra e reluzente, puxada por seis cavalos com penacho, como se usava então, e conduzida por dois cocheiros de libré. Saiu de casa a meio da tarde, debaixo de chuvisco fraco, seguida de uma procissão de carros que levavam os parentes, os amigos e as coroas de flores. Por costume, as mulheres e as crianças não assistiam aos enterros, isso era assunto de homens, mas Clara conseguiu à última da hora misturar-se com o cortejo, para acompanhar a irmã Rosa. Senti a sua mãozinha enluvada agarrada à minha e durante todo o trajecto tive-a a meu lado, pequena sombra silenciosa, que originava uma ternura desconhecida na minha alma. Nesse momento, eu nem dei conta que Clara não tinha pronunciado uma só palavra em dois dias, e passariam mais três antes que a família se alarmasse pelo seu silêncio. Severo del Valle e os filhos mais velhos levaram aos ombros o ataúde branco de Rosa com rebites de prata, e eles próprios o colocaram no nicho aberto do mausoléu. Iam de luto, silenciosos e sem lágrimas, como corresponde às normas de tristeza num pais habituado à dignidade da dor. Depois de fechadas as portas do túmulo e de se terem retirado os parentes, os amigos e os coveiros, fiquei ali, parado, entre as flores que escaparam às dentadas de Barrabás e acompanharam Rosa ao cemitério. Devo ter parecido um pássaro de Inverno, com a aba do casaco abanando ao vento, alto e fraco, como eu era nesse tempo, antes de se cumprir a maldição de Férula e começar a encolher. O céu estava cinzento ameaçando chuva. Suponho que fazia frio, mas julgo que o não sentia, porque a raiva consumia-me. Não podia despregar os olhos do pequeno rectângulo de mármore onde tinham gravado o nome de Rosa, a bela, e as datas que limitavam a sua curta passagem por este mundo, em altas letras góticas. Pensava que tinha perdido dois anos a sonhar com Rosa, a trabalhar para Rosa, a escrever a Rosa, a desejar Rosa e que no fim de tudo nem sequer tinha a consolação de ser enterrado a seu lado. Pensei nos anos que tinha para viver e cheguei à conclusão de que sem ela não valia a pena, porque nunca iria encontrar em todo o universo outra mulher com o cabelo verde e a sua formosura marinha. Se me tivessem dito que ia viver mais de noventa anos teria metido um balázio na cabeça. Não ouvi os passos do guarda do cemitério, que se aproximou por detrás de mim. Por isso surpreendi-me quando me tocou no ombro: - Como se atreve a tocar-me? - rugi. Recuou assustado, o pobre homem. Algumas gotas de chuva molhavam tristemente as flores dos mortos. - Desculpe, cavalheiro, são seis horas e tenho de fechar - julgo que me disse. Tentou explicar-me que o regulamento proibia que pessoas estranhas ao pessoal do cemitério permanecessem no recinto depois do pôr do Sol, mas não o deixei acabar, meti-lhe algumas notas na mão e empurrei-o para que se fosse embora e me deixasse em paz. Vi-o afastar-se olhando-me por cima do ombro. Deve ter pensado que eu era um louco, um desses dementes necrófilos que por vezes rondam os cemitérios. Foi uma longa noite, talvez a mais longa noite da minha vida. Passei-a sentado junto do túmulo de Rosa, falando com ela, acompanhando-a na primeira parte da sua viagem ao Mais- Além, quando é mais difícil desprendermo-nos da terra e se necessita do amor dos que ficam vivos, para ir pelo menos com o consolo de ter semeado alguma coisa no coração dos outros. Recordava o seu rosto perfeito e maldizia a minha sorte. Fiz notar a Rosa os anos que passei metido num buraco na mina, sonhando com ela. Não lhe disse que não tinha visto mais mulheres em todo esse tempo, além de miseráveis prostitutas envelhecidas e gastas, que serviam todo o acampamento com mais boa vontade do que mérito. Mas disse-lhe que tinha vivido entre homens rudes e sem lei, comendo grão-de-bico e bebendo água limosa, longe da civilização, pensando nela noite e dia, levando na alma a sua imagem como um estandarte que me dava forças para continuar picando a montanha, mesmo que desaparecesse o veio, doente do estômago a maior parte do ano, gelado de frio à noite e alucinado pelo calor durante o dia, tudo isso com o único fim de me casar com ela e eis que ela se vai embora e me morre à traição, antes que eu pudesse cumprir os meus sonhos, deixando-me uma desolação miserável. Disse-lhe que ela me tinha enganado, atirei-lhe à cara que nunca tínhamos estado completamente sós, que só a tinha podido beijar uma vez. Tinha mantido o amor com recordações e desejos compensadores, mas impossíveis de satisfazer, com cartas atrasadas e desbotadas que não podiam reflectir os meus sentimentos nem a dor da sua ausência, porque não tenho facilidade para o género epistolar e muito menos para escrever sobre as minhas emoções. Disse-lhe que esses anos na mina tinham sido uma perda irremediável, que se eu tivesse sabido que ela ia durar tão pouco neste mundo teria roubado o dinheiro necessário para casar com ela e construir um palácio ornamentado com tesouros do fundo do mar: corais, pérolas, nácar, onde a teria mantido sequestrada e onde só eu tivesse acesso. Tê-la-ia amado sem parar por um tempo quase infinito, porque estava certo de que se ela tivesse estado ao pé de mim não teria bebido o veneno destinado a seu pai e teria durado mil anos. Falei-lhe das caricias que tinha reservadas para ela, dos presentes com que lhe iria fazer surpresa, da forma como a teria tornado enamorada e feliz. Nessa noite acreditei que tinha perdido para sempre a capacidade de me apaixonar, que nunca mais podia rir-me nem perseguir uma ilusão. Mas nunca mais é muito tempo. Tirei a prova disso ao longo da vida. Vi a raiva crescer dentro de mim como um tumor maligno, manchando as melhores horas da minha existência, incapacitando-me para a ternura ou para a clemência. Mas, acima da confusão e da ira, o sentimento mais forte que me lembro ter tido nessa noite foi o desejo frustrado, porque jamais poderia realizar o desejo de afagar Rosa com as mãos, de penetrar nos seus segredos, de soltar o verde manancial do seu cabelo e afundarme nas suas águas mais profundas. Evoquei com desespero a última imagem que tinha dela, recortada entre as pregas de cetim do seu ataúde virginal, com a flor de laranjeira de noiva coroando-lhe a cabeça e um rosário entre os dedos. Não sabia que assim mesmo, com a flor de laranjeira e o rosário, tornaria a vê-la por um instante fugaz muitos anos mais tarde. Com as primeiras luzes do amanhecer, o guarda voltou. Deve ter sentido pena por aquele louco semicongelado que tinha passado a noite entre os lívidos fantasmas do cemitério e estendeu-me o cantil: - É chá quente. Beba um pouco, senhor - ofereceu-me. Mas eu repeli-o com um empurrão e afastei-me, rogando pragas, a grandes passadas raivosas por entre as fileiras de tumbas e ciprestes. Na noite em que o doutor Cuevas e o seu ajudante estriparam o cadáver de Rosa na cozinha, para descobrir a causa da sua morte, Clara estava na cama com os olhos abertos, tremendo no escuro. Tinha a terrível dúvida de que a irmã morrera porque ela o tinha dito. Acreditava que, assim como a força da sua mente podia mover o saleiro, igualmente podia ser a causa das mortes, dos tremores de terra e de outras desgraças maiores. A mãe tinha-lhe explicado em vão que ela não podia provocar os acontecimentos, apenas os podia ver com alguma antecipação. Sentia-se desolada e culpada, e pensou que se pudesse estar com Rosa sentir-se-ia melhor. Levantou-se descalça, em camisa, e entrou no quarto de dormir que tinha compartilhado com a irmã mais velha, mas não a encontrou na cama, onde a tinha visto pela última vez. Saiu para a procurar pela casa. Tudo estava escuro e silencioso. A mãe dormia drogada pelo doutor Cuevas, e os irmãos e os criados tinham-se retirado mais cedo para os seus quartos. Percorreu os salões, deslizando agarrada às paredes, assustada e gelada. Os móveis pesados, as grossas cortinas drapejadas, os quadros nas paredes, o papel com as suas flores pintadas sobre pano escuro, os candeeiros apagados oscilando nos tectos e os matagais de fetos sobre colunas de loiça pareceram-lhe ameaçadores. Notou que no salão brilhava um pouco de luz por uma frincha debaixo da porta. Esteve vai não vai para entrar, mas receou encontrar o pai e que ele a mandasse de volta para a cama. Dirigiu-se então para a cozinha, pensando que no peito da Ama encontraria aconchego. Cruzou o pátio principal, entre as camélias e as laranjeiras anãs, atravessou os salões do segundo corpo da casa e os sombrios corredores abertos, onde as luzes ténues dos candeeiros a gás ficavam acesas toda a noite, a oscilar durante os tremores de terra e a espantar os morcegos e outros bichos nocturnos, e chegou ao terceiro pátio, onde estavam as dependências de serviço e as cozinhas. Ali, a casa perdia o aspecto senhorial, começava a desordem dos canis, dos galinheiros e os quartos dos serviçais. Mais para a frente estava a cavalariça, onde se guardavam os velhos cavalos que Nívea ainda usava, apesar de Severo del Valle ter sido um dos primeiros a comprar um automóvel. A porta e os postigos da cozinha e o reposteiro estavam fechados. O instinto advertiu Clara de que algo de anormal se estava a passar lá dentro; tratou de espreitar, mas o nariz não lhe chegava ao peitoril da janela e teve de arrastar um caixote e encostá-lo à parede; trepou e pôde olhar por um buraco entre o postigo de madeira e o peitoril da janela que a humidade e o tempo tinham deformado. E foi então que viu o interior. O doutor Cuevas, esse homem grande, bonacheirão e doce, de farta barba e ventre opulento, que a ajudara a nascer e a tratara em todas as doenças da infância e ataques de asma, tinha-se transformado num vampiro gordo e escuro como os das ilustrações do tio Marcos. Estava inclinado sobre a mesa onde a Ama preparava a comida. A seu lado estava um jovem desconhecido, pálido como a lua, com a camisa manchada de sangue e os olhos perdidos de amor. Viu as pernas branquinhas de sua irmã e os seus pés nus. Clara começou a tremer. Nesse momento, o doutor Cuevas afastou-se e ela pôde ver o horrendo espectáculo de Rosa estendida de costas, sobre o mármore, aberta de alto a baixo por um golpe profundo, com os intestinos postos ao lado dentro da saladeira. Rosa tinha a cabeça virada em direcção à janela de onde ela estava espiando, e o seu cabelo verde compridíssimo caia como um feto da mesa até aos azulejos do chão, manchados de vermelho. Tinha os olhos fechados, mas a menina, por efeito das sombras, da distância e da imaginação, julgou ver-lhe uma expressão suplicante e humilhada. Clara, imóvel sobre o caixote, não pôde deixar de olhar até ao fim. Ficou espreitando pela frincha muito tempo, arrefecendo sem dar por isso, até que os dois homens acabaram de esvaziar Rosa, de injectar-lhe líquidos nas veias e banhá-la por dentro e por fora com vinagre aromático e essência de alfazema. Ficou ali até que a encheram de emplastros de embalsamador e a coseram com uma agulha de colchoeiro. Ficou até que o doutor Cuevas se lavou no lava-loiças e enxugou as lágrimas, enquanto o outro limpava o sangue e as vísceras. Ficou até que o médico saiu, vestindo o casaco negro com um gesto de tristeza mortal. Ficou até que o jovem desconhecido beijou Rosa nos lábios, no pescoço, nos seios, entre as pernas, a lavou com uma esponja, lhe vestiu a camisa bordada e lhe ajeitou o cabelo, arquejando de cansaço. Ficou até que o ajudante a carregou nos braços com a mesma ternura comovente que teria tido ao pegar-lhe ao colo para passar pela primeira vez a porta de uma casa, se tivesse sido sua noiva. E não conseguiu mover-se até aparecerem as primeiras luzes. Então deslizou até à cama, sentindo por dentro todo o silêncio do mundo. O silêncio encheu-a por inteiro e não tornou a falar durante nove anos, até puxar da voz para anunciar que se ia casar. Capítulo II Las Tres Marias Na sala de jantar da casa, entre móveis antiquados e maltratados que num passado longínquo tinham sido boas peças vitorianas, Esteban Trueba jantava com a irmã Férula a mesma sopa gordurosa de todos os dias e o mesmo peixe insípido de todas as sextas-feiras. Eram servidos por uma criada que os tinha atendido toda a vida, na tradição dos escravos pagos desse tempo. A velha ia e vinha entre a cozinha e a sala, curvada e meio cega, mas ainda enérgica, levando e trazendo as travessas com ar solene. Dona Ester Trueba não acompanhava os filhos à mesa. Passava as manhãs imóvel na cadeira, olhando pela janela o movimento da rua, vendo como o decorrer dos anos ia deteriorando o bairro que na sua juventude tinha sido distinto. Depois do almoço, mudavam-na para a cama, instalando-a de modo a que pudesse estar meio sentada, única posição que a artrite lhe permitia, sem mais companhia que as leituras beatas dos seus livrinhos pios de vidas e milagres dos santos. Ficava ali até ao dia seguinte, em que tornava a repetir-se a mesma rotina. A sua única saída à rua era para assistir à missa do domingo na Igreja de São Sebastião, a dois passos da casa, onde Férula e a criada a levavam na cadeira de rodas. Esteban acabou de esgravatar no peixe esbranquiçado entre o emaranhado de espinhas e poisou os talheres no prato. Sentava-se rígido, tal como caminhava, muito direito, com a cabeça ligeiramente inclinada para trás e um pouco de lado, olhando de traves, com uma mistura de altivez, desconfiança e miopia. Essa atitude seria desagradável se os seus olhos não fossem surpreendentemente doces e claros. A posição, tão dura, era própria de um homem forte e baixo que quisesse parecer mais alto, mas ele media um metro e oitenta e era muito magro. Todas as linhas do seu corpo eram verticais e ascendentes, desde o nariz afiado e adunco e as sobrancelhas em bico até à testa alta coroada por uma juba de leão que penteava para trás. Tinha ossos largos e mãos com dedos espalmados. Caminhava com grandes passadas, movia-se com energia e parecia muito forte, sem lhe faltar, contudo, certa graça nos gestos. Tinha um rosto muito harmonioso, apesar do gesto austero e sombrio e da frequente expressão de mau humor. O seu traço predominante era o mau génio e a tendência para se tornar violento e perder a cabeça, característica que tinha desde a infância, quando se atirava ao chão, com a boca cheia de espuma, sem poder respirar, de raiva, torcendo-se como um endemoninhado. Tinham de o mergulhar em água gelada para recuperar o controlo. Mais tarde aprendeu a dominar-se, mas ficou-lhe para o resto da vida aquela ira sempre pronta que precisava de pouco estímulo para rebentar em ataques terríveis. - Não volto à mina - disse. Era a primeira frase que trocava à mesa. Decidira isso com a irmã, na noite anterior, ao dar conta que não tinha sentido continuar a fazer vida de eremita em busca de uma riqueza rápida. Tinha a concessão da mina por mais dois anos, tempo suficiente para explorar bem o maravilhoso filão que descobrira, mas pensava que, embora o capataz o roubasse um pouco ou não soubesse explorá-la como ele, não havia nenhuma razão para se ir enterrar no deserto. Não desejava tornar-se rico à custa de tantos sacrifícios. Tinha a vida à sua frente para enriquecer se pudesse, para chatear-se e esperar a morte, sem Rosa. - Tens de trabalhar nalguma coisa, Esteban - disse Férula. - Sabes que gastamos muito pouco, quase nada, mas os remédios da mamã são caros. Esteban olhou a irmã. Era ainda uma linda mulher de formas opulentas e rosto ovalado de madona romana, mas, através da pele pálida com reflexos de pêssego e os olhos cheios de sombras, adivinhava-se já a fealdade da resignação. Dormia no quarto a seguir ao de Dona Ester, disposta a acudir correndo para ao pé dela para lhe dar as mezinhas, pôr-lhe a arrastadeira, aconchegar-lhe as almofadas. Tinha uma alma atormentada. Comprazia-se na humilhação e nos trabalhos abjectos, acreditava que ia conseguir o céu pelo processo terrível de sofrer injustiças, por isso sentia prazer em limpar as pústulas das pernas doentes da mãe, lavando-a, afundando-se nos seus cheiros e misérias, investigando-lhe o bacio. Odiava-se tanto a si própria por esses prazeres tortuosos e inconfessáveis como tinha ódio a sua mãe por servir de instrumento para isso. Atendia-a sem se queixar, mas procurava com subtileza fazerlhe pagar o preço da sua invalidez. Sem o dizer abertamente, estava presente entre as duas o facto de que a filha tinha sacrificado a sua vida para cuidar da mãe, e que, por isso, tinha ficado solteira. Férula tinha deixado dois noivos com o pretexto da doença da mãe. Não falava disso, mas toda a gente sabia. Tinha gestos bruscos e rudes, com o mesmo mau carácter do irmão, mas era obrigada pela vida, e pela sua condição de mulher, a dominar-se, e a morder o freio. Parecia tão perfeita que chegou a ter fama de santa. Citavam-na como exemplo pela dedicação que Ester tinha por ela e pela maneira como tinha criado o seu único irmão quando a mãe caiu doente e o pai morreu deixando-os na miséria. Férula adorara o irmão Esteban quando era menino. Dormia com ele, dava-lhe banho, levava-o a passear, trabalhava de sol a sol cosendo roupa para fora para lhe pagar o colégio, e chorou de raiva e impotência no dia em que Esteban teve de começar a trabalhar num cartório porque em casa o que ela ganhava para comer não chegava. Tinha-o cuidado e servido como fazia agora com a mãe, envolvendoo também a ele na rede invisível da culpabilidade e das dividas de gratidão por pagar. O rapaz começou a afastar-se dela mal pôs calças compridas. Esteban podia recordar o momento exacto em que se deu conta que a irmã era um sombra fatídica. Foi quando ganhou o primeiro salário. Decidiu que guardaria para si cinquenta centavos para realizar um sonho que acarinhava desde a infância: tomar um café vienense. Tinha visto, através das janelas do Hotel Francês, os empregados que passavam com as bandejas no ar levando tesouros: copos grandes de cristal coroados por torres de creme batido e decorados com uma linda ginja cristalizada. No dia do seu primeiro salário passou diante do estabelecimento muitas vezes antes de se atrever a entrar. Finalmente passou com timidez a porta, com a boina na mão, e avançou até à luxuosa sala, entre lustres e móveis de estilo, com a sensação de que toda a gente olhava para ele, que mil olhos criticavam o seu fato demasiado apertado e os seus sapatos velhos. Sentou-se na beira da cadeira, com as orelhas a escaldar, e fez o pedido ao empregado com uma voz sumida. Esperou impaciente, espiando nos espelhos o ir e vir das pessoas, saboreando de antemão o prazer tantas vezes imaginado. Chegou finalmente o seu café vienense, muito mais impressionante do que imaginara, soberbo, delicioso e acompanhado por três frasquinhos de mel. Contemplou-o longamente fascinado, por fim atreveu-se a pegar na colher de cabo grande e, com um suspiro de felicidade, mergulhou-a no crome. Sentia água na boca. Estava disposto a fazer durar aquele instante o mais possível, esticá-lo até ao infinito. Começou a mexer, vendo como se misturava o liquido escuro do copo com a espuma do creme. Mexeu, mexeu, mexeu... E, de repente, a ponta da colher bateu no cristal, abrindo um orifício por onde saltou o café em jorro. Caiu-lhe na roupa. Esteban, horrorizado, viu todo o conteúdo do copo espalhar-se sobre o seu único fato, ante o olhar divertido dos ocupantes das outras mesas. Pagou, pálido de frustração, e saiu do Hotel Francês com cinquenta centavos a menos, deixando à sua passagem um rego de café vienense nas macias alcatifas. Chegou a casa humilhado, furioso, perturbado. Quando Férula soube o que tinha sucedido, comentou com azedume: «Isso aconteceu por gastares o dinheiro dos remédios da mamã com os teus caprichos. Deus castigou-te.» Nesse momento, Esteban viu perfeitamente os mecanismos que sua irmã usava para dominar, a forma como conseguia fazê-lo sentir-se culpado, e compreendeu que devia libertar-se. à medida que se foi afastando da sua tutela, Férula foi antipatizando com ele. A liberdade que ele tinha, doía-lhe a ela como uma acusação, como uma injustiça. Quando se enamorou de Rosa e ela o viu desesperado, como um garoto, pedindo-lhe ajuda, necessitando dela, perseguindo-a pela casa para lhe suplicar que se aproximasse da família del Valle, que falasse a Rosa, que subornasse a Ama, Férula voltou a sentir-se importante para Esteban. Por algum tempo pareceram reconciliados. Mas aquele encontro não durou muito e Férula não tardou ver que tinha sido utilizada. Alegrou-se quando viu partir o irmão para a mina. Desde que começou a trabalhar, aos quinze anos, Esteban manteve a casa e assumiu o compromisso de o fazer sempre, mas para Férula isso não era suficiente. Sentia-se mal por ter de ficar fechada entre aquelas paredes hediondas, com velhice e remédios, acordada pelos gemidos da doente, atenta ao relógio para lhe dar os remédios, aborrecida, cansada, triste, enquanto o irmão ignorava essas obrigações. Ele podia ter um destino luminoso, livre, cheio de êxitos. Podia casar-se, ter filhos, conhecer o amor. No dia em que mandou o telegrama anunciando-lhe a morte de Rosa sentiu um formigueiro estranho, quase de alegria. - Tens de trabalhar em alguma coisa - repetiu Férula. - Nunca vos faltará nada enquanto eu viver - disse ele. - É fácil de dizer - respondeu Férula, enquanto tirava uma espinha de peixe dos dentes. - Penso que vou para o campo, para Las Tres Marias. - Isso são ruínas, Esteban. Sempre te disse que é melhor vender essa terra, mas tu és teimoso que nem um burro. - Nunca se deve vender a terra. É a única coisa que fica quando o resto se acaba. - Não estou de acordo. A terra é uma ideia romântica, o que enriquece os homens é o bom faro para os negócios – defendeu Férula. - Mas tu dizias sempre que um dia ias viver para o campo. - Esse dia chegou. Odeio esta cidade. - Porque não dizes antes que odeias esta casa? - Também - respondeu ele brutalmente. - Gostava de ter nascido homem, para poder ir também – disse ela cheia de ódio. - E eu não gostava de ter nascido mulher - disse ele. Acabaram de comer em silêncio. Os irmãos estavam muito afastados e a única coisa que ainda os unia era a presença da mãe e a recordação apagada do amor que tinham tido um pelo outro na infância. Tinham crescido numa casa arruinada, presenciando a destruição moral e económica do pai e a seguir a lenta doença da mãe. Dona Ester Trueba começou a padecer de artrite desde muito nova, foise tornando rígida até acabar por mover-se com grande dificuldade, como que amortalhada em vida, e por último, quando já não podia dobrar os joelhos, instalou-se definitivamente na sua cadeira de rodas, na sua viuvez e desolação. Esteban recordava a sua infância e a juventude, os fatos apertados, o cordão de São Francisco que o obrigavam a usar, quem sabe se em paga de promessas da mãe ou da irmã, as camisas remendadas com cuidado e a solidão. Férula, cinco anos mais velha, lavava e engomava, dia sim dia não, as suas duas únicas camisas, para ele estar sempre limpo e apresentável, e recordava-lhe que por parte da mãe ele usava o apelido mais nobre e de mais alta linhagem do Vice-Reino de Lima. Trueba não tinha sido mais que um lamentável acidente na vida de Dona Ester, destinada a casar com alguém da sua classe, mas tinha-se apaixonado perdidamente por aquele doidivanas, emigrante da primeira geração, que em poucos anos delapidou o seu dote e a seguir a sua herança. Mas de nada serviu a Esteban o passado de sangue azul, se em casa não havia com que pagar as contas da loja e se tinha de ir a pé para o colégio porque não tinha um centavo para o eléctrico. Recordava que o mandavam para a escola com o peito e as costas forrados com papel de jornal porque não tinha roupa interior de lã e o seu casaco era uma lástima, e que sofria imaginando que os companheiros podiam ouvir o barulho do papel esfregando-se contra a pele. No Inverno, a única fonte de calor era uma braseira no quarto da mãe, onde se reuniam os três para poupar velas e carvão. Tinha sido uma infância de privações, de incomodidades, de amarguras, de intermináveis terços nocturnos, de medos e de culpas. De tudo isso não lhe ficara mais que a raiva e o orgulho exagerado. Dois dias depois, Esteban Trueba partiu para o campo. Férula acompanhou-o à estação. Ao despedir-se, beijou-o friamente na face e esperou que subisse para o comboio, com as duas malas de couro com fechaduras de bronze, as mesmas que tinha comprado para ir para a mina e que deviam durar-lhe toda a vida, como lhe tinha prometido o vendedor. Recomendoulhe que cuidasse de si e tratasse de visitá-las de vez em quando; ele disse que o faria sem esforço, mas ambos sabiam que estavam destinados a não se ver durante muitos anos e no fundo sentiam um certo alivio. - Avisa-me se a mamã piorar - gritou Esteban pela janela quando o comboio se pôs em marcha. - Não te preocupes - respondeu Férula no cais, agitando o seu lenço. Esteban Trueba encostou-se no banco forrado de veludo vermelho e agradeceu a iniciativa dos Ingleses de construir carruagens de primeira classe, onde se podia viajar como um cavalheiro, sem ter de suportar as galinhas, os canastros, os volumes de cartão amarrados com cordel e o choramingar das crianças dos outros. Felicitou-se por ter decidido comprar uma passagem mais cara, pela primeira vez na vida, e concluiu que era nos pormenores que estava a diferença entre um cavalheiro e um camponês. Por isso, embora em má situação, desse dia em diante iria gastar dinheiro nas pequenas comodidades que o faziam sentir-se rico. - Não voltarei a ser pobre! - decidiu, pensando no filão de ouro. Pela janela do comboio viu passar a paisagem do vale central. Vastos campos estendiamse no sopé da cordilheira, campinas férteis de vinhedo, de trigais, de luzerna e de maravilha. Comparou tudo isso com as desoladas planícies do Norte, onde tinha passado dois anos metido num buraco, no meio de uma natureza agreste e lunar cuja beleza aterradora não se cansava de olhar, fascinado pelas cores do deserto, pelos azuis, os roxos, os amarelos dos minerais à flor da terra. - Para mim a vida está a mudar - murmurou. Fechou os olhos e adormeceu. Desceu do comboio na estação de San Lucas. Era um lugar miserável. A essa hora não se via vivalma no cais de madeira, com um telhado arruinado pela intempérie e pelas formigas. Dali podia ver-se todo o vale através de uma neblina ténue que subia da terra molhada pela chuva da noite. As montanhas longínquas perdiam-se entre as nuvens de um céu carregado e só a ponta nevada do vulcão se distinguia nitidamente, recortada contra a paisagem e iluminada por um tímido sol de Inverno. Olhou à volta. Na sua infância, a única época feliz que podia recordar, antes que o pai acabasse por arruinar-se e abandonar-se à bebida e à própria vergonha, tinha andado a cavalo com ele por aquela região. Recordava que em Las Tres Marias tinha brincado no Verão, mas isso tinha sido há tantos anos que a memória quase se desvanecia e não podia reconhecer o lugar. Procurou com a vista a povoação de San Lucas, mas apenas descortinou um casario longínquo, desbotado na humidade da manhã. Percorreu a estação. Estava fechada, com um cadeado na porta do único escritório. Havia um aviso escrito a lápis, mas estava tão apagado que não conseguiu lê-lo. Ouviu que nas suas costas o comboio se punha em marcha e começava a afastar-se deixando atrás uma coluna de fumo branco. Estava sozinho naquele apeadeiro silencioso. Pegou nas malas e começou a andar pelo barro e pelas pedras de um carreiro que ia ter à povoação. Caminhou mais de dez minutos, pedindo que não chovesse, porque só com muita dificuldade conseguia avançar com as pesadas malas por aquele caminho e viu que a chuva o tornaria em poucos segundos num lamaçal intransitável. Ao aproximar-se das casas viu fumo nalgumas chaminés e suspirou aliviado, porque a principio teve a impressão de que era um vilório abandonado, tal a sua ruína e solidão. Deteve-se à entrada da aldeia, sem ver ninguém. Na única rua, ladeada de modestas casas de adobe, reinava o silêncio, e teve a sensação de caminhar em sonhos. Acercou-se da casa mais próxima, que não tinha nenhuma janela e cuja porta estava aberta. Deixou as malas no passeio e entrou chamando em voz alta. Dentro estava escuro, porque a luz só vinha da porta, de modo que necessitou de alguns segundos para adaptar a vista e acostumar-se à penumbra. Então viu duas crianças brincando no chão de terra batida que o olhavam com grandes olhos assustados e, num pátio mais à frente, uma mulher que caminhava secando as mãos com o avental. Ao vê-lo, esboçou um gesto instintivo para desviar uma madeixa de cabelo que lhe caía sobre a testa. Saudou-a e ela respondeu tapando a boca com a mão para esconder as gengivas sem dentes. Trueba explicou-lhe que precisava de alugar um carro, mas ela pareceu não compreender e limitou-se a esconder as crianças nas pregas do avental, com um olhar sem expressão. Ele saiu, pegou na bagagem e seguiu o seu caminho. Quando tinha percorrido quase toda a aldeia sem ver ninguém e começava a desesperar, ouviu atrás de si as patas de um cavalo. Era uma carroça desengonçada conduzida por um lenhador. Parou à sua frente e obrigou o condutor a deter-se. - Pode levar-me a Las Tres Marias? Pago-lhe bem! - gritou. - Que vai lá fazer, cavalheiro? - perguntou o homem. – Isso é uma terra de ninguém, um barrocal sem lei. Mas aceitou levá-lo e ajudou-o a pôr a bagagem entre os atados de lenha. Trueba sentouse a seu lado na boleia. De algumas casas saíram crianças correndo atrás da carroça. Trueba sentiu-se mais só do que nunca. A onze quilómetros da aldeia de San Lucas, por um caminho devastado invadido pelo mato e cheio de covas, apareceu a tabuleta de madeira com o nome da propriedade. Estava pendurada de uma corrente partida, de modo que o vento fazia-a bater contra o poste com um ruído surdo que lhe soou como um tambor de luto. Bastou dar uma olhada para compreender que só um hércules podia tirar aquilo da desolação. A erva daninha tinha comido o carreiro e para onde quer que olhasse só via penhascos, matagais e monte. Não havia nem sinais de pastos, nem restos de vinhas que ele recordava, ninguém que viesse recebê-lo. A carroça avançou lentamente, seguindo um rasto que a passagem dos animais e dos homens tinha traçado no mato. Ao fim de pouco tempo, viu a casa do fundo, que ainda se mantinha de pé, mas que surgiu como uma visão de pesadelo, cheia de escombros, de redes de capoeira pelo chão, e de lixo. Tinha metade das telhas partidas e uma trepadeira selvagem que entrava pelas janelas e cobria quase todas as paredes. à volta da casa viu alguns casebres de adobe sem cal, sem janelas, com telhados de palha negros de fuligem. Dois cães lutavam encarniçadamente no pátio. O chiar das rodas da carroça e as maldições do lenhador atraíram os ocupantes dos casebres, que foram aparecendo aos poucos. Olhavam os recém-chegados com estranheza e desconfiança. Tinham passado quinze anos sem verem nenhum patrão e haviam concluído que simplesmente o não tinham. Não podiam reconhecer naquele homem alto e autoritário o menino de caracóis castanhos que há muito tempo atrás brincava naquele mesmo pátio. Esteban olhou-os e também não conseguiu recordar nenhum. Eram um grupo miserável. Viu várias mulheres de idade indefinida, com a pele gretada e seca, algumas aparentemente grávidas, todas vestidas de farrapos desbotados e descalças. Calculou que haveria pelo menos uma dúzia de crianças de todas as idades. As mais pequenas estavam nuas. Outros rostos assomaram às ombreiras das portas, sem se atreverem a sair. Esteban esboçou um gesto de saudação, mas ninguém respondeu. Algumas crianças correram a esconder-se detrás das mulheres. Esteban desceu da carroça, descarregou as duas malas e deu algumas moedas ao lenhador. - Se quiser fico à sua espera, patrão - disse o homem. - Não, eu fico aqui. Dirigiu-se à casa, abriu a porta com um empurrão e entrou. Dentro havia suficiente luz, porque a manhã entrava pelos postigos partidos e pelos buracos do telhado, onde as telhas tinham cedido. Estava cheia de pó e teias de aranha, com um aspecto de total abandono, e era evidente que nesses anos todos nenhum dos camponeses se atrevera a deixar a sua choça para ocupar a grande casa senhorial vazia. Não tinham tocado nos móveis; eram os mesmos da sua infância, nos mesmos lugares de sempre, mas os mais feios, sombrios e desengonçados de tudo o que podia recordar. Toda a casa estava alcatifada com uma camada de erva, de pó e de folhas secas. Cheirava a túmulo. Um cão esquelético ladrou furiosamente, mas Esteban Trueba não fez caso e o animal, finalmente cansado, foi para um canto coçar as pulgas. Deixou as malas sobre uma mesa e saiu para percorrer a casa, lutando contra a tristeza que começava a invadi-lo. Passou de um quarto para outro, viu a deterioração que o tempo tinha feito em todas as coisas, a pobreza, a sujidade, e sentiu que aquilo era um buraco muito pior do que a mina. A cozinha era uma grande divisão sórdida, de tecto alto e paredes enegrecidas pelo fumo da lenha e do carvão, bolorenta, em ruínas, mas onde ainda estavam penduradas de pregos, nas paredes, as caçarolas e frigideiras de cobre e de ferro que não tinham sido usadas em quinze anos e em que ninguém tinha tocado em todo esse tempo. Os quartos de dormir tinham as mesmas camas e os grandes armários com espelhos ovais que o pai comprou noutro tempo, mas os colchões eram um montão de lã apodrecida e de bichos que neles tinham feito ninho durante gerações. Escutou os passinhos discretos das ratazanas no forro do tecto. Não conseguiu descobrir se o piso era de madeira ou de tijoleira porque não se via em lado nenhum e a imundície cobria-o por completo. A camada cinzenta de pó escondia o contorno dos móveis. Onde tinha sido o salão, ainda se via o piano alemão com uma perna partida e as teclas amarelecidas, soando como um cravo desafinado. Nas estantes havia alguns livros ilegíveis, com as páginas comidas pela humidade, e no chão restos de revistas muito antigas, que o vento espalhara. Os cadeirões tinham as molas à vista e havia um ninho de ratos na poltrona onde a mãe se sentava a tecer antes que a doença lhe transformasse as mãos em garfos. Quando acabou de correr a casa, Esteban tinha as ideias mais claras. Sabia que tinha à sua frente um trabalho titânico, porque, se a casa estava naquele estado de abandono, não podia esperar que o resto da propriedade estivesse em melhores condições. Por um momento teve a tentação de carregar as duas malas na carroça e voltar pelo mesmo caminho que o tinha trazido, mas pôs logo de parte esse pensamento, e achou que, se havia alguma coisa que pudesse acalmar a dor e a raiva de ter perdido Rosa, era partir as costas trabalhando naquela terra abandonada. Tirou o casaco, respirou profundamente e saiu para o pátio, onde estava ainda o lenhador, junto dos caseiros, reunidos a certa distância, com a timidez própria da gente do campo. Observaram-se mutuamente com curiosidade. Trueba deu dois ou três passos até eles e percebeu um leve movimento de recuo no grupo, correu os olhos pelos camponeses maltrapilhos e tentou fazer um sorriso amigável às crianças sujas de ranho, aos velhos remelosos e às mulheres sem esperança, mas saiu-lhe apenas um trejeito. - Onde estão os homens? - perguntou. O único homem novo deu um passo em frente. Provavelmente tinha a mesma idade que Esteban Trueba, mas parecia mais velho. - Foram-se embora - disse. - Como te chamas? - Pedro Segundo Garcia, senhor - respondeu o outro. - Eu sou o patrão agora. Acabou a festa. Vamos trabalhar. Quem não gostar da ideia vá-se embora imediatamente. Aos que ficarem não faltará que comer, mas terão de esforçar-se. Não quero fracos nem gente insolente, ouviram? Olharam-se assombrados. Não tinham compreendido nem metade do discurso, mas sabiam reconhecer a voz do patrão quando a escutavam. - Entendidos, patrão - disse Pedro Segundo Garcia. – Não temos onde ir, vivemos sempre aqui. Ficamos. Um menino agachou-se e pôs-se a cagar e um cão sarnento aproximou-se a cheirá-lo. Esteban, enojado, deu ordem de levar a criança, lavar o pátio e matar o cão. Assim começou a nova vida que, com o tempo, havia de fazê-lo esquecer Rosa. Ninguém me vai tirar da cabeça a ideia de que fui um bom patrão. Quem tivesse visto Las Tres Marias nos tempos do abandono e a visse agora, que é um bom modelo, teria de concordar comigo. Por isso não posso aceitar que a minha neta me venha com a história da luta de classes, porque, se virmos bem, esses pobres camponeses estão muito pior agora do que há cinquenta anos. Eu era como um pai para eles. Com a reforma agrária fodemo-nos todos. Para tirar Las Tres Marias da miséria, destinei todo o capital que tinha poupado para casar com Rosa e tudo o que me enviava o capataz da mina, mas não foi o dinheiro que salvou esta terra, mas sim o trabalho e a organização. Correu a notícia de que havia um novo patrão em Las Tres Marias e que estavam tirando as pedras com bois e lavrando os prados para semear. Começaram logo a chegar homens a oferecerem-se como braçais, porque eu pagava bem e lhes dava bastante comida. Comprei animais. Os animais eram sagrados para mim e, embora passássemos o ano sem provar carne, não se sacrificavam. Assim cresceu o gado. Organizei os homens em grupos de quatro e, depois de trabalhar no campo, dedicávamo-nos a reconstruir a casa senhorial. Não eram carpinteiros nem pedreiros, tive de lhes ensinar tudo, com a ajuda de manuais que comprei. Até canalizações fizemos com eles arranjamos os telhados, caiámos tudo e limpámos até deixar a casa brilhante por dentro e por fora. Reparti os móveis entre os caseiros, menos a sala de jantar, que ainda estava intacta apesar do pó que tinha invadido tudo, e a cama de ferro forjado que tinha sido dos meus pais. Fiquei a viver na casa vazia, sem mais mobiliário que essas duas coisas e uns caixotes onde me sentava, até que Férula me mandou da capital os móveis novos que lhe encomendei. Eram peças grandes, pesadas, faustosas, feitas para resistir muitas gerações e adequadas para a vida no campo, e a prova é que foi preciso um terramoto para as destruir. Encostei-os às paredes, pensando na comodidade e não na estética, e logo que a casa ficou confortável senti-me satisfeito e comecei-me a acostumar à ideia de que ia passar muitos anos, talvez toda a vida, em Las Tres Marias. As mulheres dos caseiros faziam turnos para servir na casa senhorial e encarregaram-se da minha horta. Em breve vi as primeiras flores no jardim, que tracei por minhas próprias mãos e que, com muito poucas modificações, é o mesmo que existe hoje em dia. Nessa época, a gente trabalhava sem contar anedotas. Creio que a minha presença lhes tornou a dar segurança e viram que pouco a pouco aquela terra se convertia num lugar próspero. Era gente boa e simples, não havia revoltados. Também é certo que eram muito pobres e ignorantes. Antes de eu chegar, limitavam-se a cultivar as suas pequenas quintarolas familiares, que lhes davam o indispensável para não morrer de fome desde que as não flagelasse alguma catástrofe, como a seca, a geada, a peste, a formiga ou o caracol, casos em que as coisas se tornavam muito difíceis para eles. Comigo tudo isso mudou. Fomos recuperando os pastos, um por um, reconstruímos o galinheiro e os estábulos e começam os a praticar um sistema de regas para que as sementeiras não dependessem do clima, mas de um mecanismo cientifico. Mas a vida não era fácil. Era muito dura. Por vezes, eu ia à aldeia e voltava com um veterinário que via as vacas e as galinhas e que, de passagem, dava uma olhada nos doentes. Não é que eu partisse do principio de que, se os conhecimentos do veterinário chegavam para os animais, também serviam para os pobres, como me diz a minha neta quando me quer pôr furioso. O que se passava era que não se conseguiam médicos por aquelas paragens. Os camponeses consultavam uma bruxa indigena que conhecia o poder das ervas e da sugestão, em quem tinham grande confiança, muito mais que no veterinário. As parturientes davam à luz com a ajuda das vizinhas, da oração e de uma parteira que quase nunca chegava a tempo, porque fazia a viagem de burro, mas que tanto servia para fazer nascer uma criança como para tirar um vitelo atravessado numa vaca. Os doentes graves, esses que nenhum encantamento da bruxa nem mezinha do veterinário podiam curar, eram levados por Pedro Segundo Garcia ou por mim, numa carroça, ao hospital das freiras, onde às vezes havia um médico de turno que os ajudava a morrer. Os mortos iam parar a um pequeno campo santo junto da igreja abandonada ao pé do vulcão, onde há agora um cemitério como Deus manda. Uma ou duas vezes por ano, eu conseguia que um padre fosse benzer os casamentos, os animais e as máquinas, baptizar as crianças e dizer algumas orações atrasadas aos defuntos. As únicas diversões eram capar porcos e touros, as lutas de galos, a raia e as incríveis histórias de Pedro Garcia, o velho, que em paz descanse. Era o pai de Pedro Segundo e dizia que o seu avô tinha combatido nas fileiras dos patriotas que escorraçaram os Espanhóis da América. Ensinava as crianças a deixar-se picar por aranhas e a tomar urina de mulher grávida para as imunizar. Conhecia quase tantas ervas como a bruxa, mas confundia-se no momento de decidir a sua aplicação e cometia alguns erros irreparáveis. Para arrancar dentes, no entanto, reconheço que tinha um sistema insuperável, que lhe tinha dado justa fama em toda a região: era uma combinação de vinho tinto e pais-nossos que punha o paciente em transe hipnótico. A mim tirou-me um molar sem dor e, se estivesse vivo, seria o meu dentista. Muito depressa comecei a sentir-me bem no campo. Os meus vizinhos mais próximos ficavam a uma boa distância a cavalo, mas não me interessava a vida social, agradava-me a solidão e além disso tinha muito trabalho entre mãos. Fui-me convertendo num selvagem, esqueci as palavras, encurtou-se o vocabulário, tornei-me muito mandão. Como não tinha necessidade de aparentar isto ou aquilo, acentuou-se o mau carácter que sempre tive. Tudo me dava raiva, indignava-me quando via as crianças rondando as cozinhas para roubar pão, quando as galinhas esvoaçavam pelo pátio, quando os pardais invadiam os milheirais. Quando o mau humor começava a estorvar-me e me sentia incomodado dentro da própria pele, sala à caça. Levantava-me muito antes do nascer do Sol e partia de espingarda ao ombro, com o meu bornal e o meu cão perdigueiro. Gostava de uma cavalgada no escuro, do frio do amanhecer, do olhar largo pela sombra, do silêncio, do cheiro da pólvora e do sangue, sentir contra o ombro o recuar da arma com um coice seco e de ver a presa cair aos trambolhões; isso tranquilizava-me e, quando regressava de uma caçada, com quatro coelhos miseráveis no bornal e umas quantas perdizes tão chumbadas que nem serviam para serem cozinhadas, meio morto de fadiga e cheio de lama, sentia-me aliviado e feliz. Quando penso nesses tempos, dá-me uma grande tristeza. A vida passou por mim multo rápida. Se voltasse a começar, há alguns erros que não cometeria, mas em geral não me arrependo de nada. Sim, fui um bom patrão, disso não há dúvida. Nos primeiros meses, Esteban Trueba esteve tão ocupado canalizando a água, cavando poços, arrancando pedras, limpando cavalariças e reparando galinheiros e estábulos, que não teve tempo de pensar em nada. Deitava-se estafado e levantava-se de madrugada, tomava um magro pequeno almoço na cozinha e partia a cavalo para vigiar os trabalhos do campo. Não regressava antes do anoitecer. Nessa hora fazia a única refeição completa do dia, sozinho na sala de jantar da casa. Nos primeiros meses fez tenção de tomar banho e de mudar de roupa diariamente à hora de jantar, como tinha ouvido que faziam os colonos ingleses nas aldeias mais longínquas da ásia e da áfrica, para não perder a respeitabilidade e a autoridade. Vestiase com a melhor roupa, barbeava-se e punha no gramofone as mesmas árias das suas operas preferidas todas as noites. Mas a pouco e pouco deixou-se vencer pela rusticidade e aceitou que não tinha vocação de penitente, especialmente se não tinha ninguém que pudesse apreciar o esforço. Deixou de se barbear, cortava o cabelo quando lhe chegava aos ombros e continuou a tomar banho só porque tinha o hábito muito arreigado, mas despreocupou-se da sua roupa e das suas maneiras. Foi-se tornando um bárbaro. Antes de dormir, lia um bocado ou jogava xadrez - tinha desenvolvido a habilidade de competir contra um livro sem fazer batota e de perder partidas sem se aborrecer. No entanto, a fadiga do trabalho não foi suficiente para sufocar a sua natureza robusta e sensual. Começou a passar mal as noites, os cobertores pareciam-lhe muito pesados, os lençóis demasiado suaves. O seu cavalo dava passadas irrequietas e de repente transformava-se numa fêmea formidável, numa montanha dura e selvagem de carne, sobre a qual cavalgava até moer os ossos. Os macios e perfumados melões da horta pareciam-lhe descomunais peitos de mulher e surpreendia-se enterrando a cara na manta da sua montada, buscando no cheiro acre do suor do animal a semelhança com aquele aroma longínquo e proibido das suas primeiras prostitutas. De noite, excitava-se com pesadelos de mariscos apodrecidos, de pedaços enormes de rês esquartejada, de sangue, de sémen, de lágrimas. Acordava tenso, com o sexo como um ferro entre as pernas, mais violento do que nunca. Para aliviar-se corria a mergulhar-se todo nu no rio e aprofundava-se nas águas geladas até perder a respiração, mas então julgava sentir mãos invisíveis que lhe acariciavam as pernas. Vencido, deixava-se flutuar à deriva, sentindo-se abraçar pela corrente, beijado pelos limos, fustigado pelas canas da margem. Ao fim de pouco tempo a sua necessidade oprimida era notória, não se acalmava nem com imersões nocturnas no rio, nem com infusões de canela, nem pondo pedra alúmen debaixo do colchão, nem sequer com as manipulações vergonhosas que no internato punham os rapazes malucos e os deixavam cegos e os fariam desaparecer na condenação eterna. Quando começou a olhar com olhos de concupiscência as aves do curral e as crianças que brincavam nuas na horta, e até a massa crua do pão, compreendeu que a sua virilidade não se acalmaria com substitutos de sacristão. O seu sentido prático disse-lhe que tinha de procurar uma mulher e, uma vez tomada a decisão, a ansiedade que o consumia acalmou-se e a sua raiva pareceu acalmar-se também. Nesse dia, amanheceu, sorrindo pela primeira vez em tanto tempo. Pedro Garcia, o velho, viu-o sair assobiando pelo caminho até ao estábulo e abanou a cabeça inquieto. O patrão andou todo o dia ocupado em lavrar um terreno que acabava de mandar limpar e que tinha destinado a semear milho. Depois foi com Pedro Segundo Garcia ajudar uma vaca que nessa altura estava a parir e tinha o vitelo atravessado. Teve de introduzir-lhe o braço até ao cotovelo para dar volta à cria e ajudá-la a mostrar a cabeça. Apesar de tudo, a vaca morreu, mas isso não o pôs de mau humor. Ordenou que alimentassem o vitelo com uma garrafa, lavou-se num balde e voltou a montar a cavalo. Normalmente era a sua hora da comida, mas não tinha fome. Não tinha nenhuma pressa, porque já tinha feito a sua escolha. Tinha visto muitas vezes a rapariga carregando na anca um irmãozinho ranhoso, com um saco às costas ou um cântaro de água do poço à cabeça. Tinha-a observado enquanto lavava roupa, agachada nas pedras planas do rio, com as pernas morenas polidas pela água, esfregando os trapos descoloridos com as rudes mãos de camponesa. Tinha ossos grandes e rosto com traços índios, com a face gorda e a pele escura, de expressão calma e doce, e a sua enorme boca carnuda, que conservava ainda os dentes, quando sorria iluminava-se, mas faziao muito poucas vezes. Tinha a beleza da primeira juventude, embora ele pudesse ver que isso se iria embora muito depressa, como sucede às mulheres nascidas para parir muitos filhos, trabalhar sem descanso e enterrar os seus mortos. Chamava-se Pancha Garcia e tinha quinze anos. Quando Esteban Trueba saiu a procurá-la, já tinha caído a tarde e estava mais fresco. Percorreu, com o cavalo a passo, as longas alamedas que dividiam os pastos, perguntando por ela aos que passavam, até que a viu no caminho que conduzia ao seu casebre. Ia dobrada sob o pesado feixe de espinheiro para o fogão da cozinha, sem sapatos, cabisbaixa. Olhou-a do alto do cavalo e sentiu nesse mesmo instante a urgência do desejo que o tinha incomodado durante tantos meses. Aproximou-se a trote até pôr-se a seu lado. Ela viu-o, mas seguiu o seu caminho sem o olhar, pelo costume ancestral de todas as mulheres da sua estirpe de baixar a cabeça em frente do macho. Esteban baixou-se e tirou-lhe o fardo, segurou-o um momento no ar e logo o atirou com violência para a beira do caminho, apanhou a rapariga com um braço pela cintura e levantou-a com um repelão bestial, sentando-a à frente da sela, sem que ela opusesse nenhuma resistência. Esporeou o cavalo e partiram a galope para o rio. Desmontaram sem trocar nem uma palavra e mediram-se com os olhos. Esteban desapertou o largo cinturão de couro e ela recuou, mas apanhou-a de um sacão. Caíram abraçados entre as folhas dos eucaliptos. Esteban não tirou a roupa. Atacou-a com ferocidade, cravando-se nela sem preâmbulos, com uma brutalidade inútil. Deu-se conta demasiado tarde, pelas salpicadelas de sangue no vestido, que a jovem era virgem, mas nem a humilde condição de Pancha, nem as oprimidas exigências do seu apetite lhe permitiram ter contemplações. Pancha Garcia não se defendeu, não se queixou, não fechou os olhos. Ficou de costas, olhando o céu com uma expressão espavorida, até que sentiu o homem que cala com um gemido a seu lado. Então começou a chorar suavemente. Antes dela a sua mãe, antes da sua mãe a sua avó tinham sofrido o mesmo destino de cadela. Esteban Trueba compôs as calças, apertou o cinto, ajudou-a a pôr-se em pé e sentou-a na garupa do cavalo. Tomaram o caminho de regresso. Ele ia assobiando. Antes de a deixar no casebre, o patrão beijou-a na boca: - A partir de amanhã quero que trabalhes lá em casa - disse. Pancha disse que sim, sem levantar os olhos. Também a mãe e a avó tinham servido na casa senhorial. Nessa noite Esteban Trueba dormiu como um justo, sem sonhar com Rosa. De manhã sentia-se cheio de energia, maior e poderoso. Foi para o campo cantarolando e, no regresso, Pancha estava na cozinha, atarefada, mexendo o manjar branco numa grande panela de cobre. Nessa noite esperou-a com impaciência e, quando se calaram os ruídos domésticos do velho casarão de adobe e começaram as andanças das ratazanas, sentiu a presença da rapariga no umbral da porta. - Vem Pancha - chamou-a. Não era uma ordem, mas antes uma súplica. Dessa vez Esteban teve tempo para a gozar e fazê-la gozar. Percorreu-a tranquilamente, aprendendo de memória o cheiro a fumo do seu corpo e da sua roupa lavada com cinza e passada com ferro a carvão. Conheceu a textura do seu cabelo negro e liso, da sua pele suave nos sítios mais recônditos, áspera e calosa nos outros, dos seus lábios frescos, do seu sexo sereno e do seu ventre amplo. Desejou-a com calma e iniciou-a na ciência mais secreta e mais antiga. Provavelmente foi feliz nessa noite e nalgumas noites mais, brincando como dois cachorros na grande cama de ferro forjado que tinha sido do primeiro Trueba e que já estava meio coxa, mas que ainda podia resistir às investidas do amor. Cresceram os seios de Pancha Garcia e arredondaram-se-lhe as ancas. Esteban Trueba melhorou por algum tempo o mau humor e começou a interessar-se pelos seus caseiros. Visitou-os nos casebres de miséria. Descobriu na penumbra de um deles um caixote cheio de papel de jornal onde compartilhavam o sono uma criança de peito e uma cadela recém-parida. Noutro, viu uma anciã que há quatro anos estava morrendo e que tinha os ossos à vista pelas chagas das costas. Num pátio conheceu um adolescente idiota que se babava, com uma corda ao pescoço, atado a um poste, falando de coisas de outro mundo, nu e com um sexo de macho que esfregava incansavelmente contra o chão. Deu-se conta, pela primeira vez, que o pior abandono não era o das terras e dos animais, mas o dos habitantes de Las Tres Marias, que tinham vivido no desamparo desde a época em que o seu pai jogou o dote e a herança de sua mãe. Decidiu que era tempo de levar um pouco de civilização a esse canto perdido entre a cordilheira e o mar. Em Las Tres Marias começou uma febre de actividade que sacudiu a modorra. Esteban Trueba pôs os camponeses a trabalhar como nunca o tinham feito. Cada homem, mulher, velho ou criança que pudesse ter-se nas pernas foi empregado pelo patrão, ansioso de recuperar em poucos meses os anos de abandono. Mandou construir um celeiro e despensas para guardar alimentos para o Inverno, mandou salgar a carne de cavalo e fumar a de porco e pôs as mulheres a fazer doces e conservas de frutas. Modernizou a ordenha, que não passava de um barracão cheio de esterco e moscas, e obrigou as vacas a produzir suficiente leite. Iniciou a construção de uma escola com seis salas porque tinha a ambição de que todas as crianças e adultos das Tres Marias deviam aprender a ler, escrever e somar, ainda que não fosse partidário de que adquirissem outros conhecimentos, para que não se lhes enchesse a cabeça com ideias impróprias ao seu estado e condição. No entanto, não conseguiu um professor que quisesse trabalhar naquelas lonjuras e, perante a dificuldade de apanhar os garotos com promessas de açoites e caramelos para alfabetizá-los ele mesmo, abandonou a ilusão e deu outros usos à escola. Sua irmã Férula enviava-lhe da capital os livros que ele encomendava. Era literatura prática. Com eles aprendeu a dar injecções nas pernas e fabricou um rádio de galena. Gastou os seus primeiros ganhos na compra de tecidos rústicos, uma máquina de costura, uma caixa de pílulas homeopáticas com o seu manual de instruções, uma enciclopédia e um carregamento de cartilhas, cadernos e lápis. Acarinhou o projecto de fazer um refeitório onde todas as crianças recebessem uma refeição completa por dia, para crescerem fortes e sãs e poderem trabalhar desde pequenas, mas compreendeu que era loucura obrigar as crianças a virem do extremo da propriedade por um prato de comida, de maneira que mudou o projecto para um oficina de costura. Pancha Garcia foi a encarregada de desvendar os mistérios da máquina de costura. A principio, julgava que era um instrumento do diabo, dotado de vida própria, e negava-se a aproximar-se, mas ele foi inflexível e ela acabou por dominá-la. Trueba organizou uma cantina. Era um modesto armazém onde os caseiros podiam comprar o necessário sem ter de fazer a viagem de carroça até San Lucas. O patrão comprava as coisas por grosso e revendia-as pelo mesmo preço aos seus trabalhadores. Impôs um sistema de vales, que funcionou a princípio como uma forma de crédito e com o tempo chegou a substituir o dinheiro legal. Com os seus papéis cor-de-rosa comprava-se de tudo na cantina e pagavamse os salários. Cada trabalhador tinha direito, além dos famosos papelinhos, a um pedaço de terra para cultivar no seu tempo livre, seis galinhas por família por ano, uma porção de sementes, uma parte da colheita que cobrisse as suas necessidades, pão e leite para o dia e cinquenta pesos que se dividiam pelo Natal e pelas festas nacionais entre os homens. As mulheres não tinham esse bónus, mesmo que trabalhassem como os homens de igual para igual, porque não eram consideradas chefes de família, excepto no caso das viúvas. O sabão para lavar, a lã para tecer e o xarope para fortalecer os pulmões eram distribuídos gratuitamente, porque Trueba não queria à sua volta gente suja, com frio ou doente. Um dia leu na enciclopédia as vantagens de uma dieta equilibrada e começou a sua mania das vitaminas, que havia de durar-lhe para o resto da vida. Tinha acessos de cólera quando verificava que os camponeses davam às crianças só o pão e alimentavam os porcos com leite e ovos. Começou a fazer reuniões obrigatórias na escola para lhes falar das vitaminas e de caminho informá-los sobre as notícias que conseguia captar através dos escarcéus infernais da galena. Aborreceuse rapidamente de perseguir a onda com o arame e encomendou da capital um rádio transoceânico, munido de duas enormes baterias. Com ele podia captar algumas mensagens coerentes no meio de um ensurdecedor barulho de assobios de ultramar. Assim soube da guerra na Europa e seguiu os avanços das tropas num mapa que pendurou no quadro da escola e que ia marcando com alfinetes. Os camponeses observavam-no estupefactos, sem compreender, nem remotamente, o propósito de cravar um alfinete na cor azul e no dia seguinte passá-lo para a cor verde. Não podiam imaginar o mundo do tamanho de um papel suspenso no quadro, nem os exércitos reduzidos à cabeça de um alfinete. Na realidade, a guerra, os inventos da ciência, o progresso da indústria, o preço do ouro e as extravagancias da moda não os preocupavam. Eram contos de fadas que em nada modificavam a estreiteza da sua existência. Para aquele impávido auditório, as notícias da rádio eram afastadas e alheias, e o aparelho desprestigiou-se rapidamente quando foi evidente que não podia prever o estado do tempo. O único que demonstrava interesse pelas mensagens vindas do ar era Pedro Segundo Garcia. Esteban Trueba compartilhou com ele muitas horas, primeiro junto do rádio de galena e depois com o de bateria, esperando o milagre de uma voz anónima e remota que os pusesse em contacto com a civilização. Isto, no entanto, não conseguiu aproximá-los. Trueba sabia que aquele rude camponês era mais inteligente que os outros. Era o único que sabia ler e era capaz de manter uma conversação de mais de três frases. Era o mais parecido com um amigo que tinha em cem quilómetros à volta, mas o seu orgulho monumental impedia-o de reconhecer nele alguma virtude, excepto aquelas próprias da sua condição de bom trabalhador do campo. Nem era partidário das familiaridades com os subalternos. Por seu lado, Pedro Segundo odiava-o, mesmo que nunca tivesse posto nome a esse sentimento tormentoso que lhe abrasava a alma e o enchia de confusão. Pressentia que nunca se atreveria a fazer-lhe frente, porque ele era o patrão. Teria de suportar as suas cóleras, as suas ordens injustas e a sua prepotência durante o resto da vida. Nos anos em que Las Tres Marias estiveram abandonadas, ele tinha assumido de forma natural o mando da pequena tribo que sobreviveu nessas terras esquecidas. Tinha-se acostumado a ser respeitado, a mandar, a tomar decisões e a não ter mais que o céu sobre a sua cabeça. A chegada do patrão mudou-lhe a vida, mas não podia deixar de admitir que agora viviam melhor, que não passavam fome e que estavam mais protegidos e seguros. Algumas vezes, Trueba julgou ver-lhe nos olhos um brilho assassino, mas nunca pôde acusá-lo de uma insolência que fosse. Pedro Segundo obedecia sem refilar, trabalhava sem se queixar, era honesto e parecia leal. Se via passar a irmã Pancha no corredor da casa senhorial, com o vaivém pesado de fêmea satisfeita, baixava a cabeça e calava-se. Pancha Garcia era jovem e o patrão era forte. O resultado previsto da sua relação começou a notar-se em poucos meses. As veias das pernas da rapariga apareceram como lombrigas na sua pele morena, o seu gesto tornou-se mais lento, o seu olhar mais largo, perdeu o interesse pelas brincadeiras descaradas na cama de ferro forjado e rapidamente ficou com a cintura grossa e os seios a caírem-lhe com o peso de uma nova vida que lhe crescia nas entranhas. Esteban levou muito tempo a dar-se conta disso, porque quase nunca a olhava e, passado o entusiasmo do primeiro momento, nem a acariciava. Limitava-se a utilizá-la como uma medida higiénica que lhe aliviava a tensão do dia e lhe oferecia uma noite sem sonhos. Mas chegou o momento em que a gravidez de Pancha foi evidente inclusivamente para ele. Tomou-lhe r pulsa. Começou a vê-la como uma enorme vasilha que continha uma substância informe e gelatinosa, que não podia reconhecer como seu filho. Pancha abandonou a casa do patrão e regressou ao casebre de seus pais onde não lhe fizeram perguntas. Continuou a trabalhar na cozinha senhorial, amassando o pão e cosendo à máquina, cada dia mais deformada pela maternidade. Deixou de servir Esteban à mesa e evitou encontrar-se com ele, já que nada tinham a compartilhar. Uma semana depois de ela sair da sua cama, voltou a sonhar com Rosa e despertou com os lençóis húmidos. Olhou pela janela e viu uma menina delgada que estava a pendurar roupa recém-lavada no arame. Não parecia ter mais que treze ou catorze anos, mas estava completamente desenvolvida. Nesse momento voltou-se e olhouo, tinha o olhar de uma mulher. Pedro Garcia viu o patrão sair assobiando a caminho do estábulo e abanou a cabeça inquieto. No decurso dos dez anos seguintes, Esteban Trueba tornou-se o patrão mais respeitado da região, construiu casas de tijolo para os seus trabalhadores, conseguiu um professor para a escola e subiu o nível de vida a toda a gente nas suas terras. Las Tres Marias era um bom negócio, que não precisava da ajuda do filão de ouro mas, pelo contrário, serviu de garantia para prorrogar a concessão da mina. O mau carácter de Trueba tornou-se lenda e acentuou-se até chegar a incomodá-lo a ele próprio. Não aceitava que ninguém o contestasse, não tolerava nenhuma contradição e considerava que a menor discordância era provocação. Também aumentou a sua voluptuosidade. Não passava nenhuma rapariga da puberdade à idade adulta sem que ele a fizesse provar o bosque, a orla do rio ou a cama de ferro forjado. Quando não ficaram mulheres disponíveis em Las Tres Marias, dedicou-se a perseguir as de outras fazendas, violando-as num abrir e fechar de olhos, em qualquer lugar do campo, geralmente ao entardecer. Não se preocupava em fazê-lo às escondidas porque não tinha medo de ninguém. Nalgumas ocasiões, chegaram a Las Tres Marias um irmão, um pai, um marido ou um patrão a pedir-lhe contas, mas, ante a sua violência descontrolada, essas visitas de justiça ou de vingança foram cada vez menos frequentes. A fama da sua brutalidade estendeu-se por toda a zona e causava invejosa admiração entre os machos da sua classe. Os camponeses escondiam as raparigas e apertavam os punhos inutilmente, pois não podiam fazer-lhe frente. Esteban Trueba era mais forte e tinha impunidade. Por duas vezes apareceram cadáveres de camponeses de outras fazendas crivados por tiros de espingarda e a ninguém coube dúvida de que se tinha de procurar o culpado em Las Tres Marias, mas os polícias rurais limitaram-se a anotar o facto no livro de registos, com a trabalhosa caligrafia dos semianalfabetos, acrescentando que tinham sido surpreendidos a roubar. A coisa não passou dali. Trueba continuou cultivando o seu prestigio de racha-diabos, semeando a região de bastardos, colhendo ódio e armazenando culpas que não lhe faziam mossa, porque se lhe havia curtido a alma e tranquilizado a consciência com o pretexto do progresso. Em vão Pedro Segundo Garcia e o velho padre do hospital das montanhas trataram de lhe sugerir que não eram as casinhas de tijolo nem os litros de leite que faziam um bom patrão, ou um bom cristão, mas sim dar às pessoas um salário decente em vez de papelinhos cor-de-rosa, um horário de trabalho que não lhes moesse os rins e um pouco de respeito e dignidade. Trueba não queria ouvir falar dessas coisas que, segundo ele, cheiravam a comunismo. - São ideias degeneradas - dizia entre dentes, - ideias bolchevistas para sublevar os rendeiros. Não se dão conta de que esta pobre gente não tem cultura nem educação, não pode assumir responsabilidades, são crianças. Como vão saber o que lhes convém? Sem mim estariam perdidos. A prova é que, quando volto a cara, vai tudo para o diabo e começam a fazer asneiras. São muito ignorantes. A minha gente está muito bem, que mais querem? Não lhes falta nada. Se se queixam é porque são mal agradecidos. Têm casas de tijolo, preocupome em assoar os moncos, em tirar os parasitas aos garotos, levar-lhes vacinas e ensinar-lhes a ler. Há por aqui outra fazenda que tenha a sua própria escola? Não! Sempre que posso, levoos ao padre para que lhes diga umas missas, por isso não percebo porque vem o padre falarme de injustiça. Não tem de se meter no que não sabe e não é da sua incumbência. Eu queria vê-lo a tomar conta desta propriedade, para ver se ia andar com paninhos quentes. Com estes pobres diabos há que ter mão dura, é a única linguagem que entendem. Se nos tornarmos brandos, não nos respeitam. Não nego que muitas vezes fui demasiado severo, mas fui sempre justo. Tive de lhes ensinar tudo, até a comer, porque se fosse por eles alimentavam-se só de pão! Se me descuido, dão o leite e os ovos aos porcos. Não sabem limpar o cu e querem ter o direito de voto! Se não sabem onde estão, como vão saber de política? São capazes de votar pelos comunistas, como os mineiros do Norte, que com as greves prejudicam todo o pais, justamente quando o preço do minério está no seu ponto máximo. Mandar para lá a tropa era o que eu faria no Norte, para os correr à bala, a ver se aprendem de uma vez por todas. Infelizmente, o cacete é a única coisa que funciona nestes países. Não estamos na Europa. Aqui o que se necessita é um governo forte, um patrão forte. Seria muito bonito sermos todos iguais, mas não o somos. Isso salta à vista. Aqui a única pessoa que sabe trabalhar sou eu e desafio a que me provem o contrário. Sou o primeiro a levantar-se e o último a deitar-se nesta maldita terra. Se fosse por mim, mandava tudo para o caralho e ia viver como um príncipe na capital, mas tenho de estar aqui, porque se me ausento, ainda que seja uma semana, isto cai de rastos e estes infelizes começam a morrer de fome. Lembrem-se como era isto quando cheguei, faz nove ou dez anos: uma desolação. Era uma ruína de pedras e abutres. Uma terra de ninguém. Estavam todos os pastos abandonados. Ninguém se tinha lembrado de canalizar a água. Contentavam-se em plantar quatro alfaces imundas nos seus quintais e deixavam que tudo o resto se afundasse na miséria. Foi necessário eu chegar para haver aqui ordem, lei, trabalho. Como não vou estar orgulhoso? Trabalhei tão bem que já comprei as duas terras vizinhas e esta propriedade é a maior e mais rica de toda a zona, a inveja de toda a gente, um exemplo, uma propriedade modelo. E agora que a estrada passa ao lado, duplicou o seu valor, se quisesse vendê-la podia ir-me embora para a Europa e viver dos meus rendimentos, mas não vou, fico aqui a chatear-me. Faço isto por esta gente. Sem mim, estariam perdidos. Se vamos ao fundo das coisas, não servem nem para fazer recados, sempre o disse: são como crianças. Não há nenhum que faça o que tem a fazer sem que eu tenha de estar por trás a chicoteá-lo. E depois vêm-me com a história de que somos todos iguais! É de morrer a rir, caralho... Para a sua mãe e irmã mandava caixotes com frutas, carnes salgadas, presuntos, ovos frescos, galinhas vivas e em escabeche, farinha, arroz e grão em sacos, queijos do campo, e todo o dinheiro de que necessitavam, porque isso não lhe faltava. Las Tres Marias e a mina produziam como era devido pela primeira vez desde que Deus pôs aquilo no planeta, como ele gostava de dizer a quem quisesse ouvi-lo. Dava a Dona Ester e Férula o que tinham ambicionado, mas não teve tempo, em todos esses anos, para as ir visitar ainda que fosse de caminho, nalguma das suas viagens ao Norte. Estava tão ocupado no campo, nas novas terras que tinha comprado e em outros negócios em que começava a pôr a luva, que não podia perder o seu tempo junto ao leito de uma enferma. Além disso, existia o correio que os mantinha em contacto e o comboio que lhe permitia mandar tudo o que quisesse. Não tinha necessidade de as ver. Tudo se podia dizer por carta. Tudo menos o que não queria que soubessem, como a recua de bastardos que ia nascendo como por artes mágicas. Bastava tombar uma rapariga no prado e pô-la prenha imediatamente, era coisa do demónio, tanta fertilidade era insólita, mas estava seguro de que metade das crianças não eram suas. Por isso decidiu que, fora o filho de Pancha Garcia, que se chamava Esteban como ele e que não tinha dúvida disso porque a sua mãe era virgem quando a possuíra, os outros podiam ser seus filhos e podiam não o ser, e sempre era melhor pensar que o não eram. Quando chegava a sua casa alguma mulher com uma criança nos braços para reclamar o apelido ou alguma ajuda, punha-a na rua com um par de notas na mão e a ameaça de que, se tornasse a importuná-lo, corrê-la-ia a pontapés para que não lhe ficasse vontade de andar abanando o rabo ao primeiro homem que visse e de acusá-lo depois a ele. Foi assim que nunca se inteirou do número exacto dos seus filhos e, na realidade, o assunto não lhe interessava. Pensava que, quando quisesse ter filhos, procurava uma esposa da sua classe, com a bênção da Igreja, porque os únicos que contavam eram os que levavam o apelido do pai, os outros eram como se não existissem... Que não lhe viessem com a monstruosidade de que todos nasciam com os mesmos direitos e herdavam igual, porque nesse caso ia tudo para o caralho e a civilização regressava à Idade da Pedra. Recordava-se de Nívea, a mãe de Rosa, que, depois do marido renunciar à política aterrado pela aguardente envenenada, iniciou a sua própria política. Juntava-se às outras senhoras nas fileiras do Congresso e da Corte Suprema, provocando um espectáculo acalorado que metia os maridos a ridículo. Sabia que Nívea saia de noite a colar cartazes sufragistas nas paredes da cidade e era capaz de passear pelo centro em pleno meio-dia de um domingo, com uma vassoura na mão e um barrete na cabeça, pedindo que as mulheres tivessem os direitos dos homens, que pudessem votar e entrar na universidade, pedindo também que todas as crianças gozassem da protecção da lei, mesmo que fossem bastardas. - Essa senhora está mal da cabeça! - dizia Trueba. – Isso seria ir contra a natureza. Se as mulheres não sabem somar dois mais dois, ainda menos poderão pegar num bisturi. A sua função é a maternidade, o lar. Por este caminho, qualquer dia vão querer ser deputados e juizes, até presidentes da República! E entretanto estão fazendo uma confusão e uma desordem que pode terminar em desastre. Andam publicando panfletos indecentes, falam pela rádio, sentam-se em lugares públicos e tem de ir lá a polícia com um ferreiro para que lhes ponha as algemas e as possa levar presas, que é como devem estar. É lamentável que haja sempre um marido influente, um juiz de poucos brios ou um parlamentar com ideias revoltosas que as põe em liberdade... Mão lura é o que faz falta também neste caso. A guerra na Europa tinha terminado e os vagões cheios de mortos era um clamor longínquo, mas que ainda não se apagara. De lá, estavam chegando as ideias subversivas trazidas pelos ventos incontroláveis da rádio, do telégrafo e dos barcos carregados de emigrantes, que chegavam como um tropel atónito, escapando à fome da sua terra, assolados pelo rugido das bombas e dos mortos apodrecendo nos sulcos do arado. Era ano de eleições presidenciais e de preocupação pela reviravolta que os acontecimentos estavam tomando. O país despertava. A onda de descontentamento que agitava o povo embatia contra a sólida estrutura daquela sociedade oligárquica. Nos campos houve de tudo: seca, caracol, febre aftosa. No Norte havia desemprego e na capital sentia-se o efeito da guerra afastada. Foi um ano de miséria em que só faltou um terramoto para rematar o desastre. A classe alta, no entanto, dona do poder e da riqueza, não se deu conta do perigo que ameaçava o frágil equilíbrio da sua posição. Os ricos divertiam-se dançando o charleston e os novos ritmos do jazz, o fox-trot e cumbias (Dança típica da costa colombiana (N. T.)) de negros que eram uma maravilhosa indecência. Renovaram-se as viagens de barco à Europa, que se haviam suspendido durante os quatro anos de guerra, e tornaram-se moda outras à América do Norte. Chegou a novidade do golfe, que reunia a melhor sociedade para bater numa bolinha com um taco, tal como duzentos anos antes faziam os índios naqueles mesmos lugares. As damas punham colares de pérolas falsas até ao joelho e chapéus de penico enfiados até às sobrancelhas, cortavam o cabelo como os homens e pintavam-se como meretrizes, tinham acabado com o espartilho e fumavam de perna cruzada. Os cavalheiros andavam deslumbrados pelo invento dos carros norte-americanos, que chegavam ao país pela manhã e se vendiam no mesmo dia à tarde, apesar de custarem uma pequena fortuna e não passarem dum estrépito de fumo e de porcas soltas correndo a uma velocidade suicida pelos caminhos que tinham sido feitos para os cavalos e outras bestas naturais, mas em nenhum caso para máquinas de fantasia. Nas mesas de jogo, jogavam-se as heranças e as riquezas fáceis do após-guerra, abria-se o champanhe e chegou a novidade da cocaína para os mais refinados e viciosos. A loucura colectiva parecia não ter fim. Mas no campo os novos automóveis eram uma realidade tão remota como os vestidos curtos, e mesmo os que se livraram do caracol e da febre aftosa não acharam que fosse um bom ano. Esteban Trueba e outros senhores da terra da região juntavam-se no clube da povoação para planear a acção política antes das eleições. Os camponeses ainda viviam como nos tempos coloniais, não tinham ouvido falar de sindicatos, nem de domingos festivos, nem de salário mínimo, mas já começavam a infiltrar-se nas propriedades os delegados dos novos partidos de esquerda, entravam disfarçados de evangelizadores com uma bíblia debaixo de braço e panfletos marxistas debaixo do outro, pregando simultaneamente a vida abstémia e a morte pela revolução. Esses almoços de confraternização dos patrões terminavam em bebedeiras romanas ou em lutas de galos, e ao anoitecer tomavam de assalto o Farolito Rojo, onde as prostitutas de doze anos e Carmelo, o único maricas do bordel e da aldeia, bailavam ao som de uma grafonola antediluviana, sob o olhar atento de Sofia, que já não estava para essas cavalgadas, mas que ainda tinha energia para o gerir com mão de ferro e para impedir que se pusessem os polícias a esfregar a paciência e os patrões a exceder-se com as raparigas, fodendo sem pagar. Entre todas, Tránsito Soto era a que melhor bailava e a que mais resistia às investidas dos bêbados, era incansável e nunca se queixava de nada, como se tivesse a virtude tibetana de deixar o mísero esqueleto de adolescente nas mãos dos clientes e mudar a alma para uma região afastada. Agradava a Esteban Trueba porque não se cortava às inovações e brutalidades do amor, sabia cantar com voz de pássaro rouco e porque lhe disse uma vez que chegaria muito longe e ele achou graça a isso. - Não vou ficar no Farolito Rojo toda a vida, patrão. Vou para a capital, porque quero ser rica e famosa - disse. Esteban ia ao lupanar porque era o único lugar de diversão da povoação, mas não era homem de prostitutas. Não gostava de pagar pelo que podia fazer por outros meios. Mas no entanto apreciava Tránsito Soto. A jovem fazia-o rir. Um dia, depois de fazer amor, sentiu-se generoso, o que raramente lhe sucedia, e perguntou a Tránsito Soto se gostava que ele lhe desse um presente. - Empresta-me cinquenta pesos, patrão! - pediu ela por fim. - É muita prata. Para que a queres tu? - Para uma passagem de comboio, um vestido vermelho, uns sapatos de salto alto, um frasco de perfume e para fazer a permanente. É tudo o que eu preciso para começar. Vou devolvê-los um dia, patrão. Com juros. Esteban deu-lhe os cinquenta pesos porque nesse dia tinha vendido cinco novilhos e andava com os bolsos cheios de notas e também porque a fadiga do prazer satisfeito o punha um pouco sentimental. - A única coisa que sinto é que não te vou voltar a ver, Tránsito. Tinha-me acostumado a ti. - Vamo-nos voltar a ver, sim, patrão. A vida é longa e dá muitas voltas. Essas comezainas no clube, as rixas de galos e as tardes no bordel culminaram num plano inteligente, ainda que não original de todo, para fazer votar os camponeses. Deram-lhes uma festa com empadas e muito vinho, sacrificaram-se algumas reses para assar, tocaram-lhes canções na guitarra, impingiram-lhes alguns discursos patrióticos e prometeram-lhes que se vencesse o candidato conservador teriam uma gratificação, mas se vencesse outro qualquer ficavam sem trabalho. Além disso, controlaram as urnas e subornaram a polícia. Depois da festa meteram os camponeses dentro de carroças e levaram-nos a votar, bem vigiados, entre chalaças e gargalhadas, a única oportunidade em que tinham familiaridades com eles: compadre para aqui compadre para acolá, conte comigo que eu não lhe falto, patrãozinho, assim agrada-me, homem, tens de ter consciência patriótica, olha que os liberais e os radicais são todos uns poltrões e os comunistas são uns ateus, filhos da pura, que comem criancinhas. No dia das eleições tudo correu como estava previsto, em perfeita ordem. As Forças Armadas garantiram o processo democrático, tudo em paz, um dia de Primavera mais alegre e com mais sol que os outros. - Um exemplo para este continente de índios e de negros, que passam a vida em revoluções, para derrubar um ditador e pôr outro. Este é um pais diferente, uma verdadeira República, temos orgulho cívico, aqui o Partido Conservador ganha de caras e não necessita de um general para haver ordem e tranquilidade, não é como essas ditaduras da região onde se matam uns aos outros, enquanto os gringos levam todas as matérias-primas - afirmou Trueba na sala de jantar do clube, brindando com um copo na mão, no momento em que soube dos resultados da votação. Três dias depois, quando se tinha voltado à rotina, chegou a carta de Férula a Las Tres Marias. Esteban Trueba tinha sonhado essa noite com Rosa. Fazia muito tempo que isso não lhe acontecia. No sonho viu-a com o seu cabelo de salgueiro solto pelos ombros, como um manto vegetal que a cobria até à cintura, a pele dura e gelada, da cor e textura do alabastro. Ia nua e levava um embrulho nos braços, caminhava como se caminha nos sonhos, aureolada pelo resplendor que flutuava à volta do seu corpo. Viu-a aproximar-se lentamente e, quando quis tocá-la, ela atirou o embrulho para o chão, partindo-se a seus pés. Ele baixou-se, apanhou-o e viu uma menina sem olhos que lhe chamava papa. Acordou angustiado e andou de mau humor toda a manhã. Por causa do sonho, sentiu-se inquieto muito antes de receber a carta de Férula. Entrou na cozinha para tomar o pequeno almoço, como todos os dias, e viu uma galinha que andava a bicar as migalhas no chão. Mandou-lhe um pontapé que lhe abriu a barriga, deixando-a agonizante num charco de tripas e penas, batendo as asas no meio da cozinha. Isso não o acalmou, pelo contrário, aumentou a sua raiva e sentiu que começava a afogar-se. Montou no cavalo e foi a galope vigiar o gado que estavam a marcar. Nessa altura chegou a casa Pedro Segundo Garcia, que tinha ido à estação de San Lucas deixar uma encomenda e tinha passado pela povoação a recolher o correio. Trazia a carta de Férula. O sobrescrito aguardou toda a manhã sobre a mesa da entrada. Quando Esteban Trueba chegou foi directamente tomar banho porque vinha coberto de suor e pó, impregnado do cheiro inconfundível dos animais aterrorizados. Depois sentou-se no escritório a fazer contas e ordenou que lhe servissem a comida numa bandeja. Não viu a carta da irmã até à noite, quando percorreu a casa como fazia sempre antes de se deitar, para ver se as luzes estavam apagadas e as portas fechadas. A carta de Férula era igual a todas as que tinha recebido dela, mas, ao tê-la na mão, soube, ainda antes de a abrir, que o seu conteúdo lhe mudaria a vida. Teve a mesma sensação que quando pegara no telegrama da irmã anunciando-lhe a morte de Rosa, anos atrás. Abriu-a sentindo que lhe estalavam as fontes pelo pressentimento. A carta dizia laconicamente que Dona Ester Trueba estava a morrer e que Férula, depois de tantos anos a cuidar dela e a servi-la como uma escrava, tinha de aguentar que a sua mãe nem sequer a reconhecesse, mas que chamava dia e noite pelo seu filho Esteban, porque não queria morrer sem vê-lo! Esteban nunca tinha querido realmente a sua mãe, nem se sentia bem na sua presença, mas a notícia deixou-o a tremer. Compreendeu que já não lhe serviam os pretextos sempre novos que inventava para não a visitar, e que tinha chegado o momento de fazer o caminho de volta à capital e enfrentar pela última vez essa mulher que estava presente nos seus pesadelos, com o seu cheiro rançoso a medicamentos, os seus queixumes ténues, as suas intermináveis orações, essa mulher sofredora que tinha povoado de proibições e terrores a sua infância e carregado de responsabilidades e culpas a sua vida de homem. Chamou Pedro Segundo Garcia e explicou-lhe a situação. Levou-o ao escritório e mostrou-lhe o livro da contabilidade e as contas da cantina. Entregou-lhe um molho com todas as chaves, menos a da adega, e anunciou-lhe que, a partir desse momento e até ao seu regresso, ele era o responsável por tudo o que havia em Las Tres Marias. Pedro Segundo Garcia recebeu as chaves, meteu o livro das contas debaixo do braço e sorriu de alegria. - Cada um faz o que pode, nada mais, patrão – disse encolhendo os ombros. No dia seguinte, Esteban Trueba refez, pela primeira vez em muitos anos, o caminho que o tinha levado de casa da mãe para o campo. Foi numa carroça com as duas malas de couro até à estação de San Lucas, tomou a carruagem de primeira classe dos tempos da companhia inglesa de caminhos-de-ferro e tornou a percorrer os vastos campos que se estendiam no sopé da cordilheira. Capítulo III Clara, Clarividente Clara tinha dez anos quando decidiu que não valia a pena falar e se fechou no mutismo. A sua vida mudou de maneira notável. O médico da família, o gordo e afável doutor Cuevas, tentou curá-la do silêncio com pílulas da sua invenção, com vitaminas em xarope e zaragatoas de bórax na garganta, mas sem nenhum resultado aparente. Deu conta de que os seus medicamentos eram ineficazes e que a sua presença punha a menina em estado de terror. Ao vê-lo, Clara começava a berrar e refugiava-se no canto mais afastado, encolhida como um animal acossado, de maneira que abandonou as curas e recomendou a Severo e Nívea que a levassem a um romeno, de apelido Rostipov, que estava causando sensação nessa temporada. Rostipov ganhava a vida fazendo truques de ilusionista nos teatros de variedades e tinha realizado a incrível façanha de estender um arame desde a ponta da catedral até à cúpula da Irmandade Galega, do outro lado da praça, para a atravessar caminhando pelo ar com uma vara por única segurança. Apesar do seu lado frívolo, Rostipov estava provocando uma confusão nos círculos científicos porque nas horas livres melhorava a histeria com varinhas mágicas e transes hipnóticos. Nívea e Severo levaram Clara ao consultório que o romeno tinha improvisado no hotel. Rostipov examinou-a cuidadosamente e por fim declarou que o caso não era da sua incumbência, porque a pequena não falava porque não queria mesmo, e não porque não pudesse. De qualquer modo, face à insistência dos pais, fabricou umas pílulas de açúcar pintadas de cor violeta e receitou-as advertindo de que era um remédio siberiano para curar surdos e mudos. Mas a sugestão não funcionou neste caso e o segundo frasco foi devorado por Barrabás por descuido, sem que isso provocasse no animal nenhuma reacção apreciável. Severo e Nívea tentaram fazê-la falar com métodos caseiros, com ameaças e súplicas e até deixando-a sem comer, a ver se a fome a obrigava a abrir a boca, para pedir o jantar, mas nem isso resultou. A Ama tinha a ideia de que um bom susto podia conseguir que a menina falasse e passou nove anos inventando recursos desesperados para aterrorizar Clara, o que só conseguiu imunizá-la contra a surpresa e o espanto. Em pouco tempo, Clara não tinha medo de nada, não a comoviam as aparições de monstros lívidos e magros no seu quarto nem as pancadas dos vampiros e demónios na janela. A Ama disfarçava-se de flibusteiro sem cabeça, verdugo da Torre de Londres, de cão lobo e de diabo cornudo, segundo a inspiração do momento e as ideias que tirava de uns folhetos de terror que comprava para esse fim e donde, embora não fosse capaz de os ler, copiava as ilustrações. Adquiriu o costume de deslizar silenciosamente pelos corredores para assaltar a menina no escuro, de uivar detrás das portas e de lhe esconder bichos vivos na cama, mas nada disto conseguiu arrancar-lhe uma palavra que fosse. Às vezes Clara perdia a paciência, atirava-se ao chão, torcia-se e gritava, mas sem articular nenhum som em idioma conhecido, ou então anotava na pequena lousa que trazia sempre consigo os piores insultos para a pobre mulher, que ia para a cozinha chorar pela incompreensão. - Faço isto para teu bem, meu anjinho! - soluçava embrulhada no lençol ensanguentado e com a cara mascarrada de cortiça queimada. Nívea proibiu-a de continuar a assustar a filha. Verificou que o estado de perturbação aumentava os seus poderes mentais e produzia desordem nas aparições que andavam à volta da criança. Além disso, aquele desfile de figuras truculentas estava a destruir o sistema nervoso de Barrabás, que nunca teve bom faro e era incapaz de reconhecer a Ama debaixo dos seus disfarces. O cão começou a urinar-se sentado, deixando à sua volta um imenso charco, e com frequência rangia os dentes. Mas a Ama aproveitava qualquer descuido da mãe para continuar nas suas invenções de curar a mudez com o mesmo remédio com que se curam os soluços. Retiraram Clara do colégio das freiras onde se tinham educado todas as irmãs del Valle e puseram-lhe professores em casa. Severo mandou vir de Inglaterra uma instrutora, Miss Agatha, alta, toda ela cor de âmbar e com grandes mãos de pedreiro, mas que não resistiu à mudança de clima, à comida picante e aos voos autónomos do saleiro deslocando-se sobre a mesa de jantar e acabou por regressar a Liverpool. A que se seguiu foi uma suíça que não teve melhor sorte, e a francesa que chegou graças aos contactos do embaixador desse pais com a família era tão rosada, redonda e doce que ficou grávida em poucos meses e, ao fazerem-se investigações sobre o caso, soube-se que o pai era Luís, irmão mais velho de Clara. Severo casou-os sem lhes perguntar a opinião e, contra todas as previsões de Nívea e suas amigas, foram muito felizes. Em face destas experiências, Nívea convenceu o marido de que aprender idiomas estrangeiros não era importante para uma criança com habilidades telepáticas e que era muito melhor insistir com as classes de piano e ensinar-lhe a bordar. A pequena Clara lia muito. O seu interesse pela leitura era indiscriminado, e tanto lhe serviam os livros mágicos dos baús encantados de tio Marcos como os documentos do Partido Liberal que o pai guardava no escritório. Enchia incontáveis cadernos com anotações privadas, onde foram ficando registados os acontecimentos desse tempo, que graças a isso não se perderam apagados pela neblina do esquecimento, e que posso usar agora para recuperar a sua memória. Clara, clarividente, conhecia o significado dos sonhos. Esta habilidade era natural nela e não requeria os intrincados estudos cabalísticos que usava o tio Marcos com mais esforços e menos acerto. O primeiro a dar-se conta disso foi Honório, o jardineiro da casa, que sonhou um dia com cobras que lhe andavam entre os pés e que, para as desenrolar deles, tinha de lhes dar patadas até que conseguiu esmagar dezanove. Contou isto à menina enquanto podava as roseiras, só para a entreter, porque gostava muito dela e lhe fazia pena que fosse muda. Clara tirou a lousa do bolso do avental e escreveu a interpretação do sonho de Honório: terás muito dinheiro, durar-te-á pouco, ganhá-lo-ás sem esforço, joga no dezanove. Honório não sabia ler, mas Nívea leu-lhe a mensagem entre conjecturas e risadas. O jardineiro fez o que lhe diziam e ganhou oitenta pesos num antro clandestino que havia por detrás da casa do carvão. Gastou-os num fato novo, numa bebedeira memorável com todos os seus amigos e numa boneca de loiça para Clara. A partir de então a menina teve muito trabalho decifrando sonhos às escondidas da mãe, porque quando se soube da história de Honório iam perguntar-lhe o que quer dizer voar sobre uma torre com asas de cisne, ir numa barca à deriva e cantar uma sereia com voz de viúva, nascerem dois gémeos pegados pelas costas, cada um com uma espada na mão, e Clara anotava sem vacilar, na lousa, que a torre é a morte e aquele que voa por cima salvar-se-á de morrer num acidente, o que naufraga e escuta a sereia perderá o trabalho e passará privações, mas vai ajudá-lo uma mulher com a qual fará um negócio, os gémeos são marido e mulher forçados no mesmo destino, ferindo-se mutuamente com golpes de espada. Os sonhos não eram a única coisa que Clara adivinhava. Também via o futuro e conhecia a intenção das pessoas, virtudes que manteve ao longo da sua vida e aumentou com o tempo. Anunciou a morte do padrinho, Don Salomon Valdés, que era corretor da Bolsa do Comércio e que, julgando ter perdido tudo, pendurou-se do candeeiro do seu elegante escritório. Ali o encontraram por insistência de Clara, com o aspecto de um carneiro triste, tal como ela o descreveu na lousa. Previu a hérnia do pai, todos os tremores de terra e outras alterações da natureza, a única vez que caiu neve na capital matando de frio os pobres nas aldeias e os roseirais nos jardins dos ricos, e a identidade do assassino das colegiais muito antes que a polícia descobrisse o segundo cadáver, mas ninguém acreditou e Severo não quis que a filha tivesse opinião sobre assuntos criminais que eram estranhos à família. Clara deu conta imediatamente que Getúlio Armando ia dar cabo de seu pai com o negócio das ovelhas australianas porque o leu na cor da aura. Escreveu isso ao pai, mas este não fez caso e, quando veio a lembrar-se das previsões da filha mais nova, já tinha perdido metade da fortuna, e o seu sócio andava pelas Caraíbas transformado em homem rico, com um serralho de negras cuzudas e um barco próprio para apanhar sol. A habilidade de Clara para mover objectos sem lhes tocar não passou com a menstruação, como vaticinava a Ama, mas, pelo contrário, foi-se acentuando até ter tanta prática que podia mover as teclas do piano com a tampa fechada, ainda que nunca conseguisse deslocar o instrumento pela sala, como era seu desejo. Nessas extravagâncias ocupava a maior parte da energia e do tempo. Desenvolveu a capacidade de adivinhar uma assombrosa percentagem de cartas do baralho e inventou jogos de fantasia para divertir os irmãos. O pai proibiu-a de descobrir o futuro nas cartas e de invocar fantasmas e espíritos travessos que molestavam o resto da família e aterrorizavam a criadagem, mas Nívea compreendeu que quanto mais limitações e sustos tivesse de impor à sua filha mais nova mais lunática ela se punha, de modo que decidiu deixá-la em paz com os seus truques de espiritista, os seus jogos de pitonisa e o silêncio de caverna, fazendo por amá-la sem condições e aceitá-la tal como era. Clara cresceu como uma planta selvagem, apesar das recomendações do doutor Cuevas, que tinha trazido da Europa a novidade dos banhos de água fria e dos choques eléctricos para curar os loucos. Barrabás acompanhava a menina dia e noite, excepto nos períodos normais da sua actividade sexual. Estava sempre a rondá-la como uma gigantesca sombra, tão silenciosa como a própria menina, deitava-se a seus pés quando ela se sentava e dormia a seu lado com resfolegar de locomotiva. Chegou a ter uma ligação tão grande com a dona que, quando ela sala da cama para caminhar sonâmbula pela casa, o cão seguia-a na mesma atitude. Em noites de lua cheia era comum vê-los passear pelos corredores, como dois fantasmas flutuando à luz pálida. À medida que o cão foi crescendo tornaram-se evidentes as suas distracções. Nunca compreendeu a natureza translúcida do vidro e nos seus momentos de emoção costumava bater nas janelas ao correr, com a inocente intenção de apanhar algumas moscas. Cala do outro lado num estardalhaço de vidros partidos, surpreendido e triste. Naquele tempo os vidros vinham de França por barco e a mania do animal de se lançar contra eles chegou a ser um problema, até que Clara idealizou o recurso extremo de pintar gatos nas vidraças. Ao tornar-se adulto Barrabás deixou de fornicar com as pernas do piano, como fazia na infância, e o seu instinto reprodutor manifestava-se só quando farejava alguma cadela com o cio nas proximidades. Nessas ocasiões não havia corrente nem porta que o pudessem reter, lançava-se para a rua vencendo todos os obstáculos que se lhe punham pela frente e perdia-se por dois ou três dias. Voltava sempre com a pobre cadela pendurada atrás, suspensa no ar, atravessada pela sua enorme masculinidade. Tinham de esconder as crianças para que não vissem o horrendo espectáculo do jardineiro molhando-os com água fria até que, depois de muita água, patadas e palavrões, Barrabás se desprendia da sua namorada, deixando-a agonizante no pátio da casa, onde Severo tinha de a acabar com um tiro de misericórdia. A adolescência de Clara decorreu suavemente na grande casa de três pátios de seus pais, mimada pelos irmãos mais velhos, por Severo que a preferia entre todos os filhos, por Nívea e pela Ama, que alternava as suas sinistras excursões disfarçada de cuco com os cuidados mais ternos. Quase todos os irmãos tinham casado ou partido, uns de viagem, outros para trabalhar na província, e a grande casa, que havia albergado uma família numerosa, estava quase vazia, com muitos quartos fechados. A menina ocupava o tempo que lhe deixavam os preceptores a ler, a mover sem lhes tocar os objectos mais diversos, a prender Barrabás, a praticar jogos de adivinhar, e a aprender a tecer, o que, de todas as artes domésticas, foi a única que conseguiu dominar. Desde aquela Quinta-Feira Santa em que o padre Restrepo a acusou de endemoninhada, houve uma sombra sobre a sua cabeça que o amor de seus pais e a discrição dos irmãos conseguiu controlar, mas a fama das suas estranhas habilidades circulou em voz baixa pelas tertúlias de senhoras. Nívea notou que ninguém convidava a filha e até os próprios primos a evitavam. Procurou compensar a falta de amigos com uma dedicação total, com tanto êxito que Clara cresceu alegremente e sempre recordaria a infância como um período luminoso da sua existência, apesar da solidão e da mudez. Em toda a sua vida guardaria na memória as tardes partilhadas com a mãe na salinha de costura, onde Nívea cosia à máquina roupa para os pobres e lhe contava histórias e anedotas familiares, lhe mostrava os daguerreótipos da parede e contava o passado. - Está a ver este senhor tão sério, com barba de pirata? É o tio Mateus, que foi ao Brasil por causa de um negócio de esmeraldas, mas uma mulata de fogo deitou-lhe mau olhado. Caiulhe o cabelo, desprenderam-se-lhe as unhas, soltaram-se-lhe os dentes. Teve de ir a um curandeiro, um bruxo vudu, um negro retinto, que lhe deu um amuleto e os dentes seguraramse- lhe, nasceram-lhe novas unhas e recuperou o cabelo. Clara sorria sem dizer nada e Nívea continuava falando porque se tinha acostumado ao silêncio da filha. Por outro lado, tinha a esperança que, de tanto lhe meter ideias na cabeça, mais cedo ou mais tarde ela faria uma pergunta e recuperaria a fala. - E este - dizia - é o tio João. Eu gostava muito dele. Uma vez deu um peido e foi a sua condenação à morte, uma grande desgraça. Aconteceu num almoço no campo. Estávamos todos nós, as primas, num lindo dia de Primavera, com os nossos vestidos de musselina e os nossos chapéus com flores e fitas, e os rapazes vestiam a melhor roupa domingueira. João tirou o casaco branco, parece que o estou vendo! Arregaçou a camisa e pendurou-se airoso no ramo de uma árvore para provocar, com as suas proezas de trapezista, a admiração de Constança Andrade, que foi Rainha da Vindima, e logo desde a primeira vez que a viu, perdeu a tranquilidade, devorado pelo amor. João fez duas flexões impecáveis, deu uma volta completa e, no movimento seguinte, lançou uma sonora ventosidade. Não se ria Clarinha! Foi terrível. Fez-se um silêncio de espanto e a Rainha da Vindima começou a rir descontroladamente. João vestiu o casaco, estava muito pálido, afastou-se do grupo sem pressa e não o voltámos a ver mais. Procuraram-no até na Legião Estrangeira, perguntaram por ele em todos os consulados, mas nunca mais se soube da sua existência. Penso que se tornou missionário e foi cuidar leprosos para a Ilha da Páscoa, que é onde mais longe conseguiria chegar para esquecer e para que o esquecessem, porque fica fora das rotas de navegação e nem sequer figura nos mapas dos Holandeses. Desde então, as pessoas recordam-no como João do Peido. Nívea levava a filha à janela e mostrava-lhe o tronco seco do álamo. - Era uma árvore enorme - dizia. - Mandei-o cortar antes de nascer o meu filho mais velho. Dizem que era tão alto que da ponta se podia ver toda a cidade, mas o único que chegou tão acima não tinha olhos para a ver. Cada homem da família del Valle, quando quis vestir calças compridas, teve de trepar por ele para provar o seu valor. Era qualquer coisa como um rito de iniciação. A árvore estava cheia de marcas. Eu própria pude comprovar, quando a cortaram. Desde os primeiros ramos intermédios, grossos como chaminés, já se podiam ver as marcas deixadas pelos avós que fizeram a subida na sua época. Pelas iniciais gravadas no tronco sabia-se quais tinham subido mais alto, quais os mais valentes, e também quais se tinham detido, assustados. Um dia tocou a vez a Jerónimo, o primo cego. Subiu tacteando os ramos sem vacilar, porque não via a altura e não pressentia o vazio. Chegou lá acima, mas não conseguiu terminar o jota da sua inicial, porque se desprendeu como uma gárgula e caiu de cabeça no chão, aos pés do pai e dos irmãos. Tinha eu quinze anos. Levaram o corpo à mãe, envolto num lençol, a pobre mulher cuspiu-lhes a todos na cara, gritando-lhes insultos de marinheiro e amaldiçoou a raça de homens que tinham incitado o filho a subir à árvore, até que as irmãs da caridade a levaram atada num colete-de-forças. Eu sabia que os meus filhos haviam um dia de continuar essa bárbara tradição. Por isso mandei-o cortar. Não queria que Luís e os outros meninos crescessem com a sombra deste patíbulo na janela. Clara acompanhava por vezes a mãe e duas ou três das suas amigas sufragistas a visitar as fábricas, onde subiam a caixotes, para arengar às operárias enquanto, a distância prudente, os capatazes e patrões observavam, ruidosos e agressivos. Apesar da sua pouca idade e da completa ignorância das coisas do mundo, Clara podia perceber o absurdo da situação e descrevia nos seus cadernos o contraste entre a mãe e as suas amigas, com casacos de pele e botas de camurça, falando de opressão, de igualdade e de direitos a um grupo triste e resignado de trabalhadoras, com os aventais toscos de cotim e as mãos vermelhas de frieiras. Da fábrica, as sufragistas iam para a confeitaria da Praça das Armas, tomar chá com pastelinhos e comentar os programas da campanha, sem que esta distracção frívola as afastasse nem um segundo dos seus inflamados ideais. Outras vezes a mãe levava-a às aldeias dos subúrbios e aos bairros de lata, onde chegavam com o carro carregado de alimentos e roupa que Nívea e as amigas cosiam para os pobres. Também nesta ocasião a menina escrevia, com assombrosa intuição, que as obras de caridade não podiam mitigar a injustiça monumental. A relação com a mãe era alegre e intima, e Nívea, apesar de ter tido quinze filhos, tratava-a como se fosse a única, estabelecendo um vinculo tão forte que se prolongou pelas gerações posteriores como uma tradição familiar. A Ama tinha-se tornado uma mulher sem idade, que conservava intacta a força da juventude e podia andar aos saltos pelos cantos assustando a mudez, tanto como podia passar o dia mexendo com um pau na marmita de cobre, num fogaréu dos diabos, no centro do terceiro pátio, onde borbulhava a marmelada, um líquido espesso cor de topázio que ao esfriar se vazava em moldes de todos os tamanhos que Nívea repartia pelos seus pobres. Acostumada a viver rodeada de crianças, quando os outros cresceram e se foram embora a Ama dedicou a Clara todas as suas ternuras. Embora a menina já não tivesse idade para isso, banhava-a como se fosse um bebé, mergulhando-a na banheira esmaltada em água perfumada com alfavaca e jasmim, esfregava-a com uma esponja, ensaboava-a meticulosamente sem esquecer nenhum cantinho das orelhas ou dos pés, friccionava-a com água-de-colónia, punha-lhe pó de talco com um hissope de penas de cisne e penteava-lhe o cabelo com infinita paciência até o deixar brilhante e dócil como uma planta do mar. Vestia-a, abria-lhe a cama, levava-lhe o pequeno almoço numa bandeja, obrigava-a a tomar chá de tília para os nervos, de macela para o estômago, de limão para a transparência da pele, de arruda para os maus fígados e de hortelãpimenta para a frescura do hálito, até que a menina se tornou um ser angelical e formoso que deambulava pelos pátios e corredores envolta num aroma de flores, num rumor de saiotes engomados e num halo de risos e fitas. Clara passou a infância e entrou na juventude dentro das paredes de sua casa, num mundo de histórias assombrosas, de silêncios tranquilos, onde o tempo não se marcava com relógios nem com calendários e onde os objectos tinham vida própria, as aparições se sentavam à mesa e falavam com os humanos, o passado e o futuro faziam parte da mesma coisa e a realidade do presente era um caleidoscópio de espelhos desordenados onde tudo podia acontecer. É uma delicia para mim ler os cadernos dessa época, onde se descreve um mundo mágico que acabou. Clara habitava um universo inventado por ela, protegida das inclemências da vida, onde se confundiam a verdade prosaica das coisas materiais e a verdade tumultuosa dos sonhos, onde nem sempre funcionavam as leis da física ou da lógica. Clara viveu esse período ocupada nas suas fantasias, acompanhada pelos espíritos do ar, da água e da terra, tão feliz que não sentiu a necessidade de falar durante nove anos. Todos tinham perdido a esperança de tornar a ouvir-lhe a voz quando, no dia do seu aniversário, depois de soprar as dezanove velas do bolo de chocolate, estreou uma voz que tinha estado guardada durante todo aquele tempo e que tinha ressonância de instrumento desafinado: - Vou casar imediatamente - disse. - Com quem? - perguntou Severo. - Com o noivo de Rosa - respondeu ela. E então deram conta que tinha falado pela primeira vez em todos esses anos e o prodígio remexeu a casa até aos alicerces e provocou o pranto de toda a família. Chamaram-se uns aos outros, espalhou-se a noticia pela cidade, consultaram o doutor Cuevas, que não podia acreditar, e, na confusão por Clara ter falado, todos se esqueceram do que ela tinha dito e só se recordaram dois meses mais tarde, quando apareceu Esteban Trueba, a quem não tinham visto desde o enterro de Rosa, para pedir a mão de Clara. Esteban desceu na estação e carregou ele mesmo as duas malas. A cúpula de ferro que os Ingleses haviam construído imitando a Estação Vitória, nos tempos em que; tinham a concessão dos caminhos-de-ferro nacionais, não mudara nada desde a última vez que tinha estado ali anos antes os mesmos vidros sujos, os garotos a engraxar sapatos, as vendedeiras de pão-de-ovos e doces crioulos e os carregadores com as boinas escuras com a insígnia da coroa britânica, que ninguém tinha pensado substituir por outra com as cores da bandeira. Apanhou um fiacre e deu a direcção da casa da mãe. A cidade pareceu-lhe desconhecida, havia uma desordem de modernismo, um prodígio de mulheres mostrando as canelas, de homens com colete e calças de pregas, uma barulheira de operários fazendo buracos no pavimento, tirando árvores para pôr postes, tirando postes para pôr edifícios, tirando edifícios para plantar árvores, um estorvo de pregoeiros ambulantes gritando as maravilhas do afiador de facas, do amendoim torrado, do «bonequinho que baila sozinho, sem arame, sem fios, veja você mesmo, pegue nele», um vento de lixeiras, de fritos, de fábricas, de automóveis esbarrando com os fiacres e as tranvias de tracção a sangue, como chamavam aos cavalos velhos que puxavam os transportes colectivos, uma respiração de multidão, um rumor de correria, de ir e vir com pressa, de impaciência e horário fixo. Esteban sentiu-se oprimido. Odiava aquela cidade mais do que a recordava, evocou as alamedas do campo, o tempo medido pelas chuvas, a vasta solidão dos seus pastos, a fresca mansidão do rio e da sua casa silenciosa. - Isto é uma cidade de merda - concluiu. O fiacre levou-o a trote à casa onde se tinha criado. Estremeceu ao ver como o bairro se tinha deteriorado durante esses anos, desde que os ricos quiseram viver mais acima que os outros e a cidade crescera até às faldas da cordilheira. Da praça onde brincara em menino nada restava, era um sitio baldio cheio de carroças do mercado estacionadas entre o lixo onde escavavam os cães vadios. A sua casa estava devastada. Viu nela todos os sinais do tempo. Na porta envidraçada com motivos de pássaros exóticos no cristal trabalhado, fora de moda e desengonçada, havia um batente em forma de mão feminina agarrando uma bola. Tocou e teve de esperar algum tempo, que lhe pareceu interminável, até que a porta se abriu com um puxão de uma corda que ia do trinco à parte superior da escada. A mãe habitava o segundo piso e alugava o rés-do-chão a uma fábrica de botões. Esteban começou a subir os degraus que rangiam e que já não eram encerados há muito tempo. Uma criada velhíssima, cuja existência tinha esquecido por completo, esperava-o lá em cima, e recebeu-o com lacrimosas manifestações de afecto, tal como o recebia aos quinze anos, quando voltava do notário onde ganhava a vida copiando mudanças de propriedade e de procurações de desconhecidos. Nada tinha mudado, nem sequer o lugar dos móveis, mas tudo pareceu diferente a Esteban, o corredor com as tábuas gastas, alguns vidros partidos, mal remendados com pedaços de cartão, uns fetos cheios de pó definhando em vasos oxidados e potes de loiça rachada, um cheiro fétido de comida e urinas que dava volta ao estômago. «Que pobreza!» pensou Esteban, sem perceber onde ia parar todo o dinheiro que enviava à irmã para viver com decência. Férula saiu a recebê-lo com uma triste careta de boas-vindas. Havia mudado muito, já não era a mulher opulenta que deixara anos atrás, tinha emagrecido e o nariz parecia enorme no seu rosto anguloso, tinha um ar de melancolia e ofuscação, cheiro intenso a lavanda e roupa antiquada. Abraçaram-se em silêncio. - Como está a mamã? - perguntou Esteban. - Vem vê-la, está à tua espera - disse ela. Passaram por um corredor de quartos com comunicação entre si, todos iguais, escuros, de paredes mortuárias, tectos altos e janelas estreitas, as paredes forradas de papel com flores desbotadas e donzelas languidas, manchado pela fuligem dos braseiros e pela pátina do tempo e pela pobreza. De muito longe chegava a voz de um locutor de rádio anunciando as pílulas do doutor Ross, pequeninas mas eficientes, que combatem a prisão de ventre, a insónia e o mau hálito. Pararam em frente da porta fechada do quarto de Dona Ester Trueba. - Está aqui - disse Férula. Esteban abriu a porta e necessitou de alguns segundos para ver no escuro. O cheiro a medicamentos e podridão bateu-lhe na cara, o odor adocicado do suor, da humidade, da clausura e de algo que a principio não identificou, mas que logo se colou a ele como uma peste: o cheiro da carne em decomposição. Entrava um fio de luz pela janela entreaberta, viu a cama larga onde morrera o seu pai e onde dormia a mãe desde o dia do casamento, de negra madeira esculpida, com um dossel de anjos em alto-relevo e penduricalhos de brocado vermelho estafados pelo uso. A mãe estava semideitada. Era um bloco de carne compacta, uma monstruosa pirâmide de gordura e trapos, terminada por uma pequena cabecinha calva com olhos doces, surpreendentemente vivos, azuis e inocentes. A artrite tinha-a tornado um ser monolítico, não podia dobrar as articulações nem virar a cabeça, tinha os dedos em garfo, como patas de um fóssil, e para manter a posição na cama necessitava do apoio de uma gaveta nas costas, segura por uma trave de madeira que por sua vez assentava na parede. Notava-se o passar dos anos pelas marcas que a viga deixara na parede, um rasto de sofrimento, um caminho de dor. - Mamã... - murmurou Esteban, e a voz quebrou-se-lhe no peito num pranto contido, apagando de uma penada as recordações tristes, a infância pobre, os cheiros rançosos, as manhãs gélidas e a sopa gordurosa da sua meninice, a mãe doente, o pai ausente e essa raiva comendo-lhe as entranhas desde o dia em que usou a razão, esquecendo tudo menos os únicos momentos luminosos em que aquela mulher desconhecida que jazia na cama o tinha embalado nos braços, lhe tinha tocado na testa para lhe ver a febre, lhe havia cantado uma canção de embalar, se tinha inclinado com ele sobre as páginas de um livro, soluçado de pena por vê-lo levantar-se ao nascer do Sol para ir trabalhar quando era ainda um menino, soluçado de alegria ao vê-lo regressar à noite, «tinha soluçado, mãe, por mim». Dona Ester Trueba estendeu a mão, não era uma saudação, mas apenas um gesto para o deter: - Filho, não se aproxime - e tinha a voz inteira, tal como ele recordava a voz cantante e sã de uma jovenzinha. - É por causa do cheiro - explicou Férula secamente. - Pega-se. Esteban afastou a colcha de damasco esfiapada e viu as pernas da mãe. Eram duas colunas arroxeadas, cobertas de chagas, onde as larvas das moscas e os vermes faziam ninhos e cavavam túneis, duas pernas apodrecendo em vida, com uns pés descomunais cor azulpálido, sem unhas nos dedos, rebentando pelo pus, pelo sangue negro, pela fauna abominável que se alimentava da sua carne, «mãe, por Deus, da minha carne». - O doutor quer cortar-mas, filho - disse Dona Ester com a sua voz tranquila de rapariga, - mas estou muito velha para isso e muito cansada de sofrer, por isso é melhor morrer. Mas não queria morrer sem vê-lo, porque em todos estes anos cheguei a pensar que você estava morto e que as suas cartas era a sua irmã quem as escrevia, para não me dar essa dor. Acenda a luz, filho, para o ver melhor. Meu Deus! Parece um selvagem! - É a vida do campo, mamã - murmurou ele. - Enfim! Está ainda forte. Quantos anos tem? - Trinta e cinco. - Boa idade para se casar e assentar cabeça, para eu poder morrer em paz. - A mamã não vai morrer - suplicou Esteban. - Quero ter a certeza de que terei netos, alguém que leve o meu sangue, que tenha o nosso apelido. Férula perdeu as esperanças de casar, mas você tem de procurar esposa. Uma mulher decente e cristã. Mas antes disso tem de cortar esse cabelo e essa barba, está a ouvir-me? Esteban disse que sim. Ajoelhou-se junto da mãe e pôs a cara na sua mão inchada, mas o cheiro fê-lo recuar. Férula pegou-lhe no braço e tirou-o daquele quarto de pesadelo. Lá fora respirou profundamente, com o fedor colado nas narinas e então sentiu a raiva, a sua raiva tão conhecida, subir-lhe como uma onda quente à cabeça, injectar-lhe os olhos, pôr-lhe blasfémias de pirata nos lábios, «raiva pelo tempo passado sem pensar em si, mãe», não quis dizer isso, «porra, está a morrer, a velha, e eu não posso fazer nada, nem sequer acalmar-lhe a dor, aliviar-lhe a podridão, tirar-lhe este cheiro de meter medo, este caldo de morte em que está a ser cozinhada, mãe». Dois dias depois Dona Ester Trueba morreu no leito dos suplícios onde tinha padecido os últimos anos da sua vida. Estava sozinha porque a sua filha Férula tinha ido, como acontecia todas as sextas-feiras, aos bairros dos pobres, na Misericórdia, rezar o terço aos indigentes, aos ateus, às prostitutas e aos órfãos, que lhe atiravam com lixo, lhe vazavam penicos e lhe cuspiam na cara, enquanto ela, de joelhos nas lajes do chão, gritava pais-nossos e ave-marias em incansável ladainha, suja de porcaria de indigente, de cuspo de ateu, de desperdício de prostituta e caca de órfão, chorando, aí de humilhação, pedindo perdão para os que não sabem o que fazem, e sentindo que os ossos a abandonavam, que uma languidez mortal lhe punha as pernas em algodão, que um calor de Verão lhe metia pecados nos músculos, «afasta de mim esse cálice, Senhor», porque o ventre rebentava-se-lhe em chamas de Inferno, «ai de santidade, de medo, Pai Nosso, não me deixes cair em tentação, Jesus». Esteban também não estava com Dona Ester quando ela morreu silenciosamente no leito dos suplícios. Tinha ido visitar a família del Valle para ver se lhe restava alguma filha solteira, porque, com tantos anos de ausência e tantos de barbárie, não sabia por onde começar a cumprir a promessa feita à mãe de dar-lhe netos legítimos e concluiu que, se Severo e Nívea o tinham aceite como genro nos tempos de Rosa, a bela, não havia nenhuma razão para que não o aceitassem de novo, especialmente agora que era homem rico e não tinha de escavar a terra para arrecadar o seu ouro, agora quando tinha tudo o que era necessário na sua conta do Banco. Esteban e Férula encontraram a mãe morta na cama. Tinha um sorriso calmo, como se a doença tivesse querido poupar-lhe a quotidiana tortura no último instante de vida. No dia em que Esteban Trueba pediu para ser recebido, Severo e Nívea del Valle recordaram as palavras com que Clara tinha quebrado a sua longa mudez, por isso não manifestaram nenhuma estranheza quando o visitante lhes perguntou se tinham alguma filha em idade de casar. Fizeram as contas e informaram que Ana se tinha feito freira, Teresa estava muito doente e todas as outras estavam casadas, menos Clara, a mais nova, que ainda estava disponível, mas que era um ser um tanto extravagante, pouco apta para as responsabilidades matrimoniais e para a vida doméstica. Com toda a honestidade contaram-lhe as excentricidades da filha mais nova, sem esconder o facto de que tinha permanecido sem falar durante metade da sua existência, porque não lhe apetecia fazê-lo e não porque não pudesse, como tinha dito muito bem o romeno Rostipov e confirmado o doutor Cuevas com inúmeros exames. Mas Esteban Trueba não era homem para se deixar amedrontar por histórias de fantasmas que andam pelos corredores, por objectos que se movem à distância com o poder da mente ou por presságios de má sorte, e muito menos pelo prolongado silêncio, que considerava uma virtude. Concluiu que nenhuma dessas coisas eram inconvenientes para deitar filhos sãos e legítimos ao mundo e pediu para conhecer Clara. Nívea foi buscar a filha e os dois homens ficaram sozinhos no salão, ocasião que Trueba, com a franqueza habitual, aproveitou para apresentar sem preâmbulos a sua solvência económica. - Por favor, não diga mais, Esteban! - interrompeu Severo. - Primeiro tem de ver a menina, conhecê-la melhor, e também porque temos de atender aos desejos de Clara. Não lhe parece? Nívea regressou com Clara. A jovem entrou no salão com as faces coradas e as unhas negras, porque tinha estado a ajudar o jardineiro a plantar batatas de dálias e nessa ocasião faltou-lhe a clarividência para esperar o futuro noivo com aspecto mais esmerado. Ao vê-la, Esteban pôs-se de pé assombrado. Lembrava-se dela como uma criança fraca e asmática, sem a menor graça, mas a jovem que tinha na frente era um delicado medalhão de marfim, com rosto doce e uma mata de cabelo castanho, crespo e desordenado escapando do penteado em caracóis, olhos melancólicos, que se transformavam numa expressão matreira e coriscante quando sorria, com um riso franco e aberto, a cabeça ligeiramente inclinada para trás. Ela saudou-o com um aperto de mão, sem dar mostras de timidez: - Estava à sua espera - disse simplesmente. A visita de cortesia prolongou-se por um par de horas, falando da temporada lírica, das viagens à Europa, da situação política e dos resfriados de Inverno, bebendo mistelas e comendo pastéis de massa folhada. Esteban observava Clara com toda a discrição de que era capaz, sentindo-se a pouco e pouco seduzido pela rapariga. Não se recordava de ter estado tão interessado em alguém desde o dia glorioso em que viu Rosa, a bela, comprando caramelos de anis na confeitaria da Praça de Armas. Comparou as duas irmãs e chegou à conclusão de que Clara ganhava em simpatia, ainda que Rosa, sem dúvida, tivesse sido muito mais formosa. Caiu a noite e entraram duas criadas a correr as cortinas e a acender as luzes, então Esteban reparou que a visita tinha durado demasiado tempo. Os seus modos deixavam muito a desejar. Saudou Severo e Nívea rigidamente e pediu para visitar Clara de novo. - Espero não a aborrecer, Clara - disse corando. - Sou um homem rude, do campo, e pelo menos quinze anos mais velho. Não sei tratar com uma jovem como você... - Você quer casar comigo? - perguntou Clara, e ele notou-lhe um brilho irónico nas pupilas de avelã. - Clara, por amor de Deus! - exclamou a mãe horrorizada. - Desculpe Esteban, esta menina foi sempre muito impertinente. - Quero saber mamã, para não perder tempo - disse Clara. - Eu também gosto das coisas directas - sorriu feliz Esteban. - Sim, Clara, foi por isso que vim. Clara pegou-lhe pelo braço e acompanhou-o até à saída. No último olhar que trocaram, Esteban compreendeu que ela o aceitara e sentiu-se invadido de alegria. Ao subir para o fiacre, sorria, sem poder acreditar na sua boa sorte e sem saber por que razão uma jovem encantadora como Clara o tinha aceite sem o conhecer. Não sabia que ela havia visto o seu próprio destino, e que por isso o tinha chamado com o pensamento e estava disposta a casar sem amor. Deixaram passar alguns meses por respeito ao luto de Esteban Trueba, durante os quais ele a cortejou à antiga, da mesma forma como tinha feito com a irmã Rosa, sem saber que Clara detestava os caramelos de anis e que os acrósticos a faziam rir. No fim do ano, pelo Natal, anunciaram oficialmente o noivado no jornal e puseram as alianças na presença dos pais e dos amigos íntimos, mais de cem pessoas ao todo, num banquete pantagruélico onde desfilavam as bandejas com perus recheados, os porcos com caramelo, os congros de água fria, as lagostas gratinadas, as ostras vivas, as tortas de laranja e limão das Carmelitas, de amêndoas e nozes das Dominicanas, de chocolate e ovos-moles das Clarissas, e caixas de champanhe trazidas de França através do cônsul, que fazia contrabando aproveitando-se dos privilégios diplomáticos, mas tudo servido e apresentado com grande simplicidade pelas antigas servas da casa, com os aventais negros de todos os dias, para dar ao festim a aparência de uma modesta reunião familiar, porque toda a extravagar ia era uma prova de grosseria e condenada como um pecado de vaidade mundana e um sinal de mau gosto, devido ao passado austero e um tanto triste daquela sociedade descendente dos mais esforçados emigrantes castelhanos e bascos. Clara era uma aparição de rendas brancas de Chantilly e de camélias naturais, libertando-se como um periquito feliz dos nove anos de silêncio, dançando com o noivo debaixo dos toldos e lampiões, alheia por completo às advertências dos espíritos que lhe faziam sinais desesperados por detrás das cortinas, mas que no meio da multidão e do barulho ela não via. A cerimónia das alianças mantinha-se igual desde os tempos coloniais. Às dez da noite, um criado circulou por entre os convidados tocando um sininho de cristal, calou-se a música, parou o baile e os convidados reuniram-se no salão principal. Um sacerdote pequeno e inocente, adornado com os paramentos de missa grande, leu o emaranhado sermão que tinha preparado, exaltando virtudes confusas e impraticáveis. Clara não o ouviu porque, quando parou o barulho da música e a luta dos bailarinos, prestou atenção aos sussurros dos espíritos entre as cortinas e reparou que há já muitas horas não via Barrabás. Procurou-o com os olhos, pondo os sentidos alerta, mas uma cotovelada da mãe devolveu-a às urgências da cerimónia. O padre terminou o discurso, benzeu os anéis de ouro e em seguida Esteban pôs um à noiva e colocou outro no próprio dedo. Nesse momento um grito de terror sacudiu os presentes. As pessoas afastaram-se, abrindo caminho, por onde entrou Barrabás, mais negro e maior do que nunca, com uma faca de carniceiro espetada no lombo até ao cabo, sangrando como um boi, com as grandes patas de potro a tremer, o focinho babando um fio de sangue, os olhos enevoados pela agonia, passo a passo, arrastando uma pata atrás da outra num avançar ziguezagueante de dinossauro ferido. Clara caiu sentada no sofá de seda francesa. O canzarrão aproximou-se dela, colocou-lhe a grande cabeça de fera milenária na saia e ficou a olhá-la com olhos enamorados, que se embaciaram pouco a pouco, ficando cego, enquanto a renda branca de Chantilly, a seda francesa do sofá, a almofada persa e o parquet (em francês no texto (N. T.)) se ensoparam de sangue. Barrabás foi morrendo, sem pressa alguma, com os olhos presos em Clara, que lhe acariciava as orelhas e murmurava palavras de consolo, até que finalmente num único estertor se tornou rígido. Então todos pareceram despertar de um pesadelo e um rumor de espanto percorreu o salão, os convidados começaram a despedir-se à pressa, a escapar contornando os charcos de sangue, pegando de passagem nas estolas de pele, nos chapéus de copa, nas bengalas, nos guarda-chuvas, nas bolsas de missanga. No salão da festa ficaram apenas Clara com o animal no regaço, os seus pais, que se abraçavam paralisados pelo mau presságio, e o noivo, que não entendia a causa de tanto alvoroço por um cão morto mas que, quando viu que Clara parecia em transe, levantou-a nos braços e levou-a meio inconsciente até ao quarto, onde os cuidados da Ama e os sais do doutor Cuevas impediram que tornasse a cair no estupor e na mudez. Esteban Trueba pediu ajuda ao jardineiro e os dois atiraram para o carro o cadáver de Barrabás, que com a morte aumentou de peso até ser quase impossível levantálo. O ano passou com os preparativos para a boda. Nívea ocupou-se em ajudar Clara, que não demonstrava o menor interesse no conteúdo dos baús de sândalo e continuava fazendo experiências com a mesa de pé-de-galo e as suas cartas de adivinhar. Os lençóis bordados com primor, as toalhas de renda e a roupa interior que há dez anos atrás as freiras tinham feito para Rosa, com as iniciais entrelaçadas de Trueba e del Valle, serviram para o enxoval de Clara. Nívea encomendou em Buenos Aires, em Paris e em Londres vestidos de viagem, roupa para o campo, trajes de festa, chapéus à moda, sapatos e carteiras de pele de lagarto e camurça, e outras coisas que se guardavam embrulhadas em papel de seda e se conservavam com lavanda e cânfora, sem que a noiva lhes desse mais que uma olhadela distraída. Esteban Trueba pôs-se à frente de um grupo de pedreiros, carpinteiros e canalizadores para construir a casa mais sólida, ampla e soalheira que se pudesse conceber, destinada a durar mil anos e a albergar várias gerações de uma família numerosa de Truebas legítimos. Encarregou dos planos um arquitecto francês e mandou vir parte dos materiais do estrangeiro para que a sua casa fosse a única com vitrais alemães, com socos talhados na áustria, com torneiras de bronze inglesas, com mármores italianos no chão e fechaduras pedidas por catálogo dos Estados Unidos, que chegaram com instruções trocadas e sem chaves. Férula, horrorizada pelas despesas, procurou evitar que ele continuasse a fazer loucuras, comprando móveis franceses, lustres e almofadas turcas, com o argumento de que se iam arruinar e se voltaria a repetir a história do Trueba extravagante que os tinha engendrado mas Esteban demonstrou-lhe que era bastante rico para dar-se a esses luxos e ameaçou-a de forrar as portas de prata se continuasse a chateá-lo. Então ela disse que tanto esbanjamento era seguramente pecado mortal e que Deus os ia castigar por gastar em pirosices de novo rico o que seria melhor empregue ajudando os pobres. Apesar de Esteban Trueba não ser amante de inovações antes, pelo contrário, ter grande desconfiança pelos transtornos do modernismo, decidiu que a sua casa devia ser construída como os novos palacetes da Europa e América do Norte, com todas as comodidades embora mantendo um estilo clássico. Queria que fosse o mais despojada possível de arquitectura indígena. Não queria três pátios, corredores, fontes barulhentas, quartos escuros, paredes de adobe branqueadas de cal, nem telhas poeirentas, mas dois ou três pisos heróicos, fileiras de colunas brancas, uma escada senhorial que desse meia volta sobre si mesma e aterrasse num hall (Em inglês no texto (N. T.)) de mármore branco, janelas grandes e iluminadas e, de uma maneira geral, um aspecto de ordem e acerto de beleza e civilização, próprio dos povos estrangeiros, e de acordo com a sua nova vida. A sua casa devia ser o reflexo dele próprio, da sua família e do prestigio que pensava dar ao apelido que o pai tinha sujado. Desejava que o esplendor se visse da rua, por isso mandou desenhar um jardim francês com um pavilhão versalhesco, maciços de flores, um relvado liso e perfeito, repuxos e algumas estátuas representando os deuses do Olimpo e talvez algum índio selvagem da história americana, nu e coroado de penas, como uma concessão ao patriotismo. Não podia saber que aquela mansão solene cúbica, compacta e bojuda, colocada como um chapéu com o seu contorno verde e geométrico, acabaria por encher-se de protuberâncias, de múltiplas escadarias torcidas que conduziam a lugares vagos, de torreões, de postigos que não se abriam e de portas suspensas no vazio, de corredores torcidos e de olhos-de-boi que ligavam os quartos para a hora da sesta, de acordo com a inspiração de Clara, que, cada vez que necessitava de instalar um novo hóspede, mandaria fazer outro quarto em qualquer parte, e, se os espíritos lhe indicavam que havia um tesouro oculto ou um cadáver insepulto nos alicerces, deitaria abaixo uma parede, até deixar a mansão transformada num labirinto encantado, impossível de limpar, que desafiava numerosas leis urbanísticas e municipais. Mas quando Trueba construiu o que todos chamavam «a grande casa da esquina», tinha o selo solene que procurava impor a tudo o que o rodeava, em recordação das privações da infância. Clara nunca foi ver a casa durante o processo de construção. Parecia interessar-lhe tão pouco como o próprio enxoval, depositando as decisões nas mãos do noivo e da futura cunhada. Ao morrer a mãe, Férula viu-se sozinha e sem nada de útil para dedicar a sua vida, numa idade em que já não tinha a ilusão de casar-se. Por algum tempo andou visitando bairros de lata todos os dias, numa frenética obra piedosa que lhe provocou uma bronquite crónica e não trouxe nenhuma paz à sua alma atormentada. Esteban quis que viajasse, que comprasse roupa e se divertisse pela primeira vez na sua melancólica existência, mas ela tinha o hábito da austeridade e passava demasiado tempo fechada em casa. Tinha medo de tudo. O casamento do irmão consumia-a na incerteza, porque pensava que isso ia ser mais um motivo de afastamento para Esteban, que era o seu único sustento. Tinha medo de terminar os seus dias trabalhando nalgum asilo para solteironas de boas famílias, por isso sentiu-se muito feliz ao descobrir que Clara era incompetente para todas as coisas da vida doméstica e que, sempre que tinha de enfrentar uma decisão, adoptava um ar distraído e vago. «É um pouco idiota», concluiu Férula encantada. Era evidente que Clara seria incapaz de administrar o casarão que o seu irmão estava a construir e que necessitaria de muita ajuda. Com maneiras subtis procurava fazer saber a Esteban que a sua futura mulher era uma inútil e que ela, com o seu espírito de sacrifício tão amplamente demonstrado, podia ajudá-la e estava disposta a fazê-lo. Esteban não seguia a conversa quando se entrava por esse caminho. à medida que se aproximava a data do matrimónio e se via na necessidade de decidir do seu destino, Férula começou a desesperar. Convencida de que não ia conseguir nada com o irmão, procurou a oportunidade de falar a sós com Clara e encontrou-a um sábado às cinco da tarde quando a viu a passear na rua. Convidou-a a tomar chá no Hotel Francês. As duas mulheres sentaram-se rodeadas de pastelinhos com creme e porcelana da Baviera, enquanto ao fundo do salão uma orquestra de senhoras interpretava um melancólico quarteto de cordas. Férula observava disfarçadamente a sua futura cunhada, que parecia de quinze anos e ainda tinha a voz desafinada, produto dos anos de silêncio, sem saber como abordar o tema. Depois de uma pausa enorme em que comeram uma bandeja de biscoitos e beberam duas chávenas de chá de jasmim cada uma, Clara ajeitou uma mecha do cabelo que lha cala sobre os olhos, sorriu e deu uma palmadinha carinhosa na mão de Férula: - Não te preocupes. Vais viver connosco e seremos as duas como irmãs - disse a rapariga. Férula sobressaltou-se, perguntando a si própria se seriam certos os boatos sobre a habilidade de Clara para ler o pensamento dos outros. A sua primeira reacção foi de orgulho e teria recusado a oferta apenas pela beleza do gesto, mas Clara não lhe deu tempo. Inclinou-se e beijou-a na face com tanta candura que Férula perdeu o controlo e rompeu a chorar. Há muito tempo que não derramava uma lágrima e comprovou assombrada quanta falta lhe fazia um gesto de ternura. Não se lembrava da última vez que alguém lhe tinha tocado espontaneamente. Chorou longo tempo, libertando-se de muitas tristezas e solidões passadas, da mão de Clara que a ajudava a assoar-se e, entre soluço e soluço, lhe dava mais pedaços de pastel e sorvos de chá. Ficaram chorando e falando até às oito horas da noite e, nessa tarde, no Hotel Francês, selaram um pacto de amizade que durou muitos anos. Logo que terminou o luto por morte de Dona Ester e a grande casa da esquina ficou pronta, Esteban Trueba e Clara del Valle casaram-se numa cerimónia discreta. Esteban ofereceu a sua noiva um adereço de brilhantes, que ela achou muito bonito e que guardou numa caixa de sapatos, esquecendo em seguida onde o tinha posto. Foram de viagem a Itália e, a dois dias de embarcarem, Esteban sentia-se apaixonado como um adolescente, apesar dos balanços do barco terem dado a Clara intermináveis enjoos e da clausura lhe produzir asma. Sentado a seu lado no estreito camarote, pondo-lhe panos molhados na testa e segurando-a quando vomitava, sentia-se profundamente feliz e desejava-a com uma intensidade injustificada, tomando em consideração o seu lamentável estado. Ao quarto dia ela acordou melhor e saíram para a coberta para ver o mar. Ao vê-la com o nariz corado pelo vento e rindo-se por qualquer pretexto, Esteban jurou a si próprio que mais cedo ou mais tarde ela acabaria por amá-lo tal como ele necessitava de ser amado, ainda que para conseguir isso tivesse de empregar os recursos mais extremos. Dava-se conta que Clara não lhe pertencia e que, se ela continuava habitando um mundo de aparições, de mesas pé-de-galo que se mexem sozinhas e de baralhos que vêem o futuro, o mais provável era que não chegasse a pertencerlhe nunca. A despreocupada e impudica sensualidade de Clara também não lhe chegava. Desejava muito mais que o seu corpo, queria apoderar-se dessa matéria imprecisa e luminosa que havia no seu interior e que lhe escapava ainda nos momentos em que ela parecia morrer de prazer. Sentia que as suas mãos eram muito pesadas, os seus pés muito grandes, a sua voz muito dura, a barba muito áspera, o seu costume de violações e de prostitutas muito arreigado, mas, mesmo que tivesse de virar-se do avesso como uma luva, estava disposto a seduzi-la. Regressaram da lua-de-mel três meses depois. Férula esperava-os com a casa nova, que ainda cheirava a pintura e cimento fresco, cheia de flores e travessas com frutos, tal como Esteban lhe tinha ordenado. Ao cruzar o umbral pela primeira vez, Esteban levantou a mulher nos braços. A irmã ficou surpreendida por não sentir ciúmes e viu que Esteban parecia ter rejuvenescido. - Fez-te muito bem o casamento - disse. Levou Clara a dar uma volta pela casa. Ela passeava os olhos, achava tudo muito bonito, com a mesma cortesia com que tinha celebrado um pôr do Sol no alto mar, a Praça de São Marcos ou o adereço de brilhantes. à porta do quarto destinado a ela, Esteban pediu que fechasse os olhos e levou-a pela mão até ao centro. - Já os podes abrir - disse-lhe encantado. Clara olhou à volta. Era uma grande divisão com as paredes forradas de seda azul, móveis ingleses, grandes janelas com balcões abertos sobre o jardim e uma cama de dossel e cortinas de gaze que parecia um veleiro navegando na água mansa da seda azul. - Muito bonito - disse Clara. Então Esteban indicou-lhe o lugar onde estava parada. Era a maravilhosa surpresa que tinha preparado para ela. Clara baixou os olhos e deu um grito pavoroso; estava de pé sobre o lombo negro de Barrabás, que jazia aberto, patas para o lado, transformado em almofada, com a cabeça intacta e dois olhos de vidro olhando-a com a expressão de desamparo própria da taxidermia. Seu marido conseguiu segurá-la antes que caísse desmaiada no chão. - Esteban, eu disse-te que ela não ia gostar! – disse Férula. A pele curtida de Barrabás foi rapidamente tirada do quarto e mandada para um canto da cave, juntamente com os livros mágicos dos baús encantados do tio Marcos e outros tesouros, onde ficou livre das traças e do abandono com uma tenacidade digna de melhor causa, até que outras gerações a recuperaram. Depressa se tornou evidente que Clara estava grávida. O carinho que Férula sentia pela cunhada transformou-se em paixão por cuidar dela, uma dedicação em servi-la e uma tolerância ilimitada para resistir às suas distracções e excentricidades. Para Férula, que tinha dedicado a sua vida a cuidar de uma anciã que ia apodrecendo sem remissão, cuidar de Clara foi como entrar na glória. Banhava-a em água perfumada com alfavaca e jasmim, esfregava-a com uma esponja, ensaboava-a, friccionava-a com água-de-colónia, punha-lhe pó de talco com um hissope de penas de cisne e penteava-lhe o cabelo até o deixar brilhante e dócil como uma planta do mar, tal como antes tinha feito a Ama. Muito antes de se acalmar a sua impaciência de marido recente, Esteban Trueba teve de regressar a Las Tres Marias, onde não punha os pés fazia mais de um ano e que, apesar dos esmeros de Pedro Segundo Garcia, reclamava a presença do patrão. A propriedade que antes parecia um paraíso e era todo o seu orgulho, agora parecia-lhe fastidiosa. Olhava as vacas inexpressivas ruminando nos pastos, a lenta tarefa dos camponeses repetindo os mesmos gestos todos os dias ao longo da vida, o imutável contorno da cordilheira nevada e a frágil coluna de fumo do vulcão, e sentia-se como um preso. Enquanto ele esteve no campo, a vida na grande casa da esquina mudava para se acomodar a uma suave rotina sem homens. Férula era a primeira a despertar, porque lhe tinha ficado o hábito de madrugar desde a época em que velava junto da mãe enferma, mas deixava a sua cunhada dormir até tarde. A meio da manhã, levava-lhe pessoalmente o pequeno almoço à cama, abria as cortinas de seda azul para que entrasse o sol pelos vidros, enchia a banheira de porcelana francesa pintada com nenúfares, dando tempo a Clara para sacudir a modorra saudando os espíritos presentes, puxar a bandeja e molhar as torradas no chocolate espesso. Tirava-a da cama acariciando-a com cuidados de mãe e dizendo-lhe as noticias agradáveis do jornal, que cada dia eram menos, por isso tinha de preencher as lacunas com histórias sobre os vizinhos, pormenores domésticos e anedotas inventadas que Clara achava muito bonitas e cinco minutos depois já não recordava, de modo que era possível voltar a contar-lhe a mesma várias vezes por dia, e ela divertia-se sempre como se fosse a primeira vez. Férula levava-a a passear para que apanhasse luz, faz bem à criança; a fazer compras, para que quando nasça não lhe falte nada e tenha a roupa mais fina do mundo; a almoçar no Clube de Golfe, para que todos vejam como te puseste bonita desde que te casaste com o meu irmão; visitar os teus pais, para que não julguem que os esqueceste; ao teatro, para que não passes todo o dia fechada em casa. Clara deixava-se conduzir com uma doçura que não era imbecilidade, mas distracção, e gastava toda a sua capacidade de concentração em inúteis tentativas de comunicar telepaticamente com Esteban, que não recebia as mensagens, e em aproveitar a sua própria clarividência. Pela primeira vez desde que podia recordar, Férula sentia-se feliz. Estava mais perto de Clara do que alguma vez tinha estado de alguém, mesmo da mãe. Uma pessoa menos original que Clara teria acabado por aborrecer-se com os mimos excessivos e a constante preocupação da cunhada, ou teria sucumbido ao seu caracter dominante e meticuloso. Mas Clara vivia noutro mundo. Férula detestava o momento em que o irmão regressava do campo e a sua presença enchia toda a casa, rompendo a harmonia que se estabelecia na sua ausência. Com ele em casa, ela devia pôr-se na sombra e ser mais prudente na forma de se dirigir aos criados, tanto como nas atenções que tinha para com Clara. Todas as noites, no momento em que os esposos se retiravam para os seus quartos, sentia-se invadida por um ódio desconhecido, que não podia explicar e que lhe enchia a alma de funestos sentimentos. Para se distrair retomava o vicio de rezar o terço nos asilos e de confessar-se ao padre António. - Ave-Maria puríssima. - Concebida sem pecado. - Estou a ouvir-te, minha filha. - Padre, não sei como começar. Creio que é pecado o que fiz... - Da carne, minha filha? - Ai! A carne está seca, padre, mas o espírito não. Atormenta-me o demónio. - A misericórdia de Deus é infinita. - O padre não conhece os pensamentos que podem existir na mente de uma mulher sozinha, uma virgem que não conheceu homem, não por falta de oportunidades, mas porque Deus mandou uma longa doença a minha mãe e tive de cuidar dela. - Esse sacrifício está registado no céu, minha filha. - Mesmo com pecado de pensamento, padre? - Bom, depende do pensamento... - De noite não posso dormir, sufoco. Para me acalmar levanto-me e caminho pelo jardim, vagueio pela casa, vou ao quarto de minha cunhada, encosto o ouvido à porta, às vezes entro em pontas dos pés para a ver quando dorme, parece um anjo, tenho a tentação de meter-me na sua cama para sentir o calor da sua pele e da sua respiração. - Reza, minha filha. A oração ajuda. - Espere, não lhe disse tudo. Tenho vergonha. - Não deves envergonhar-te de mim, porque não sou mais do que um instrumento de Deus. - Quando o meu irmão vem do campo é muito pior, padre. De nada me serve a oração, não posso dormir, transpiro, tremo, por fim levanto-me e atravesso toda a casa às escuras, deslizando devagarinho com muito cuidado para o soalho não ranger. Oiço-os através da porta do quarto e uma vez pude até vê-los, porque a porta tinha ficado entreaberta. Não lhe posso contar o que vi, padre, mas deve ser um pecado terrível. Não é culpa de Clara, ela é inocente como uma criança. É o meu irmão que a leva a isso. Ele será condenado, por certo. - Só Deus pode julgar e condenar, minha filha. Que faziam eles? Então Férula podia passar uma boa meia hora a contar os pormenores. Era uma narradora virtuosa, sabia fazer as pausas, medir a entoação, explicar sem gestos, pintando um quadro tão vivo que o ouvinte parecia estar mesmo a vê-lo; era incrível como podia perceber da porta entreaberta a qualidade dos estremecimentos, a abundância dos orgasmos, as palavras murmuradas ao ouvido, os cheiros mais secretos - um prodígio, na verdade. Liberta daqueles tumultuosos estados de ânimo, regressava a casa com a sua máscara de ídolo, impassível e severa, a dar ordens, contando os talheres, determinando a comida, fechando à chave, exigindo ponha-me isto aqui, se o apanham, mudem as flores dos jarrões, mudavam-nas, lavem os vidros, façam calar esses pássaros do diabo, que a barulheira não deixa dormir a senhora Clara e com tanto cacarejo a criança vai espantar-se e é capaz de nascer com asas. Nada escapava aos seus olhos vigilantes e estava sempre em actividade, em contraste com Clara, que achava tudo muito bonito e tanto lhe fazia comer trufas recheadas ou sopa de sobras, dormir em colchão de penas ou sentada numa cadeira, banhar-se em águas perfumadas ou não tomar banho. à medida que avançava o estado de gravidez, parecia ir-se desligando irremissivelmente da realidade, voltando-se para o interior de si própria, num diálogo secreto e constante com a criança. Esteban queria um filho que tivesse o seu nome e passasse à sua descendência o apelido dos Trueba. - É uma menina e chama-se Blanca - disse Clara desde o dia em que anunciou a sua gravidez. E assim foi. O doutor Cuevas, de quem Clara tinha perdido finalmente o medo, calculava que o parto devia dar-se em meados de Outubro, mas em princípios de Novembro ela continuava bamboleando uma pança enorme, em estado semi-sonâmbulo, cada vez mais distraída e cansada, asmática, indiferente a tudo o que a rodeava, inclusivamente a seu marido, a quem por vezes nem sequer reconhecia e lhe perguntava «que quer você?» quando o via a seu lado. Logo que o médico se descartou de qualquer possível erro nas suas matemáticas e foi evidente que Clara não tinha nenhuma intenção de parir por via natural, tratou de abrir a barriga à mãe e tirar Blanca, que sucedeu ser uma menina mais peluda e feia do que era normal. Esteban sentiu um calafrio quando a viu, convencido de que tinha sido enganado pelo destino e, em vez do Trueba legítimo que prometera a sua mãe no leito de morte, tinha engendrado um monstro e, para cúmulo, do sexo feminino. Revistou a menina pessoalmente e comprovou que ela tinha todas as partes no sítio correspondente, pelo menos aquelas que eram visíveis ao olho humano. O doutor Cuevas consolou-o com a explicação de que o aspecto repugnante da criança se devia ao facto de ter estado mais tempo que o normal dentro da mãe, ao sofrimento da cesariana e à sua constituição pequena, delgada, morena e um pouco peluda. Clara, pelo contrário, estava encantada com a filha. Pareceu despertar de um longo sono e descobrir a alegria de estar viva. Pegou a menina nos braços e não a largou mais, andava com ela presa ao peito, dando-lhe de mamar a todo o momento, sem horário fixo e sem contemplações com as boas maneiras ou o pudor, como uma indígena. Não quis enfaixá-la, cortar-lhe o cabelo, abrirlhe furos nas orelhas ou contratar-lhe uma aia para a criar, e muito menos recorrer ao leite de algum laboratório, como faziam todas as senhoras que podiam pagar esse luxo. Nem aceitou a receita da Ama de dar-lhe leite de vaca diluído em água de arroz, porque concluiu que, se a natureza tivesse querido que os humanos se criassem assim, teria feito que os seios humanos segregassem esse tipo de produto. Clara falava à menina todo o tempo, sem usar meias palavras nem diminutivos, em espanhol correcto, como se dialogasse com uma adulta, da mesma maneira pausada e razoável com que falava aos animais e às plantas, convencida de que, se isso tinha dado resultado com a flora e a fauna, não havia razão nenhuma para não ser indicado também para a menina. A combinação de leite materno e conversação teve a virtude de transformar Blanca numa menina saudável e quase formosa, que não se parecia em nada com o tatu que era quando nasceu. Poucas semanas depois do nascimento de Blanca, Esteban Trueba pôde comprovar, através das brincadeiras no veleiro de água mansa da seda azul, que a esposa não tinha perdido com a maternidade o encanto ou a boa disposição para fazer amor, mas bem pelo contrário. Por seu lado, Férula, demasiado preocupada com a criação da menina, não tinha tempo para ir rezar aos asilos, para confessar-se ao padre António e muito menos para espreitar pela porta entreaberta. Capítulo IV O Tempo dos Espíritos Na idade em que a maioria das crianças anda com fraldas e de gatas, balbuciando incoerências e escorrendo baba, Blanca parecia uma anã, caminhava aos tropeções, mas nas duas pernas, falava correctamente e comia sozinha, devido ao sistema de sua mãe a tratar como pessoa crescida. Tinha todos os dentes e começava a abrir os armários para desarrumar o conteúdo, quando a família decidiu ir passar o Verão a Las Tres Marias, que Clara só conhecia de ouvir falar. Nesse período da vida de Blanca, a curiosidade era mais forte que o instinto de sobrevivência e Férula passava apuros, correndo atrás dela para evitar que se atirasse do segundo andar, se metesse no forno ou engolisse o sabão. A ideia de ir com a menina para o campo parecia-lhe perigosa, estafante e inútil, já que Esteban podia arranjar-se sozinho em Las Tres Marias, enquanto elas desfrutavam de uma existência civilizada na capital. Mas Clara estava entusiasmada. O campo parecia-lhe uma ideia romântica, porque nunca tinha estado dentro de um estábulo, como dizia Férula. Os preparativos da viagem ocuparam toda a família durante mais de duas semanas e a casa encheu-se de baús, cestos e malas. Alugaram uma carruagem especial no comboio para se deslocarem com a incrível bagagem e os criados que Férula considerou necessário levar, além das gaiolas dos pássaros, que Clara não quis abandonar, e as caixas com os brinquedos de Blanca, cheias de arlequins mecânicos, figurinhas de loiça, animais de trapo, bailarinas de corda com cabelos de gente e articulações humanas, que viajavam com os seus próprios vestidos, coches e baixelas. Ao ver aquela multidão desconcertada e nervosa e aquela confusão, Esteban sentiu-se derrotado pela primeira vez na vida, especialmente quando descobriu entre a bagagem um Santo António de tamanho natural, com olhos estrábicos e sandálias de couro lavrado. Olhava o caos que o rodeava, arrependido da decisão de viajar com a mulher e a filha, perguntando a si próprio como era possível que ele só precisasse de duas malas para ir pelo mundo fora e que elas, em comparação, levassem aquele carregamento de trastes e aquela procissão de criados que nada tinham a ver com o propósito da viagem. Em San Lucas tomaram três carros que os conduziram a Las Tres Marias envoltos numa nuvem de pó, como ciganos. No pátio do fundo esperavam para lhes dar as boas-vindas todos os caseiros com Pedro Segundo Garcia, o administrador, à cabeça. Ao ver aquele circo ambulante, ficaram atónitos. Sob as ordens de Férula, começaram a descarregar os carros e a meter as coisas em casa. Ninguém prestou atenção a um menino que tinha aproximadamente a mesma idade de Blanca, nu, ranhoso, com a barriga inchada pelos parasitas, de formosos olhos negros com expressão de ancião. Era o filho do administrador, chamava-se, para o diferenciar do pai e do avô, Pedro Tercero Garcia. Na confusão de instalar-se, conhecer a casa, ver a horta, saudar toda a gente, armar o altar de Santo António e espantar as galinhas das camas e os ratos dos roupeiros, Blanca tirou a roupa e saiu nua com Pedro Tercero. Brincaram por entre os embrulhos, meteram-se por baixo dos móveis, molharam-se com beijos babosos, mastigaram o mesmo pão, sorveram os mesmos moncos, bezuntaram-se com a mesma caca, até que, por fim, adormeceram abraçados debaixo da mesa da sala de jantar. Ali os encontrou Clara às dez da noite. Tinha-os procurado durante horas com tochas, os caseiros em grupos tinham percorrido a margem do rio, os celeiros, os prados e os estábulos, Férula tinha pedido de joelhos a Santo António, Esteban estava esgotado de os chamar e a própria Clara invocara inutilmente os seus dotes de vidente. Quando os encontrou, o menino estava de costas no chão e Blanca deitava-se com a cabeça apoiada no ventre pançudo do seu novo amigo. Nessa mesma posição seriam surpreendidos muitos anos depois, para desdita de ambos e não lhes chegaria a vida para o pagar. Desde o primeiro dia, Clara compreendeu que havia um lugar para ela em Las Tres Marias e, tal como apontou nos seus cadernos de anotar a vida, sentiu que por fim tinha encontrado a sua missão no mundo. Não a impressionaram as casas de tijolo, a escola e a abundância de comida, porque a sua capacidade para ver o invisível detectou o receio, o medo e o rancor dos trabalhadores, e o imperceptível rumor que se acalmava quando virava a cara, que lhe permitiram adivinhar algumas coisas sobre o carácter e o passado de seu marido. O patrão tinha mudado, apesar de tudo. Todos puderam apreciar que deixara de ir ao Farolito Rojo, acabaram-se as suas tardes de pândega, de luta de galos, de apostas, as violentas iras e, sobretudo, o mau hábito de tombar raparigas nos trigais. Atribuíram-no a Clara. Por seu lado, ela também mudou. Abandonou da noite para a manhã a sua languidez, deixou de achar tudo muito bonito e pareceu curada do vício de falar com os seres invisíveis e mover os móveis com recursos sobrenaturais. Levantava-se ao amanhecer com o marido, partilhavam o pequeno almoço já vestidos, ele ia vigiar os trabalhos e tarefas do campo, enquanto Férula se encarregava da casa, dos criados da capital que não se acostumavam às incomodidades e às moscas do campo, e de Blanca. Clara dividia o tempo entre a sala de costura, a cantina e a escola, onde fez o seu quartel-general para aplicar remédios contra a sarna e parafina contra os piolhos, desentranhar os mistérios da cartilha, ensinar as crianças a cantar «tenho uma vaca leiteira, tenho uma vaca malhada», e ensinar as mulheres a ferver o leite, curar a diarreia e branquear a roupa. Ao entardecer, antes que os homens regressassem do campo, Férula reunia as camponesas e as crianças para rezar o terço. Acudiam por simpatia, mais por isso que por fé, e davam à solteirona a oportunidade de recordar os bons tempos dos seus bairros de lata. Clara esperava que a cunhada terminasse as místicas ladainhas de pais-nossos e ave-marias e aproveitava a reunião para repetir as instruções que tinha ouvido à mãe quando se sentava nas filas do Congresso na sua presença. As mulheres escutavam-na risonhas e envergonhadas, pela mesma razão por que rezavam com Férula: para não desgostar a patroa. Mas aquelas frases inflamadas pareciam-lhes contos de loucos. «Nunca se viu que um homem não possa bater na sua própria mulher, se não lhe chega é porque não a quer ou porque não é um homem a sério; onde se viu que aquilo que ganha um homem ou o que produz a terra ou põem as galinhas seja dos dois, se quem manda é ele? onde se viu que uma mulher possa fazer as mesmas coisas que um homem, se ela nasceu com mamas e sem colhões? pois é, dona Clarita», diziam. Clara desesperava-se. Elas acotovelavam-se e sorriam tímidas, com as bocas desdentadas e os olhos cheios de rugas, curtidas pelo sol e pela vida má, sabendo de antemão que, se tivessem a peregrina ideia de pôr em prática os conselhos da patroa, os maridos davam-lhes uma surra. E bem merecida, certamente, como a própria Férula sustentava. Em pouco tempo Esteban teve conhecimento da segunda parte das reuniões para rezar e entrou em cólera. Era a primeira vez que se chateava com Clara e a primeira que ela o via num dos seus famosos ataques de raiva. Esteban gritava como um alienado, passeando pela sala com grandes passadas e dando murros nos móveis, argumentando que, se Clara pensava seguir os passos de sua mãe, ia encontrar um macho bem assente que lhe baixaria as cuecas e lhe daria uma carga de açoites para lhe tirar as malditas ganas de andar arengando às pessoas, que lhe proibia terminantemente as reuniões para rezar ou para qualquer outro fim e que ele não era nenhum boneco de palha a quem a mulher pudesse meter a ridículo. Clara deixou-o gritar e dar pancadas nos móveis até que se cansou e, depois, distraída como sempre estava, perguntou-lhe se sabia mexer as orelhas. As férias alargaram-se e as reuniões na escola continuaram. Terminou o Verão e o Outono cobriu o campo de fogo e ouro, mudando a paisagem. Começaram os primeiros dias frios, as chuvas e a lama, sem que Clara desse sinais de querer regressar à capital, apesar da pressão contida de Férula, que detestava o campo. No Verão, tinha-se queixado das tardes de calor, espantando moscas, da terra do pátio, que empoeirava a casa como se vivessem no poço de uma mina, da água suja da banheira, onde os sais perfumados se transformavam em sopa de chineses, das baratas voado as, que se metiam entre os lençóis, dos caminhos dos ratos e das formigas, das aranhas que de manhã esperneavam no copo de água sobre a mesa de cabeceira, das galinhas insolentes, que punham ovos nos sapatos e cagavam na roupa branca do armário. Quando mudou o clima, teve novas calamidades para lamentar: o lodaçal do pátio, os dias mais curtos, às cinco estava escuro e não havia nada mais para fazer que não fosse enfrentar a longa noite solitária, o vento e o frio, que ela combatia com cataplasmas de eucalipto, sem poder evitar que se contagiassem uns aos outros numa cadeia sem fim. Estava farta de lutar contra os elementos sem mais distracção do que ver crescer Blanca, que parecia um antropófago, como dizia, ao brincar com esse garoto sujo, Pedro Tercero, que era como se a menina não tivesse alguém da sua classe com quem se misturar, estava a adquirir maus modos, andava com as bochechas lambuzadas, e crostas secas nos joelhos, «olhem como fala, parece um índio, estou cansada de lhe tirar piolhos da cabeça e pôr-lhe azul de mitilene na sarna». Apesar das queixas, conservava a rígida dignidade, o rosto inalterável, a blusa engomada e o molho de chaves pendurado à cintura, nunca suava, não se cansava e mantinha sempre o seu ténue aroma de lavanda e limão. Ninguém pensava que alguma coisa pudesse alterar o seu autodomínio, até um dia em que sentiu comichão nas costas. Era uma coceira tão forte que não pôde evitar coçar-se com dissimulação, mas nada podia aliviá-la. Por fim foi tomar banho e tirou o espartilho, que mesmo nos dias de maior trabalho trazia vestido. Ao soltar as fitas, caiu no chão um ratinho aturdido que tinha ali estado toda a manhã procurando inutilmente furar até à saída, entre as barbas duras da faixa e a carne oprimida da dona. Férula teve a primeira crise de nervos da sua vida. Aos gritos acudiram todos e encontraram-na metida na banheira, lívida de terror e ainda meio nua, com alaridos de maníaca, e indicando com um dedo trémulo o pequeno roedor, que se punha trabalhosamente em pé e procurava avançar até um lugar seguro. Esteban disse que era a menopausa e não havia que fazer caso. Nem fizeram caso quando teve o segundo ataque. Era o aniversário de Esteban. Amanheceu um dia de sol, e havia muita agitação na casa porque pela primeira vez iam dar uma festa em Las Tres Marias, desde os dias esquecidos em que Dona Ester era uma rapariguinha. Convidaram vários parentes e amigos, que fizeram a viagem de comboio desde a capital, e os proprietários da zona, sem esquecer os notáveis da aldeia. Com uma semana de antecedência prepararam o banquete: meia rês assada no pátio, pastel de rins, ensopado de galinha, guisado de milho, torta de manjar branco, lúcumas (Fruto do lúcumo, árvore sapotácea da América do Sul. (N.T.)), e os melhores vinhos da colheita. Ao meio-dia começaram a chegar os convidados em carros ou a cavalo, e a grande casa de adobe encheu-se de conversas e risos. Férula distraiuse um momento para correr para a casa de banho, uma dessas imensas casas de banho onde a latrina ficava no meio da divisão, rodeada por um deserto de cerâmicas brancas. Estava instalada naquele assento solitário como um trono, quando se abriu a porta e entrou um dos convidados, nada menos que o regedor da aldeia, abrindo a braguilha e um pouco embriagado com o aperitivo. Ao ver a senhora, ficou paralisado de confusão e surpresa e, quando pôde reagir, a única coisa que lhe ocorreu foi avançar com um sorriso torcido, atravessar toda a divisão, estender a mão e saudá-la com uma vénia: - Zorobabel Blanco Jamasmié, às suas prezadas ordens - apresentou-se. «Santo Deus! Ninguém pode viver entre gente tão rústica. Se querem fiquem vocês neste purgatório de incivilizados, que eu volto para a cidade, quero viver como cristã, como sempre vivi», exclamou Férula quando conseguiu falar do assunto sem pôr-se a chorar. Mas não foi. Não queria separar-se de Clara, tinha chegado até a adorar o ar que ela exalava e, mesmo que já não tivesse ocasião de dar-lhe banho e dormir com ela, procurava demonstrar-lhe a sua ternura com mil pequenos pormenores aos quais dedicava a existência. Aquela mulher severa e tão pouco complacente consigo mesma e com os demais podia ser doce e risonha com Clara e, por vezes, por extensão, também com Blanca. Só com ela se dava ao luxo de ceder ao seu transbordante desejo de servir e ser amada, só com ela podia manifestar, embora dissimuladamente, os mais secretos e delicados desejos da sua alma. Ao longo de tantos anos de solidão e tristeza, tinha ido decantando as emoções e limpando os sentimentos, até os reduzir a umas quantas terríveis e magníficas paixões, que a ocupavam por completo. Não tinha capacidade para as pequenas perturbações, para os rancores mesquinhos, as invejas dissimuladas, as obras de caridade, os carinhos mornos, a cortesia amável ou as considerações citadinas. Era um desses seres nascidos para a grandeza de um só amor, para o ódio exagerado, para a vingança apocalíptica e para o heroísmo mais sublime, mas não conseguiu realizar o seu destino à medida da sua romântica vocação, e esse destino decorreu chato e cinzento, entre as paredes de um quarto de enferma, em míseros asilos, em tortuosas confissões, onde essa mulher grande, opulenta, de sangue ardente, feita para a maternidade, para a abundância, a acção e o ardor, se foi consumindo. Nessa época tinha à volta de quarenta e cinco anos, a sua esplêndida raça e os seus afastados antepassados mouriscos mantinham-na polida, com o cabelo todo negro e sedoso, com uma única mecha branca na frente, o corpo forte e delgado e o andar resoluto de gente sã, contudo o deserto da sua vida dava-lhe um aspecto muito maior. Tenho um retrato de Férula tirado nesses anos, durante um aniversário de Blanca. É uma velha fotografia cor de sépia, descolorida pelo tempo, onde todavia ainda é possível vê-la com clareza. Era uma régia matrona, mas tinha no rosto um ricto amargo que lhe denunciava a tragédia interior. Provavelmente esses anos junto de Clara foram os únicos felizes para ela, porque só com Clara pôde ter intimidade. Ela foi a depositária das suas mais subtis emoções, e a ela pôde dedicar a sua enorme capacidade de sacrifício e veneração. Uma vez atreveu-se a dizê-lo, e Clara escreveu no seu caderno de anotar a vida que Férula a amava muito mais do que ela merecia, ou podia retribuir. Por esse amor sem medida, Férula não quis ir-se embora de Las Tres Marias nem sequer quando caiu a praga das formigas, que começou com um ronrom nos prados, uma sombra escura que deslizava com rapidez comendo tudo, as maçarocas, os trigais, a luzerna e a maravilha. Regavam-nas com gasolina e largavam-lhes fogo, mas reapareciam com novos brios. Pintavam com cal viva os troncos das árvores, mas elas subiam sem parar e não respeitavam pêras, maçãs, nem laranjas, metiam-se na horta e acabavam com os melões, entravam na leitaria e o leite de manhã estava azedo e devoravam os frangos vivos, deixando um desperdício de penas e uns ossinhos de lástima. Faziam caminhos dentro de casa, entravam pelas canalizações, apoderavam-se da despensa, tudo o que se cozinhava tinha de se comer logo porque, se ficava uns minutos sobre a mesa, chegavam em procissão e devoravam-no. Pedro Segundo Garcia combateu-as com água e fogo e enterrou esponjas empapadas em mel de abelhas, para que se juntassem atraídas pelo doce e pudesse matá-las sem risco, mas foi tudo inútil. Esteban Trueba foi à aldeia e regressou carregado de pesticidas de todas as marcas conhecidas, em pó, em líquido e em pílulas, e deitou tanto por todos os lados que não se podiam comer os legumes porque davam cólicas de barriga. Mas as formigas continuavam a aparecer e a multiplicarem-se, cada dia mais insolentes e decididas. Esteban foi outra vez à aldeia e mandou um telegrama para a capital. Três dias depois, desembarcou na estação Mister Brown, um gringo anão, munido de uma mala misteriosa, que Esteban apresentou como técnico agrícola especialista em pesticidas. Depois de se refrescar com um jarro de vinho com frutas, abriu a mala em cima da mesa. Extraiu dela um arsenal de instrumentos nunca vistos, começou por pegar numa formiga e observá-la detidamente com um microscópio. - Porque olha tanto para ela, Mister, se são todas iguais? - disse Pedro Segundo Garcia. O gringo não lhe respondeu. Quando acabou de identificar a raça, o estilo de vida, a localização dos formigueiros, os hábitos e até as suas mais funestas intenções, tinha passado uma semana e as formigas metiam-se nas camas das crianças, tinham comido as reservas de alimento para o Inverno e começavam a atacar os cavalos e as vacas. Então Mister Brown explicou que tinham de as fumigar com um produto da sua invenção que tornava os machos estéreis, com o qual deixavam de se multiplicar, e logo a seguir deviam borrifá-las com outro veneno, também da sua invenção, que provocava uma enfermidade mortal nas fêmeas, e isso, assegurou ele, acabaria com o problema. - Em quanto tempo? - perguntou Esteban Trueba, que da impaciência estava passando à fúria. - Um mês - disse Mister Brown. - Para nessa altura já terem comido, até os homens, Mister?! - disse Pedro Segundo Garcia. - Se mo permite, patrão, vou chamar o meu pai. Há três semanas que me vem dizendo que conhece um remédio para a praga. Eu creio que são coisas de velho, mas não perdemos nada em tirar a prova. Chamaram o velho Pedro Garcia, que chegou arrastando os pés, tão escuro, mirrado e desdentado que Esteban se sobressaltou ao verificar a passagem do tempo. O velho escutou com o chapéu na mão, olhando o chão e mastigando o ar com as gengivas nuas. Depois pediu um lenço branco que Férula lhe trouxe do armário de Esteban e saiu de casa, cruzou o pátio e foi direito à horta, seguido por todos os habitantes da casa e pelo anão estrangeiro, que sorria de desprezo, estes bárbaros, oh God! O ancião baixou-se com dificuldade e começou a apanhar formigas. Quando tinha um punhado, pô-las dentro do lenço, atou as quatro pontas e meteu o atado no chapéu. - Vou-lhes mostrar o caminho, para que se vão embora, formigas, e para que levem as outras - disse. O velho montou num cavalo e foi murmurando pelo caminho conselhos e recomendações para as formigas, orações de sabedoria e fórmulas de encantamento. Viram-no afastar-se até ao limite da propriedade. O gringo sentou-se no chão a rir como um maluco, até que Pedro Segundo Garcia o sacudiu: - Vá rir-se da sua avó, Mister, olhe que o velho é meu pai - advertiu-o. Ao entardecer Pedro Garcia regressou. Desmontou lentamente, disse ao patrão que tinha posto as formigas na estrada e foi para sua casa. Estava cansado. Na manhã seguinte viram que não havia formigas na cozinha nem na dispensa, buscaram no celeiro, no estábulo, nos galinheiros, foram aos pastos, e até ao rio, revistaram tudo e não encontraram uma só, nem para amostra. O técnico pôs-se frenético: - Ter de dizer-me como fazer isso! - gritava. - Falando-lhes, pois, Mister. Diga-lhes que se vão, que aqui estão chateando e elas entendem - explicou Pedro Garcia, o velho. Clara foi a única que considerou natural o procedimento. Férula agarrou-se a isso para dizer que se encontravam num buraco, numa região inumana, onde não funcionavam as leis de Deus nem o progresso da ciência, que qualquer dia começavam a voar vassouras, mas Esteban Trueba fê-la calar: não queria que metessem novas ideias na cabeça da mulher. Nos últimos dias Clara tinha voltado aos afazeres lunáticos, a falar com as aparições e a passar horas escrevendo nos cadernos de anotar a vida. Quando perdeu o interesse pelo escola, pela oficina de costura ou pelas reuniões feministas e voltou a dar a opinião de que tudo era muito bonito, compreenderam que estava outra vez grávida. - Por culpa tua! - gritou Férula ao irmão. - Espero bem que sim - respondeu ele. Em breve se tornou evidente que Clara não estava em condições de passar a gravidez no campo e parir na aldeia, por isso organizaram o regresso à capital. Isso consolou um pouco Férula, que sentia a gravidez de Clara como uma afronta pessoal. Viajou primeiro, com parte da bagagem e os criados, para abrir a grande casa da esquina e preparar a chegada de Clara. Esteban, dias depois, acompanhou a mulher e a filha de volta à cidade, e deixou novamente Las Tres Marias nas mãos de Pedro Segundo Garcia, que se tinha tornado o administrador, embora por isso não ganhasse mais privilégios, mas apenas mais trabalho. A viagem de Las Tres Marias até à capital acabou por esgotar as forças de Clara. Eu viaa cada vez mais pálida, asmática, olheirenta. Com o bambolear dos cavalos e depois com o do comboio, o pó do caminho e a sua natural tendência para o enjoo, ia perdendo as energias a olhos vistos e eu não podia fazer muito para ajudá-la, porque quando estava mal preferia que não lhe falassem. Ao descermos na estação tive de a segurar porque lhe fraquejavam as pernas. - Creio que vou elevar-me - disse. - Aqui não! - gritei-lhe, espantado com a ideia de que saísse voando por cima das cabeças dos passageiros que estavam na gare. Mas ela não se referia concretamente à levitação, mas sim a subir a um nível que lhe permitisse libertar-se da incomodidade, do peso da sua gravidez e da profunda fadiga que se lhe estava a meter nos ossos. Entrou noutro dos seus longos períodos de silêncio, julgo que lhe durou vários meses, durante os quais se servia da lousa de escrever, como nos tempos da mudez. Nessa ocasião não me alarmei, porque supus que recuperaria a normalidade como tinha acontecido depois do nascimento de Blanca e, por outro lado, eu tinha acabado por compreender que o silêncio era o último refúgio inviolável de minha mulher, e não uma doença mental, como pretendia o doutor Cuevas. Férula cuidava dela da mesma forma obsessiva como cuidara antes da nossa mãe, tratava-a como se fosse uma inválida, não queria deixá-la nunca sozinha e tinha-se descuidado de Blanca, que chorava todo o dia porque queria regressar a Las Tres Marias. Clara deambulava como uma sombra gorda e calada pela casa, com um desinteresse budista por tudo o que a rodeava. A mim nem sequer me olhava, passava a meu lado como seu eu fosse um móvel e quando lhe dirigia a palavra ficava na lua, como se não me ouvisse ou não me conhecesse. Não tínhamos voltado a dormir juntos. Os dias ociosos na cidade e a atmosfera irracional que se respirava punham-me os nervos em franja. Fazia por me manter ocupado, mas isso não era suficiente, estava sempre de mau humor. Sala todos os dias para vigiar os meus negócios. Nessa época comecei a especular na Bolsa do Comércio e passava horas estudando os altos e baixos dos valores internacionais, dediquei-me a investir em prata, a formar sociedades ou a fazer importações. Passava muitas horas no Clube. Comecei também a interessar-me pela política e até entrei num ginásio, onde um gigantesco treinador me obrigava a exercitar músculos que eu não suspeitava ter no corpo. Tinham-me recomendado que me dessem massagens, mas nunca gostei disso: detesto que me toquem mãos mercenárias. Mas nada daquilo me podia preencher o dia, estava incomodado e aborrecido, queria voltar para o campo; mas não me atrevia a deixar a casa, onde por todos os motivos se necessitava de um homem sensato no meio daquelas mulheres histéricas. Além disso, Clara estava a engordar demasiado. Tinha uma barriga tão descomunal que mal se podia suster no seu frágil esqueleto. Por pudor não queria que eu a visse nua, mas ela era minha mulher e eu não ia permitir que tivesse vergonha de mim. Ajudava-a a tomar banho, a vestir-se, quando Férula não se adiantava, e sentia uma pena infinita por ela, tão pequena e fraca, com aquela pança monstruosa, aproximando-se perigosamente o momento do parto. Muitas vezes, preocupei-me pensando que podia morrer ao dar à luz e fechava-me com o doutor Cuevas a discutir a melhor maneira de a ajudar. Tínhamos concordado que, se as coisas não se apresentassem bem, era melhor fazer-lhe outra cesariana, mas eu não queria que a levassem para uma clínica e ele negava-se a fazer-lhe outra operação como a primeira, na sala de jantar da casa. Dizia que não havia comodidades, mas nesses tempos as clínicas eram um foco de infecções e, lá, eram mais os que morriam do que os que se salvavam. Um dia, faltando pouco para a data do parto, Clara desceu sem aviso prévio do seu refúgio bramânico e voltou a falar. Quis uma chávena de chocolate e pediu-me que a levasse a passear. O coração deu-me uma volta. Toda a casa se encheu de alegria, abrimos champanhe, mandei pôr flores frescas em todas as jarras, encomendei-lhe camélias, as suas flores preferidas e atapetei com elas o seu quarto, até que ela começou a ter asma e tivemos de as tirar dali rapidamente. Corri a comprar-lhe um broche de diamantes na rua dos joalheiros judeus. Clara agradeceu-me efusivamente, achou-o muito bonito, mas nunca lho vi posto. Suponho que terá ido parar a algum lugar impensado onde o pôs e logo o esqueceu, como quase todas as jóias que lhe comprei ao longo da nossa vida em comum. Chamei o doutor Cuevas, que apareceu com o pretexto de tomar chá, mas na realidade vinha examinar Clara. Levou-a ao quarto e depois disse-nos, a Férula e a mim, que, se a sua crise mental parecia curada, tinha de se preparar para um parto difícil, porque a criança era muito grande. Nesse momento, Clara entrou na sala e deve ter ouvido a última frase. - Tudo correrá bem, não se preocupem - disse. - Espero que desta vez seja um homem, para ter o meu nome - gracejei. - Não é um, são dois - respondeu Clara. - Os gémeos vão-se chamar Jaime e Nicolau respectivamente - acrescentou. Aquilo foi demasiado para mim. Suponho que estoirei pela pressão acumulada nos últimos meses. Fiquei furioso, disse que eram nomes de comerciantes estrangeiros, que ninguém se chamava assim na minha família, nem na sua, que pelo menos um devia chamar-se Esteban, como eu e como meu pai, mas Clara explicou que os nomes repetidos criavam confusão nos cadernos da vida e manteve-se inflexível na sua decisão. Para a assustar, parti com um murro um jarrão de porcelana que, julgo eu, era o último vestígio dos tempos faustosos do meu bisavô, mas ela não se comoveu e o doutor Cuevas sorriu por detrás da chávena de chá, o que me indignou ainda mais. Saí batendo com a porta, e fui ao Clube. Nessa noite embebedei-me. Em parte porque precisava disso e em parte por vingança, fui ao bordel mais conhecido da cidade, que tinha um nome histórico. Quero deixar claro que não sou homem de prostitutas e que só nos períodos em que me foi dado viver sozinho por longo tempo recorri a elas. Não sei o que me passou pela cabeça nesse dia, estava picado com Clara, andava chateado, sobravam-me energias, tentei-me. Nesses anos o negócio do Cristóbal Colón era florescente, mas não tinha adquirido ainda o prestigio internacional que chegou a ter quando aparecia nas cartas de navegação das companhias inglesas e nos folhetos turísticos e o filmaram para a televisão. Entrei num salão com móveis franceses desses com pés retorcidos, onde me recebeu uma matrona nacional que imitava na perfeição o sotaque de Paris, e que começou por me dar a conhecer a lista de preços e em seguida me perguntou se eu tinha alguém em especial na ideia. Disse-lhe que a minha experiência se limitava ao Farolito Rojo e alguns miseráveis lupanares de mineiros do Norte, de maneira que qualquer mulher jovem e limpa me servia bem. - O senhor é muitô simpático, mesiú - disse ela. - Vou-lhe trazer o melhor da casa. Ao seu chamamento acudiu uma mulher enfiada num vestido de cetim preto demasiado apertado, que mal continha a exuberância da sua feminilidade. Tinha o cabelo puxado sobre uma orelha, um penteado de que eu nunca tinha gostado, e à sua passagem ficava um terrível perfume almiscarado a flutuar no ar, tão persistente como um gemido. - Tenho alegria em vê-lo, patrão - saudou, e então reconheci-a, porque a voz era a única coisa que não tinha mudado em Tránsito Soto. Levou-me pela mão a um quarto fechado como um túmulo, com as janelas cobertas de cortinas escuras, onde não penetrava um raio de luz natural desde tempos ignotos, mas que de todos os modos parecia um palácio comparado com as sórdidas instalações do Farolito Rojo. Ali, tirei pessoalmente o vestido de cetim preto a Tránsito, desarmei o seu horrendo penteado e pude ver que nesses anos tinha crescido, engordado, embelezado. - Vejo que progrediste muito - disse-lhe. - Graças aos seus cinquenta pesos, patrão. Serviram-me para começar - respondeu-me. - Agora posso devolvê-los actualizados, porque com a inflação já não valem o que valiam antes. - Prefiro que me faças um favor, Tránsito! - e ri-me. Acabei de lhe tirar os saiotes e comprovei que não existia quase nada da rapariga delgada, com os joelhos e cotovelos salientes, que trabalhava no Farolito Rojo, excepto a sua incansável disposição para a sensualidade e a sua voz de pássaro rouco. Tinha o corpo depilado e tinha friccionado a pele com limão e mel de hamamélide, como me explicou, até ficar suave e branca como a de uma criança. Tinha as unhas pintadas de vermelho e uma serpente tatuada à volta do umbigo, que podia fazer mover em círculos enquanto mantinha em perfeita imobilidade o resto do corpo. Simultaneamente ao demonstrar-me a sua habilidade para ondular a serpente, contou-me a sua vida. - Se tivesse ficado no Farolito Rojo, que teria sido de mim, patrão? Já não teria dentes, seria uma velha. Nesta profissão desgastamo-nos muito, temos de nos cuidar. É por isso que eu não ando pela rua! Nunca gostei disso, é muito perigoso. Na rua temos de ter um chulo, porque senão arrisca-se muito. Ninguém nos respeita. Mas por quê dar a um homem o que custa tanto a ganhar? Nesse sentido as mulheres são muito brutas. São filhas do rigor. Necessitam de um homem para se sentirem seguras e não se dão conta de que a única coisa que há a temer são os próprios homens. Não sabem administrar, necessitam sacrificar-se por alguém. As putas são as piores, patrão, acredite-me. Deixam a vida para trabalhar para um chulo, alegram-se quando ele lhes liga, sentem-se orgulhosas de o ver bem vestido, com dentes de ouro, com anéis e, quando ele as deixa ou vai com outra mais nova, perdoam-lhe porque «é homem». Não, patrão, eu não sou assim. Nunca estive por conta, por isso nem que fosse louca nunca me poria a sustentar fosse quem fosse. Trabalho para mim, o que ganho gasto-o como eu quero. Custou-me muito, não julgue que foi fácil, porque as donas dos prostíbulos não gostam de lidar com mulheres, preferem entender-se com os chulos. Não ajudam nenhuma de nós. Não têm consideração. - Mas parece que aqui te apreciam, Tránsito. Disseram-me que eras a melhor da casa. - E sou. Mas este negócio ia por água abaixo se não fosse eu, que trabalho que nem um burro- disse ela. - As outras já estão como esfregões, patrão. Aqui vêm só velhos, já não é como dantes. Há que modernizar isto, para atrair os funcionários públicos, que não têm nada para fazer ao meio-dia, a juventude, os estudantes. Há que ampliar as instalações, dar mais alegria ao local e limpar. Limpar a fundo! Assim a clientela teria confiança e não estaria a pensar que pode apanhar um esquentamento, não é verdade? Isto é uma porcaria. Não limpam nunca. Olhe, levante a almofada e tenho a certeza que lhe salta um percevejo. Já o disse à madame, mas não fez caso. Não tem olho para o negócio. - E tu tens? - Pois claro, patrão! A mim ocorre-me um milhão de coisas para melhorar o Cristóbal Colón. Eu tenho entusiasmo por esta profissão. Não sou como essas que andam só a queixar-se e deitam as culpas à má sorte, quando as coisas lhes correm mal. Não vê onde cheguei? Já sou a melhor. Se me empenho, posso ter a melhor casa do pais, juro-lhe. Eu estava a divertir-me muito. Sabia apreciá-la, porque de tanto ver a ambição no espelho, quando fazia a barba de manhã, tinha acabado por aprender a reconhecê-la quando a via nos demais. - Parece-me uma excelente ideia, Tránsito. Porque não montas o teu próprio negócio? Eu entro com o capital - ofereci-lhe, fascinado com a ideia de ampliar os meus interesses comerciais nessa direcção, como devia estar de bêbado! - Não, obrigado, patrão! - respondeu Tránsito, acariciando a sua serpente com uma unha pintada de laca chinesa. - Não me convém sair de um capitalista para cair noutro. O que há a fazer é uma cooperativa e mandar a madame para o caralho. Não ouviu falar disso? Tenha cuidado, olhe que se os seus caseiros formam uma cooperativa, no campo, você está fodido. O que eu quero é uma cooperativa de putas. Podem ser putas e maricas, para ampliar mais o negócio. Nós pomos tudo, o capital e o trabalho. Para que queremos um patrão? Fizemos amor de maneira violenta e feroz, que eu quase tinha esquecido de tanto navegar no veleiro de águas mansas da seda azul. Naquela desordem de almofadas e lençóis, apertados no nu vivo do desejo, enroscando-nos até desfalecer, voltei a sentir-me com vinte anos, contente por ter nos braços uma fêmea brava e apertada que não desfalecia em fiapos quando a montavam, uma égua forte que se podia cavalgar sem contemplações, sem que as mãos nos ficassem pesadas, a voz muito dura, os pés muito grandes ou a barba muito áspera, voltei a sentir-me como aquele que resiste a um chorrilho de palavrões ao ouvido e não necessita de ser embalado com ternuras nem enganado com galanteios. Depois, adormecido e feliz, descansei um bocado a seu lado, admirando-lhe a curva sólida das ancas e a tremura da serpente. - Voltaremos a ver-nos, Tránsito - disse ao dar-lhe a gratificação. - Isso mesmo lhe disse eu antes, patrão, recorda-se? - respondeu-me com um último vaivém da serpente. Na realidade, não tinha intenção de tornar a vê-la. Preferia esquecê-la. Não teria mencionado este episódio se Tránsito não houvesse desempenhado papel tão importante para mim muito tempo depois, porque, como já disse, não sou homem de prostitutas. Mas esta história não se tinha podido escrever se ela não tivesse intervido para nos salvar e salvar, ao mesmo tempo, as nossas recordações. Poucos dias depois, quando o doutor Cuevas lhes estava preparando o ânimo para voltar a abrir a barriga de Clara, morreram Severo e Nívea del Valle, deixando vários filhos e quarenta e sete netos vivos. Clara soube antes dos outros, através de um sonho, mas não o disse a ninguém, a não ser a Férula, que procurou tranquilizá-la, explicando que a gravidez produz um estado de sobressalto no qual os maus sonhos são frequentes. Duplicou os cuidados, friccionava-a com óleo de amêndoas doces para evitar as estrias na pele do ventre, punha-lhe mel de abelhas nos mamilos para não gretarem, dava-lhe a comer cascas de ovo moída para que tivesse bom leite e não se lhe furassem os dentes, e rezava orações de Belém para um bom parto. Dois dias depois do sonho, chegou Esteban Trueba a casa mais cedo que de costume, pálido e descomposto, agarrou a irmã Férula por um braço e fechou-se com ela na biblioteca. - Os meus sogros morreram num acidente - disse-lhe apenas. - Não quero que Clara saiba antes do parto. Tem de se fazer um muro de censura à sua volta, nem jornais, nem rádio, nem visitas, nada! Vigia os criados para que ninguém lhe diga nada. Mas as suas boas intenções ficaram desfeitas pela força das premonições de Clara. Nessa noite voltou a sonhar que os pais caminhavam por um campo de cebolas e que Nívea ia sem cabeça, de modo que, assim, soube todo o ocorrido sem necessidade de o ler no jornal nem de o ouvir pela rádio. Acordou muito excitada e pediu a Férula que a ajudasse a vestir, porque devia sair à procura da cabeça de sua mãe. Férula correu até onde estava Esteban e este chamou o doutor Cuevas, que, embora com risco de prejudicar os gémeos, lhe deu uma beberagem para loucos destinada a fazê-la dormir dois dias, mas que nela não teve o menor efeito. Os esposos del Valle morreram tal como Clara o sonhou e tal como, a brincar, Nívea tinha anunciado frequentemente que morreriam: - Qualquer dia vamo-nos matar nesta máquina infernal – dizia Nívea, apontando o velho automóvel de seu marido. Severo del Valle teve desde jovem um fraco pelos inventos modernos. O automóvel não foi excepção. Nos tempos em que toda a gente andava a pé, em coche de cavalos ou em velocípedes, ele comprou o primeiro automóvel que chegou ao pais, e que estava exposto como curiosidade numa montra do centro. Era um prodígio mecânico que se deslocava a velocidade suicida de quinze a vinte quilómetros por hora, no meio do assombro dos peões e das maldições daqueles que à sua passagem ficavam salpicados de barro ou cobertos de pó. A principio foi combatido como um perigo público. Eminentes cientistas explicaram através da imprensa que o organismo humano não estava feito para resistir a uma deslocação de vinte quilómetros por hora, e que o novo ingrediente, a que chamavam gasolina, podia inflamar-se e produzir uma reacção em cadeia que acabaria com a cidade. O padre Restrepo, que tinha a família del Valle na mira desde o desagradável episódio com Clara na missa de Quinta-Feira Santa, constituiu-se em guardião dos bons costumes e fez ouvir a sua voz da Galiza contra os «amicis rerum novarum», amigos das coisas novas, como esses aparelhos satânicos, que comparou com o carro de fogo em que o profeta Elias desapareceu em direcção ao céu. Mas Severo ignorava o escândalo e em pouco tempo outros cavalheiros seguiram o seu exemplo, até que o espectáculo dos automóveis deixou de ser uma novidade. Usou-o mais de dez anos, negando-se a mudar de modelo quando a cidade se encheu de carros modernos que eram mais eficientes e seguros, pela mesma razão que a esposa não quis eliminar os cavalos de tiro até que morreram tranquilamente de velhice. O Sunbeam tinha cortinas com rendas e floreiras de cristal nas costas dos bancos, onde Nívea mantinha flores frescas, era todo forrado de madeira polida e de couro castanho claro e as suas peças de bronze eram brilhantes como o ouro. Apesar da sua origem britânica, foi baptizado com um nome indígena, Covadonga. Era perfeito, na verdade, com excepção dos travões, que nunca funcionaram bem. Severo orgulhava-se das suas habilidades mecânicas. Desarmou-o várias vezes, tentando arranjá-lo e outras tantas confiou-o ao Grande Cornudo, um mecânico italiano, que era o melhor do pais. Devia a alcunha a uma tragédia que tinha empobrecido a sua vida. Diziam que sua mulher, farta de lhe pôr os cornos sem ele dar por isso, abandonou-o numa noite de tempestade, mas, antes de se ir embora, atou uns cornos de carneiro que conseguiu no carniceiro no alto da porta da oficina de mecânica. No dia seguinte, quando o italiano chegou ao trabalho, encontrou uma cambada de miúdos e vizinhos gozando com ele. Aquele drama, no entanto, não diminuiu em nada o seu prestigio profissional, mas ele não conseguiu A viagem de Las Tres Marias até à capital acabou por esgotar as forças de Clara. Eu viaa cada vez mais pálida, asmática, olheirenta. Com o bambolear dos cavalos e depois com o do comboio, o pó do caminho e a sua natural tendência para o enjoo, ia perdendo as energias a olhos vistos e eu não podia fazer muito para ajudá-la, porque quando estava mal preferia que não lhe falassem. Ao descermos na estação tive de a segurar porque lhe fraquejavam as pernas. - Creio que vou elevar-me - disse. - Aqui não! - gritei-lhe, espantado com a ideia de que saísse voando por cima das cabeças dos passageiros que estavam na gare. Mas ela não se referia concretamente à levitação, mas sim a subir a um nível que lhe permitisse libertar-se da incomodidade, do peso da sua gravidez e da profunda fadiga que se lhe estava a meter nos ossos. Entrou noutro dos seus longos períodos de silêncio, julgo que lhe durou vários meses, durante os quais se servia da lousa de escrever, como nos tempos da mudez. Nessa ocasião não me alarmei, porque supus que recuperaria a normalidade como tinha acontecido depois do nascimento de Blanca e, por outro lado, eu tinha acabado por compreender que o silêncio era o último refúgio inviolável de minha mulher, e não uma doença mental, como pretendia o doutor Cuevas. Férula cuidava dela da mesma forma obsessiva como cuidara antes da nossa mãe, tratava-a como se fosse uma inválida, não queria deixá-la nunca sozinha e tinha-se descuidado de Blanca, que chorava todo o dia porque queria regressar a Las Tres Marias. Clara deambulava como uma sombra gorda e calada pela casa, com um desinteresse budista por tudo o que a rodeava. A mim nem sequer me olhava, passava a meu lado como seu eu fosse um móvel e quando lhe dirigia a palavra ficava na lua, como se não me ouvisse ou não me conhecesse. Não tínhamos voltado a dormir juntos. Os dias ociosos na cidade e a atmosfera irracional que se respirava punham-me os nervos em franja. Fazia por me manter ocupado, mas isso não era suficiente, estava sempre de mau humor. Sala todos os dias para vigiar os meus negócios. Nessa época comecei a especular na Bolsa do Comércio e passava horas estudando os altos e baixos dos valores internacionais, dediquei-me a investir em prata, a formar sociedades ou a fazer importações. Passava muitas horas no Clube. Comecei também a interessar-me pela política e até entrei num ginásio, onde um gigantesco treinador me obrigava a exercitar músculos que eu não suspeitava ter no corpo. Tinham-me recomendado que me dessem massagens, mas nunca gostei disso: detesto que me toquem mãos mercenárias. Mas nada daquilo me podia preencher o dia, estava incomodado e aborrecido, queria voltar para o campo; mas não me atrevia a deixar a casa, onde por todos os motivos se necessitava de um homem sensato no meio daquelas mulheres histéricas. Além disso, Clara estava a engordar demasiado. Tinha uma barriga tão descomunal que mal se podia suster no seu frágil esqueleto. Por pudor não queria que eu a visse nua, mas ela era minha mulher e eu não ia permitir que tivesse vergonha de mim. Ajudava-a a tomar banho, a vestir-se, quando Férula não se adiantava, e sentia uma pena infinita por ela, tão pequena e fraca, com aquela pança monstruosa, aproximando-se perigosamente o momento do parto. Muitas vezes, preocupei-me pensando que podia morrer ao dar à luz e fechava-me com o doutor Cuevas a discutir a melhor maneira de a ajudar. Tínhamos concordado que, se as coisas não se apresentassem bem, era melhor fazer-lhe outra cesariana, mas eu não queria que a levassem para uma clínica e ele negava-se a fazer-lhe outra operação como a primeira, na sala de jantar da casa. Dizia que não havia comodidades, mas nesses tempos as clínicas eram um foco de infecções e, lá, eram mais os que morriam do que os que se salvavam. Um dia, faltando pouco para a data do parto, Clara desceu sem aviso prévio do seu refúgio bramânico e voltou a falar. Quis uma chávena de chocolate e pediu-me que a levasse a passear. O coração deu-me uma volta. Toda a casa se encheu de alegria, abrimos champanhe, mandei pôr flores frescas em todas as jarras, encomendei-lhe camélias, as suas flores preferidas e atapetei com elas o seu quarto, até que ela começou a ter asma e tivemos de as tirar dali rapidamente. Corri a comprar-lhe um broche de diamantes na rua dos joalheiros judeus. Clara agradeceu-me efusivamente, achou-o muito bonito, mas nunca lho vi posto. Suponho que terá ido parar a algum lugar impensado onde o pôs e logo o esqueceu, como quase todas as jóias que lhe comprei ao longo da nossa vida em comum. Chamei o doutor Cuevas, que apareceu com o pretexto de tomar chá, mas na realidade vinha examinar Clara. Levou-a ao quarto e depois disse-nos, a Férula e a mim, que, se a sua crise mental parecia curada, tinha de se preparar para um parto difícil, porque a criança era muito grande. Nesse momento, Clara entrou na sala e deve ter ouvido a última frase. - Tudo correrá bem, não se preocupem - disse. - Espero que desta vez seja um homem, para ter o meu nome - gracejei. - Não é um, são dois - respondeu Clara. - Os gémeos vão-se chamar Jaime e Nicolau respectivamente - acrescentou. Aquilo foi demasiado para mim. Suponho que estoirei pela pressão acumulada nos últimos meses. Fiquei furioso, disse que eram nomes de comerciantes estrangeiros, que ninguém se chamava assim na minha família, nem na sua, que pelo menos um devia chamar-se Esteban, como eu e como meu pai, mas Clara explicou que os nomes repetidos criavam confusão nos cadernos da vida e manteve-se inflexível na sua decisão. Para a assustar, parti com um murro um jarrão de porcelana que, julgo eu, era o último vestígio dos tempos faustosos do meu bisavô, mas ela não se comoveu e o doutor Cuevas sorriu por detrás da chávena de chá, o que me indignou ainda mais. Saí batendo com a porta, e fui ao Clube. Nessa noite embebedei-me. Em parte porque precisava disso e em parte por vingança, fui ao bordel mais conhecido da cidade, que tinha um nome histórico. Quero deixar claro que não sou homem de prostitutas e que só nos períodos em que me foi dado viver sozinho por longo tempo recorri a elas. Não sei o que me passou pela cabeça nesse dia, estava picado com Clara, andava chateado, sobravam-me energias, tentei-me. Nesses anos o negócio do Cristóbal Colón era florescente, mas não tinha adquirido ainda o prestigio internacional que chegou a ter quando aparecia nas cartas de navegação das companhias inglesas e nos folhetos turísticos e o filmaram para a televisão. Entrei num salão com móveis franceses desses com pés retorcidos, onde me recebeu uma matrona nacional que imitava na perfeição o sotaque de Paris, e que começou por me dar a conhecer a lista de preços e em seguida me perguntou se eu tinha alguém em especial na ideia. Disse-lhe que a minha experiência se limitava ao Farolito Rojo e alguns miseráveis lupanares de mineiros do Norte, de maneira que qualquer mulher jovem e limpa me servia bem. - O senhor é muitô simpático, mesiú - disse ela. - Vou-lhe trazer o melhor da casa. Ao seu chamamento acudiu uma mulher enfiada num vestido de cetim preto demasiado apertado, que mal continha a exuberância da sua feminilidade. Tinha o cabelo puxado sobre uma orelha, um penteado de que eu nunca tinha gostado, e à sua passagem ficava um terrível perfume almiscarado a flutuar no ar, tão persistente como um gemido. - Tenho alegria em vê-lo, patrão - saudou, e então reconheci-a, porque a voz era a única coisa que não tinha mudado em Tránsito Soto. Levou-me pela mão a um quarto fechado como um túmulo, com as janelas cobertas de cortinas escuras, onde não penetrava um raio de luz natural desde tempos ignotos, mas que de todos os modos parecia um palácio comparado com as sórdidas instalações do Farolito Rojo. Ali, tirei pessoalmente o vestido de cetim preto a Tránsito, desarmei o seu horrendo penteado e pude ver que nesses anos tinha crescido, engordado, embelezado. - Vejo que progrediste muito - disse-lhe. - Graças aos seus cinquenta pesos, patrão. Serviram-me para começar - respondeu-me. - Agora posso devolvê-los actualizados, porque com a inflação já não valem o que valiam antes. - Prefiro que me faças um favor, Tránsito! - e ri-me. Acabei de lhe tirar os saiotes e comprovei que não existia quase nada da rapariga delgada, com os joelhos e cotovelos salientes, que trabalhava no Farolito Rojo, excepto a sua incansável disposição para a sensualidade e a sua voz de pássaro rouco. Tinha o corpo depilado e tinha friccionado a pele com limão e mel de hamamélide, como me explicou, até ficar suave e branca como a de uma criança. Tinha as unhas pintadas de vermelho e uma serpente tatuada à volta do umbigo, que podia fazer mover em círculos enquanto mantinha em perfeita imobilidade o resto do corpo. Simultaneamente ao demonstrar-me a sua habilidade para ondular a serpente, contou-me a sua vida. - Se tivesse ficado no Farolito Rojo, que teria sido de mim, patrão? Já não teria dentes, seria uma velha. Nesta profissão desgastamo-nos muito, temos de nos cuidar. É por isso que eu não ando pela rua! Nunca gostei disso, é muito perigoso. Na rua temos de ter um chulo, porque senão arrisca-se muito. Ninguém nos respeita. Mas por quê dar a um homem o que custa tanto a ganhar? Nesse sentido as mulheres são muito brutas. São filhas do rigor. Necessitam de um homem para se sentirem seguras e não se dão conta de que a única coisa que há a temer são os próprios homens. Não sabem administrar, necessitam sacrificar-se por alguém. As putas são as piores, patrão, acredite-me. Deixam a vida para trabalhar para um chulo, alegram-se quando ele lhes liga, sentem-se orgulhosas de o ver bem vestido, com dentes de ouro, com anéis e, quando ele as deixa ou vai com outra mais nova, perdoam-lhe porque «é homem». Não, patrão, eu não sou assim. Nunca estive por conta, por isso nem que fosse louca nunca me poria a sustentar fosse quem fosse. Trabalho para mim, o que ganho gasto-o como eu quero. Custou-me muito, não julgue que foi fácil, porque as donas dos prostíbulos não gostam de lidar com mulheres, preferem entender-se com os chulos. Não ajudam nenhuma de nós. Não têm consideração. - Mas parece que aqui te apreciam, Tránsito. Disseram-me que eras a melhor da casa. - E sou. Mas este negócio ia por água abaixo se não fosse eu, que trabalho que nem um burro- disse ela. - As outras já estão como esfregões, patrão. Aqui vêm só velhos, já não é como dantes. Há que modernizar isto, para atrair os funcionários públicos, que não têm nada para fazer ao meio-dia, a juventude, os estudantes. Há que ampliar as instalações, dar mais alegria ao local e limpar. Limpar a fundo! Assim a clientela teria confiança e não estaria a pensar que pode apanhar um esquentamento, não é verdade? Isto é uma porcaria. Não limpam nunca. Olhe, levante a almofada e tenho a certeza que lhe salta um percevejo. Já o disse à madame, mas não fez caso. Não tem olho para o negócio. - E tu tens? - Pois claro, patrão! A mim ocorre-me um milhão de coisas para melhorar o Cristóbal Colón. Eu tenho entusiasmo por esta profissão. Não sou como essas que andam só a queixar-se e deitam as culpas à má sorte, quando as coisas lhes correm mal. Não vê onde cheguei? Já sou a melhor. Se me empenho, posso ter a melhor casa do pais, juro-lhe. Eu estava a divertir-me muito. Sabia apreciá-la, porque de tanto ver a ambição no espelho, quando fazia a barba de manhã, tinha acabado por aprender a reconhecê-la quando a via nos demais. - Parece-me uma excelente ideia, Tránsito. Porque não montas o teu próprio negócio? Eu entro com o capital - ofereci-lhe, fascinado com a ideia de ampliar os meus interesses comerciais nessa direcção, como devia estar de bêbado! - Não, obrigado, patrão! - respondeu Tránsito, acariciando a sua serpente com uma unha pintada de laca chinesa. - Não me convém sair de um capitalista para cair noutro. O que há a fazer é uma cooperativa e mandar a madame para o caralho. Não ouviu falar disso? Tenha cuidado, olhe que se os seus caseiros formam uma cooperativa, no campo, você está fodido. O que eu quero é uma cooperativa de putas. Podem ser putas e maricas, para ampliar mais o negócio. Nós pomos tudo, o capital e o trabalho. Para que queremos um patrão? Fizemos amor de maneira violenta e feroz, que eu quase tinha esquecido de tanto navegar no veleiro de águas mansas da seda azul. Naquela desordem de almofadas e lençóis, apertados no nu vivo do desejo, enroscando-nos até desfalecer, voltei a sentir-me com vinte anos, contente por ter nos braços uma fêmea brava e apertada que não desfalecia em fiapos quando a montavam, uma égua forte que se podia cavalgar sem contemplações, sem que as mãos nos ficassem pesadas, a voz muito dura, os pés muito grandes ou a barba muito áspera, voltei a sentir-me como aquele que resiste a um chorrilho de palavrões ao ouvido e não necessita de ser embalado com ternuras nem enganado com galanteios. Depois, adormecido e feliz, descansei um bocado a seu lado, admirando-lhe a curva sólida das ancas e a tremura da serpente. - Voltaremos a ver-nos, Tránsito - disse ao dar-lhe a gratificação. - Isso mesmo lhe disse eu antes, patrão, recorda-se? - respondeu-me com um último vaivém da serpente. Na realidade, não tinha intenção de tornar a vê-la. Preferia esquecê-la. Não teria mencionado este episódio se Tránsito não houvesse desempenhado papel tão importante para mim muito tempo depois, porque, como já disse, não sou homem de prostitutas. Mas esta história não se tinha podido escrever se ela não tivesse intervido para nos salvar e salvar, ao mesmo tempo, as nossas recordações. Poucos dias depois, quando o doutor Cuevas lhes estava preparando o ânimo para voltar a abrir a barriga de Clara, morreram Severo e Nívea del Valle, deixando vários filhos e quarenta e sete netos vivos. Clara soube antes dos outros, através de um sonho, mas não o disse a ninguém, a não ser a Férula, que procurou tranquilizá-la, explicando que a gravidez produz um estado de sobressalto no qual os maus sonhos são frequentes. Duplicou os cuidados, friccionava-a com óleo de amêndoas doces para evitar as estrias na pele do ventre, punha-lhe mel de abelhas nos mamilos para não gretarem, dava-lhe a comer cascas de ovo moída para que tivesse bom leite e não se lhe furassem os dentes, e rezava orações de Belém para um bom parto. Dois dias depois do sonho, chegou Esteban Trueba a casa mais cedo que de costume, pálido e descomposto, agarrou a irmã Férula por um braço e fechou-se com ela na biblioteca. - Os meus sogros morreram num acidente - disse-lhe apenas. - Não quero que Clara saiba antes do parto. Tem de se fazer um muro de censura à sua volta, nem jornais, nem rádio, nem visitas, nada! Vigia os criados para que ninguém lhe diga nada. Mas as suas boas intenções ficaram desfeitas pela força das premonições de Clara. Nessa noite voltou a sonhar que os pais caminhavam por um campo de cebolas e que Nívea ia sem cabeça, de modo que, assim, soube todo o ocorrido sem necessidade de o ler no jornal nem de o ouvir pela rádio. Acordou muito excitada e pediu a Férula que a ajudasse a vestir, porque devia sair à procura da cabeça de sua mãe. Férula correu até onde estava Esteban e este chamou o doutor Cuevas, que, embora com risco de prejudicar os gémeos, lhe deu uma beberagem para loucos destinada a fazê-la dormir dois dias, mas que nela não teve o menor efeito. Os esposos del Valle morreram tal como Clara o sonhou e tal como, a brincar, Nívea tinha anunciado frequentemente que morreriam: - Qualquer dia vamo-nos matar nesta máquina infernal – dizia Nívea, apontando o velho automóvel de seu marido. Severo del Valle teve desde jovem um fraco pelos inventos modernos. O automóvel não foi excepção. Nos tempos em que toda a gente andava a pé, em coche de cavalos ou em velocípedes, ele comprou o primeiro automóvel que chegou ao pais, e que estava exposto como curiosidade numa montra do centro. Era um prodígio mecânico que se deslocava a velocidade suicida de quinze a vinte quilómetros por hora, no meio do assombro dos peões e das maldições daqueles que à sua passagem ficavam salpicados de barro ou cobertos de pó. A principio foi combatido como um perigo público. Eminentes cientistas explicaram através da imprensa que o organismo humano não estava feito para resistir a uma deslocação de vinte quilómetros por hora, e que o novo ingrediente, a que chamavam gasolina, podia inflamar-se e produzir uma reacção em cadeia que acabaria com a cidade. O padre Restrepo, que tinha a família del Valle na mira desde o desagradável episódio com Clara na missa de Quinta-Feira Santa, constituiu-se em guardião dos bons costumes e fez ouvir a sua voz da Galiza contra os «amicis rerum novarum», amigos das coisas novas, como esses aparelhos satânicos, que comparou com o carro de fogo em que o profeta Elias desapareceu em direcção ao céu. Mas Severo ignorava o escândalo e em pouco tempo outros cavalheiros seguiram o seu exemplo, até que o espectáculo dos automóveis deixou de ser uma novidade. Usou-o mais de dez anos, negando-se a mudar de modelo quando a cidade se encheu de carros modernos que eram mais eficientes e seguros, pela mesma razão que a esposa não quis eliminar os cavalos de tiro até que morreram tranquilamente de velhice. O Sunbeam tinha cortinas com rendas e floreiras de cristal nas costas dos bancos, onde Nívea mantinha flores frescas, era todo forrado de madeira polida e de couro castanho claro e as suas peças de bronze eram brilhantes como o ouro. Apesar da sua origem britânica, foi baptizado com um nome indígena, Covadonga. Era perfeito, na verdade, com excepção dos travões, que nunca funcionaram bem. Severo orgulhava-se das suas habilidades mecânicas. Desarmou-o várias vezes, tentando arranjá-lo e outras tantas confiou-o ao Grande Cornudo, um mecânico italiano, que era o melhor do pais. Devia a alcunha a uma tragédia que tinha empobrecido a sua vida. Diziam que sua mulher, farta de lhe pôr os cornos sem ele dar por isso, abandonou-o numa noite de tempestade, mas, antes de se ir embora, atou uns cornos de carneiro que conseguiu no carniceiro no alto da porta da oficina de mecânica. No dia seguinte, quando o italiano chegou ao trabalho, encontrou uma cambada de miúdos e vizinhos gozando com ele. Aquele drama, no entanto, não diminuiu em nada o seu prestigio profissional, mas ele não conseguiu compor os travões do Covadonga. Severo optou por trazer uma pedra grande no automóvel e, quando estacionava em descidas, um passageiro pisava o travão de pé e o outro descia rapidamente e punha a pedra diante das rodas. O sistema em geral dava bom resultado, mas nesse domingo fatal, assinalado pelo destino como o último das suas vidas, não foi assim. Os esposos del Valle saíram a passear pelos arrabaldes da cidade, como faziam sempre que havia um dia de sol. Os travões depressa deixaram de funcionar por completo e, antes que Nívea conseguisse saltar do carro para colocar a pedra, ou Severo pudesse manobrar, o automóvel foi rodando cerro abaixo. Severo tentou desviá-lo ou detê-lo, mas o diabo tinha-se apoderado da máquina, que voou descontrolada até se espetar contra uma carroça carregada de ferragens de construção. Uma das laminas entrou pelo pára-brisas e decapitou Nívea num abrir e fechar de olhos. A cabeça saiu-lhe disparada e, apesar das buscas da policia, dos guardas florestais e dos vizinhos voluntários que saíram a buscar-lhe o rasto com cães, foi impossível durante dois dias dar com ela. No terceiro dia, como os corpos começaram a feder, tiveram de enterrá-los incompletos, num funeral magnifico a que assistiu a tribo del Valle e um número incrível de amigos e conhecidos, além das delegações de mulheres que foram despedir-se dos restos mortais de Nívea, considerada então a primeira feminista do pais e de quem os seus inimigos ideológicos disseram que, se tinha perdido a cabeça em vida, não havia razão para que a conservasse na morte. Clara, recolhida em casa, rodeada de criados que a cuidavam, com Férula como guardiã e drogada pelo doutor Cuevas, não assistiu ao enterro. Não fez nenhum comentário que indicasse que sabia do horroroso assunto da cabeça perdida, para consideração de todos os que haviam tentado poupar-lhe essa última dor; no entanto, quando terminaram os funerais e a vida pareceu voltar à normalidade, Clara convenceu Férula que a acompanhasse a procurá-la e foi inútil que a sua cunhada lhe desse mais beberagens e pílulas, porque não desistiu da ideia. Vencida, Férula compreendeu que não era possível continuar alegando que o caso da cabeça era um mau sonho e que o melhor era ajudá-la nos seus planos, antes que a ansiedade acabasse por dar cabo dela. Esperaram que Esteban Trueba saísse. Férula ajudou-a a vestir-se e chamou um carro de aluguer. As instruções que Clara deu ao motorista foram algo imprecisas: - O senhor vá para a frente, que eu vou-lhe dizendo o caminho - disse-lhe, guiada pelo seu instinto para ver o invisível. Saíram da cidade e entraram no espaço aberto onde as casas se distanciavam e começavam as colinas e os vales suaves. À indicação de Clara, viraram por um caminho lateral e seguiram entre os vidoeiros e campos de cebolas, até que disse ao motorista que parasse junto de uns matagais. - É aqui - disse. - Não pode ser! Estamos longíssimo do lugar do acidente! - duvidou Férula. - Digo-te que é aqui! - insistiu Clara, descendo do carro com dificuldade, balançando o enorme ventre, seguida por sua cunhada, que dizia orações entredentes, e pelo homem, que não tinha a menor ideia do objectivo da viagem. Tentou rastejar entre o mato, mas o volume dos gémeos impediram-na. - Faça-me o favor, senhor, meta-se ali e passe-me uma cabeça de senhora que vai encontrar - pediu ao motorista. Ele arrastou-se debaixo dos espinhos e encontrou a cabeça de Nívea, que parecia um melão solitário. Pegou-lhe pelo cabelo e saiu com ela gatinhando. Enquanto o homem vomitava apoiado numa árvore próxima, Férula e Clara limparam a Nívea a terra e os seixos que se lhe tinham metido pelas orelhas, pelo nariz e pela boca, e compuseram-lhe o cabelo, que se lhe havia despenteado um pouco, mas não puderam fechar-lhe os olhos. Envolveram-na num xaile e regressaram ao carro. - Apresse-se, senhor, porque creio que vou dar à luz! - disse Clara ao motorista. Chegaram justamente a tempo de acomodar a mãe na sua cama. Férula tratou dos preparativos enquanto iam buscar o doutor Cuevas e a parteira. Clara, que com os solavancos do carro, as emoções dos últimos dias e as beberagens do médico tinha adquirido a facilidade para dar à luz que não teve com a sua primeira filha, apertou os dentes, agarrou-se ao mastro da mezena e do traquete do veleiro e entregou-se à tarefa de dar ao mundo, na água mansa da seda azul, Jaime e Nicolau, que nasceram precipitadamente, ante o olhar atento da avó, cujos olhos continuavam abertos observando-os da cómoda. Férula agarrou-os um de cada vez pela mecha de cabelo húmido que lhes coroava a nuca e ajudou-os a sair com puxões, com a experiência adquirida a ver nascer potros e vitelos em Las Tres Marias. Antes que chegassem o médico e a parteira ocultou debaixo da cama a cabeça de Nívea, para evitar explicações complicadas. Quando eles chegaram, tiveram muito pouco que fazer, porque a mãe descansava tranquila e as crianças, minúsculas como sete-mesinhos, mas com todas as suas partes inteiras e em bom estado, dormiam nos braços da sua extenuada tia. A cabeça de Nívea tornou-se um problema, porque não tinham onde a pôr para que a não vissem. Por fim, Férula colocou-a dentro de uma chapeleira de couro envolvida em trapos. Discutiram a possibilidade de a enterrar como Deus manda, mas teria sido uma papelada interminável para conseguir que abrissem o túmulo para incluir nele o que faltava e, por outro lado, temiam o escândalo se se tornava pública a maneira como Clara a tinha encontrado onde os sabujos tinham fracassado. Esteban Trueba, temeroso do ridículo como sempre foi, optou por uma solução que não desse argumentos às más línguas, porque sabia que o estranho comportamento de sua mulher era motivo de chacota. Tinha constado a habilidade de Clara para mover objectos sem lhes tocar e para adivinhar o impossível. Alguém desenterrou a história da mudez de Clara durante a sua infância e a acusação do padre Restrepo, aquele santo varão que a Igreja pretendia converter no primeiro boato do pais. O par de anos em Las Tres Marias serviu para calar os murmúrios e para que as pessoas esquecessem, mas Trueba sabia que bastava uma insignificância, como o assunto da cabeça da sagra, para que voltassem com falatórios. Por isso, e não por desleixo, como se disse anos mais tarde, a chapeleira guardou-se na cave à espera de uma ocasião adequada para dar-lhe sepultura cristã. Clara recompôs-se do duplo parto com rapidez. Entregou as crianças, para serem criadas, à cunhada e à Ama, que, depois da morte dos antigos patrões, se empregou em casa dos Trueba para continuar servindo o mesmo sangue, como dizia. Tinha nascido para embalar filhos alheios, para usar a roupa que os outros deitavam fora, para comer as suas sobras, para viver de sentimentos e tristezas emprestadas, para envelhecer debaixo do tecto dos outros, para morrer um dia no seu cubículo do último pátio, na sua cama que não era sua e ser enterrada na vala comum do Cemitério Central. Tinha cerca de setenta anos, mas mantinha-se imperturbável no seu trabalho, incansável nas lides da casa, sem acusar o tempo, com agilidade para disfarçar-se de cuco e assaltar Clara nos cantos quando lhe vinha a mania da mudez e da lousa, com força para lidar com os gémeos e ternura para compreender Blanca, tal como antes o tinha feito com a sua mãe e a sua avó. Tinha adquirido o hábito de murmurar orações constantemente, mas, quando se deu conta de que ninguém em casa era crente, assumiu a responsabilidade de orar pelos vivos da família, e por certo também pelos mortos, como um prolongamento dos serviços que lhes tinha prestado em vida. Na velhice chegou a esquecer para quem rezava, mas manteve o costume com a certeza de que ele serviria a alguém. A devoção era a única coisa que compartilhava com Férula. Em tudo o resto foram rivais. Uma sexta-feira, pela tarde, tocaram à porta da grande casa da esquina três senhoras translúcidas, de mãos ténues e olhos de bruma, com chapéus com flores passados de moda e banhadas num intenso perfume a violetas silvestres, que se infiltrou por todos os quartos e deixou a casa cheirando a flores por vários dias. Eram as três irmãs Mora. Clara estava no jardim e parecia tê-las esperado toda a tarde, recebeu-as com um menino em cada peito e com Blanca brincando a seus pés. Olharam-se, reconheceram-se, sorriram-se. Foi o começo de uma apaixonada relação espiritual que lhes durou toda a vida, e que, se as suas previsões se cumprissem, continuaria no Mais-Além. As três irmãs Mora eram estudiosas do espiritismo e dos fenómenos naturais, eram as únicas que tinham a prova irrefutável de que as almas podem materializar-se, graças a uma fotografia que as mostrava à volta de uma mesa e voando por cima das suas cabeças um ectoplasma difuso e alado, que alguns descrentes atribuíam a uma mancha na revelação do retrato e outros a um simples engano do fotógrafo. Inteiraram-se, por condutas misteriosas ao alcance dos iniciados, da existência de Clara, puseram-se em contacto telepático com ela e compreenderam de imediato que eram irmãs astrais. Por meio de discretas averiguações deram com a sua direcção da terra e apresentaram-se com os seus próprios baralhos impregnados de fluidos benéficos, uns jogos de figuras geométricas e números cabalísticos de sua invenção, para desmascarar os falsos parapsicólogos, e uma bandeja de pastelinhos comuns e correntes de presente para Clara. Fizeram-se amigas intimas e, a partir desse dia, procuravam juntar-se todas as sextas-feiras para invocar os espíritos, trocar cabalas e receitas de cozinha. Descobriram a forma de enviar energia mental da grande casa da esquina até ao outro extremo da cidade, onde viviam os Mora, num velho moinho que tinham transformado na sua extraordinária morada, e também no sentido inverso, com o que podiam apoiar-se nas circunstancias difíceis da vida quotidiana. As Mora conheciam muitas pessoas, quase todas interessadas nesses assuntos, que começaram a chegar às reuniões das sextas-feiras e trouxeram os seus conhecimentos e fluidos magnéticos. Esteban Trueba via-as desfilar pela casa e pôs como únicas condições que respeitassem a sua biblioteca, que não utilizassem as crianças para experiências psíquicas e, fossem discretas, porque não queria escândalo público. Férula não aprovava estas actividades de Clara, porque lhe pareciam em desacordo com a religião e os bons costumes. Observava as sessões a uma distancia prudente, sem participar, mas vigiando pelo rabo do olho enquanto tecia, disposta a intervir logo que Clara entrasse nalgum transe. Tinha verificado que a cunhada ficava exausta depois de algumas sessões em que servia de médium e começava a falar em idiomas pagãos com uma voz que não era a sua. A Ama também vigiava com o pretexto de oferecer chavenazinhas de café, espantando as almas com os seus saiotes engomados e o seu cacarejar de orações murmuradas e de dentes soltos, mas não fazia isso para cuidar de Clara nos seus próprios excessos, mas para verificar que ninguém roubava os cinzeiros. Era inútil que Clara lhe explicasse que as suas visitas não tinham o menor interesse neles; principalmente porque ninguém fumava, porque a Ama tinha classificado todos, excepto as três encantadoras jovens Mora, como um bando de rufias evangélicos. A Ama e Férula detestavam-se. Disputavam entre si o carinho das crianças e lutavam por cuidar de Clara nas suas extravagâncias e desvarios, num surdo e permanente combate que se desenrolava nas cozinhas, nos pátios, nos corredores, mas nunca perto de Clara, porque as duas estavam de acordo em evitar-lhe essa moléstia. Férula tinha chegado a gostar de Clara com uma paixão zelosa que se parecia mais com a de um marido exigente que com a de uma cunhada. Com o tempo perdeu a prudência e começou a deixar transparecer a sua adoração em muitos pormenores que não passavam despercebidos a Esteban. Quando ele regressava do campo, Férula procurava convencê-lo de que Clara estava naquilo a que chamavam «um dos seus maus momentos», para que ele não dormisse na sua cama e não estivesse com ela mais que ocasiões contadas e por tempo limitado. Defendia recomendações do doutor Cuevas que depois, ao serem confrontadas com o médico, resultavam invenções. Interpunha-se de mil maneiras entre os esposos e se tudo lhe falhava incitava os três meninos a que pedissem para ir passear com o seu pai, ler com a mãe, que os tapassem porque tinham febre, que brincassem com eles; «pobrezinhos necessitam do seu papa e da sua mamã. Passam todo o dia nas mãos dessa velha ignorante que lhes mete ideias atrasadas na cabeça, que os está pondo imbecis com as suas superstições, o que há a fazer com a Ama é interná-la, dizem que as servas de Deus têm um asilo para empregadas velhas que é uma maravilha, tratam-nas como senhoras, não têm de trabalhar, há boa comida, isso seria o mais humano, pobre Ama, já não dá para mais», dizia. Sem poder detectar a causa, Esteban começou a sentir-se incomodado na sua própria casa. Sentia a mulher cada vez mais afastada, mais rara e inacessível, não podia alcançá-la nem com presentes, nem com as suas tímidas mostras de ternura, nem com a paixão desenfreada que o comovia sempre na sua presença. Em todo esse tempo, o seu amor tinha aumentado até se tornar numa obsessão. Queria que Clara não pensasse em ninguém mais que nele, que não tivesse mais vida que aquela que pudesse repartir com ele, que lhe contasse tudo, que não possuísse nada que não viesse das suas mãos, que dependesse dele totalmente. Mas a realidade era diferente Clara parecia andar voando de aeroplano, como o seu tio Marcos, desprendida do solo firme, procurando Deus em disciplinas tibetanas, consultando os espíritos com mesas de pé-de-galo que davam pancadinhas, duas para sim, três para não, decifrando mensagens de outros mundos, que podiam indicar-lhe até o estado das chuvas. Uma vez, anunciaram que havia um tesouro escondido debaixo da chaminé e ela mandou primeiro deitar abaixo a parede, mas não apareceu, depois foi a escada, nada, a seguir a metade do salão principal, nada. Por último aconteceu que o espirito, confundido com as modificações arquitectónicas que ela tinha feito em casa, não reparou que o esconderijo dos dobrões de ouro não estava na casa dos Trueba, mas do outro lado da rua, em casa dos Ugarte, que se negaram a deitar abaixo a sala de jantar porque não acreditaram no conto do fantasma espanhol. Clara não era capaz de fazer as tranças a Blanca para ir para a escola, disso se encarregavam Férula e a Ama, mas tinha com ela uma estupenda relação baseada nos mesmos princípios que ela tinha tido com Nívea: contavam contos, liam os livros mágicos dos baús encantados, consultavam os retratos de família, contavam-se anedotas dos tios que deixavam escapar ventos e dos cegos que caem como gárgulas dos álamos, saíam a olhar a cordilheira e a contar as nuvens, comunicavam entre si num idioma inventado que suprimia o te ao castelhano e o substituía por éne e o érre por éle, de maneira que ficavam falando como o chinês da tinturaria. Entretanto, Jaime e Nicolau cresciam separados do binómio feminino, de acordo com o principio daqueles tempos de que se «têm de fazer homens». As mulheres, por seu lado, nasciam com a sua condição incorporada geneticamente e não tinham necessidade de a adquirir com as vicissitudes da vida. Os gémeos tornaram-se fortes e brutais nos jogos próprios da sua idade, primeiro caçando lagartixas para cortar-lhes a cauda, ratos para os fazer dar corridas e borboletas para lhes tirar o pó das asas e, mais tarde, dando murros e patadas de acordo com as instruções do mesmo chinês da tinturaria, que era um avançado para a sua época e que foi o primeiro a levar ao pais o conhecimento milenário das artes marciais, mas ninguém fez caso quando demonstrou que podia partir tijolos com a mão e quis montar a sua própria academia, por isso acabou lavando roupa alheia. Anos mais tarde, os gémeos acabaram de fazer-se homens, escapando do colégio para se meterem no sitio baldio da lixeira, onde trocavam os talheres de prata da mãe por uns minutos de amor proibido com uma mulherona imensa que os podia embalar aos dois nos seus peitos de vaca holandesa, afogá-los aos dois na pulposa humidade das axilas, esmagá-los nos músculos de elefante e levar os dois à glória com a cavidade escura, sumarenta, quente do seu sexo. Mas isso não durou muito e Clara nunca o soube, de modo que não o pôde anotar nos cadernos para que eu o lesse algum dia. Vim a saber por outras vias. Os assuntos domésticos não interessavam a Clara. Vagueava pelos quartos sem estranhar que tudo estivesse em perfeito estado de ordem e limpeza. Sentava-se à mesa sem perguntar quem preparava a comida e onde compravam os alimentos, tanto lhe fazia que fosse este ou aquele quem a servisse, esquecia o nome dos empregados e por vezes até o dos próprios filhos, no entanto parecia estar sempre presente, como um espírito benéfico e alegre, a cujo passo acertavam os relógios. Vestia-se de branco, porque decidiu que era a única cor que não alterava a sua aura, com os vestidos simples que lhe fazia Férula na máquina de coser e que preferia aos vestidos com véus e pedrarias que lhe dava o marido, com o propósito de deslumbrá-la e vê-la à moda. Esteban sofria repentes de desespero porque ela o tratava com a mesma simpatia com que tratava toda a gente, falava-lhe com o tom mimoso com que acariciava os gatos, era incapaz de ver se ele estava cansado, triste, eufórico ou com vontade de fazer amor, mas em contrapartida adivinhava, pela cor das suas radiações, quando ele estava tramando alguma velhacaria e podia desarmar-lhe uma zanga com duas frases trampolineiras. Exasperava-o que Clara nunca parecesse estar realmente agradecida por nada e nunca necessitar nada que ele pudesse darlhe. Na cama era distraída e risonha como em tudo o resto, descontraída e simples, mas ausente. Sabia que tinha o corpo para fazer todas as ginásticas aprendidas nos livros que escondia num compartimento da biblioteca, mas até os pecados mais abomináveis com Clara pareciam brincadeiras de recém-nascido, porque era impossível salpicá-los com o sal de qualquer mau pensamento ou a pimenta da submissão. Enfurecido, nalgumas ocasiões Trueba voltou aos antigos pecados e tombava uma camponesa robusta nos matagais, durante as separações forçadas em que Clara ficava com os miúdos na capital e ele tinha de tomar cargo do campo, mas o acontecido, longe de aliviá-lo, deixava-lhe um mau sabor na boca e não lhe dava nenhum prazer, que durasse especialmente, porque se o tivesse contado a sua mulher, sabia que se teria escandalizado por ele ter maltratado outra, mas de maneira alguma pela sua infidelidade. Os ciúmes, como muitos outros sentimentos propriamente humanos, não tocavam Clara. Também foi ao Farolito Rojo duas ou três vezes, mas deixou de o fazer porque já não funcionava com a prostitutas e tinha de engolir a humilhação com pretextos, ditos entre dentes, de que tinha bebido muito vinho, de que lhe tinha caído mal o almoço, de que andava constipado há vários dias. Não voltou, todavia, a visitar Tránsito Soto, porque pressentia que ela tinha em si própria o perigo da continuação. Sentia um desejo insatisfeito fervendo-lhe nas entranhas, um fogo impossível de apagar, uma sede de Clara que nunca, nem mesmo nas noites mais fogosas e prolongadas, conseguia saciar. Dormia extenuado, com o coração a pontos de lhe estalar no peito, mas até nos sonhos estava consciente de que a mulher que repousava a seu lado não estava ali, mas era apenas uma dimensão desconhecida a que ele jamais poderia chegar. Por vezes perdia a paciência e sacudia Clara furioso, gritando-lhe os piores insultos e terminava chorando no seu regaço e pedindo depois perdão pela sua brutalidade. Clara compreendia, mas não podia remediá-lo. O amor desmedido de Esteban Trueba por Clara foi sem dúvida o sentimento mais poderoso da sua vida, maior inclusivamente que a raiva e o orgulho, e meio século depois continuava invocando-o com o mesmo estremecimento e a mesma urgência. No leito de ancião, chamá-la-ia até ao fim dos seus dias. As intervenções de Férula agravavam o estado de ansiedade em que se debatia Esteban. Cada obstáculo que sua irmã atravessava entre Clara e ele punha-o fora de si. Chegou a detestar os próprios filhos porque absorviam a atenção da mãe, levou Clara a uma segunda lua-de-mel nos mesmos sítios da primeira, escapavam-se para hotéis em fins-de-semana, mas tudo era inútil. Convenceu-se de que Férula era quem tinha a culpa de tudo, que tinha semeado na sua mulher o gérmen maléfico que a impedia de o amar, e que, roubava com carícias proibidas o que lhe pertencia a ele, como marido. Punha-se lívido quando surpreendia Férula dando banho a Clara, tirava-lhe a esponja das mãos, mandava-a embora com violência e puxava Clara da água praticamente no ar, sacudindo-a, proibia-lhe que voltasse a deixar-se banhar, porque na sua idade isso era um vício e acabava secando-a ele, embrulhando-a no seu robe, levando-a para a cama com a sensação de que estava a ser ridículo. Se Férula servia a sua mulher uma chávena de chocolate, tirava-lha das mãos com o pretexto de que a tratava como a uma inválida, se lhe dava um beijo de boas-noites, afastava-a com um safanão dizendo que não era bom beijocarem-se, se lhe escolhia os melhores pedaços da bandeja, afastava-se da mesa enfurecido. Os dois irmãos chegaram a ser rivais declarados, mediam-se com olhares de ódio, inventavam argúcias para se desclassificarem mutuamente aos olhos de Clara, espiavam-se, vigiavam-se. Esteban desistiu de voltar ao campo e encarregou Pedro Segundo Garcia de tudo, inclusivamente das vacas importadas, deixou de sair com os amigos, de ir jogar golfe, de trabalhar, para vigiar dia e noite os passos da irmã e ficar à frente dela quando se acercava de Clara. A atmosfera da casa tornou-se irrespirável, densa e sombria e até a Ama andava como que assombrada. A única que permanecia alheia por completo ao que estava sucedendo, era Clara, que na sua distracção e inocência não se dava conta de nada. O ódio de Esteban e Férula demorou muito tempo a estalar. Começou com um mal-estar dissimulado e um desejo de ofenderem-se nos mais pequenos pormenores, mas foi crescendo até que ocupou toda a casa. Nesse Verão Esteban teve de ir a Las Tres Marias porque, justamente no momento das colheitas, Pedro Segundo Garcia caiu do cavalo e foi parar com a cabeça partida ao hospital das freiras. Logo que o seu administrador recuperou, Esteban regressou à capital sem avisar. No comboio, ia com um pressentimento atroz, como um desejo inconfessado de que tivesse acontecido algum drama, sem saber que o drama já tinha começado quando ele o desejou. Chegou à cidade a meio da tarde, mas foi directamente ao Clube, onde jogou uma partida de bisca e jantou, sem conseguir acalmar a inquietação e a impaciência, ainda que não soubesse o que o estava esperando. Durante o jantar houve um pequeno tremor de terra, os lustres baloiçaram com a habitual chocalhada de cristal, mas ninguém levantou a vista, todos continuaram a comer e os músicos a tocar sem perder uma nota, excepto Esteban Trueba, que se sobressaltou como se aquilo tivesse sido um aviso. Acabou de comer à pressa, pediu a conta e saiu. Férula, que em geral tinha os nervos sob controlo, nunca tinha podido habituar-se aos tremores de terra. Chegou a perder o medo aos fantasmas que Clara invocava e aos ratos do campo, mas os tremores de terra comoviam-na até aos ossos e continuava a tremer muito tempo depois deles terem passado. Nessa noite, ainda não se tinha deitado, foi ao quarto de Clara, que tinha tomado a infusão de tília e estava dormindo sossegadamente. à procura de um pouco de companhia e calor, encostou-se a seu lado procurando não a acordar e murmurando orações silenciosas para que aquilo não degenerasse em terramoto. Ali a encontrou Esteban Trueba. Entrou em casa tão silencioso como um bandido, subiu ao quarto de Clara sem acender as luzes e apareceu como um furacão em frente das duas mulheres adormecidas, que o julgavam em Las Tres Marias. Atirou-se a sua irmã com a mesma raiva com que o teria feito se ela fosse o sedutor da esposa e arrancou-a da cama aos puxões, arrastou-a pelo corredor, fê-la descer a escada aos empurrões e introduziu-a à viva força na biblioteca, enquanto Clara, da porta do quarto, gritava sem compreender o que tinha acontecido. A sós com Férula, descarregou a sua fúria de marido insatisfeito e gritou à irmã o que devia dizer-lhe, desde machona até meretriz, acusando-a de lhe perverter a mulher, de desviá-la com caricias de solteirona, de a pôr lunática, distraída, muda e espiritista com artes de lésbica, de brincar com ela na sua ausência, de manchar até o nome dos filhos, a honra da casa e a memória de sua santa mãe, que já estava farto de tanta maldade e que corria com ela de casa, que se fosse embora rapidamente, que não queria tornar a vê-la nunca mais, e lhe proibia que se aproximasse da mulher e dos filhos, que não faltaria dinheiro para subsistir com decência enquanto ele vivesse, tal como lhe tinha prometido uma vez, mas que se voltasse a vê-la a rondar a família a mataria, que metesse isso bem na cabeça. Juro-te pela nossa mãe que te mato. - Maldito sejas, Esteban! - gritou-lhe Férula. – Estarás sempre sozinho, encolher-te-á a alma e o corpo e morrerás como um cão! E saiu para sempre da grande casa da esquina, em camisa de dormir e sem levar nada consigo. No dia seguinte Esteban Trueba foi ver o padre António e contou-lhe o que se tinha passado sem dar pormenores. O sacerdote escutou-o calmamente com o olhar impassível de quem já antes tinha ouvido a história. - Que desejas de mim, meu filho? - perguntou quando Esteban acabou de falar. - Que faça chegar a minha irmã todos os meses um envelope que eu lhe entregarei. Não quero que tenha necessidades económicas. E esclareço que não o faço por carinho, mas para cumprir uma promessa. O padre António recebeu o primeiro envelope com um suspiro e esboçou o gesto de dar a bênção, mas Esteban já tinha dado meia volta e saía. Não deu nenhuma explicação a Clara do que se tinha passado entre ele e sua irmã. Disse-lhe que a tinha corrido de casa, que lhe proibia tornar a mencioná-la na sua presença e sugeriu-lhe que, se ela tinha algo de decência, nem a devia mencionar nas suas costas. Mandou tirar a sua roupa e todos os objectos que pudessem recordá-la e fez de conta que ela tinha morrido. Clara compreendeu que era inútil fazer-lhe perguntas. Foi à sala de costura buscar o pêndulo, que lhe servia para comunicar com os fantasmas e que usava como instrumento de concentração. Estendeu no chão um mapa da cidade, suspendeu o pêndulo a meio metro e esperou que as oscilações lhe indicassem a direcção da cunhada, mas depois de o tentar durante toda a tarde deu-se conta que o sistema não resultaria se Férula não tinha um domicílio fixo. Em face da ineficácia do pêndulo para a localizar, saiu a vaguear de carro, esperando que o instinto a guiasse, mas nem isso deu resultado! Consultou a mesa de pé-de-galo sem que nenhum espirito guia aparecesse para conduzi-la aonde Férula, através das ruelas da cidade, a chamasse com o pensamento, mas não obteve resposta nem tão pouco as cartas do tarot a iluminaram. Então decidiu recorrer aos métodos tradicionais e começou a procurá-la entre as amigas, interrogou os fornecedores e a todos os que tinham relações com ela, mas ninguém a tinha voltado a ver. As averiguações levaram-na, por fim, aonde estava o padre António. - Não a procure mais, senhora - disse o sacerdote. – Ela não quer vê-la. Clara compreendeu que essa era a causa pela qual não tinham funcionado nenhuns dos seus infalíveis sistemas de adivinhação. - As irmãs Mora tinham razão - disse para si. - Não se pode encontrar quem não quer ser encontrado. Esteban Trueba entrou num período muito próspero. Os seus negócios pareciam tocados por uma varinha mágica. Sentia-se satisfeito com a vida. Era rico, tal como tinha dito um dia que viria a ser. Tinha a concessão de oito minas, estava exportando fruta para o estrangeiro, formou uma empresa construtora e Las Tres Marias, que tinha crescido muito em tamanho, estava transformada na melhor propriedade da região. Não o afectou a crise económica que convulsionou o resto do país. Nas províncias do Norte a falência das salitreiras tinha deixado na miséria milhares de trabalhadores. As famélicas tribos de desempregados, que arrastavam as mulheres, os filhos, os velhos, buscando trabalho pelos caminhos, tinham acabado por aproximar-se da capital e lentamente formaram um cordão de miséria à volta da cidade, instalando-se de qualquer maneira, entre tábuas e pedaços de cartão, no meio do lixo e do abandono. Vagueavam pelas ruas em busca de uma oportunidade para trabalharem, mas não havia trabalho para todos e a pouco e pouco os rudes operários, adelgaçados pela fome, encolhidos pelo frio, andrajosos, desolados, deixaram de pedir trabalho, pediam simplesmente uma esmola. Tudo se encheu de mendigos. E depois de ladrões. Nunca se tinham visto geadas mais terríveis que as desse ano. Houve neve na capital, um espectáculo inusitado que se manteve em primeiro plano nos jornais, celebrado como uma notícia festiva, enquanto nas populações marginais os meninos de manhã estavam azuis, congelados. Nem a caridade chegava para tantos desamparados. Foi o ano do tifo exantemático. Começou como outra calamidade dos pobres e logo adquiriu características de castigo divino. Nasceu nos bairros dos indigentes, por culpa do Inverno, da desnutrição, da água suja das regueiras. Juntou-se ao desemprego e repartiu-se por todo o lado. Os hospitais não davam vencimento. Os enfermos deambulavam pelas ruas com os olhos perdidos, tiravam os piolhos e lançavam-nos às pessoas sãs. Pegou-se a praga, entrou em todos os lugares, infectou os colégios e as fábricas, ninguém podia sentir-se seguro. Todos viviam com medo, interpretando os signos que anunciavam a terrível enfermidade. Os contagiados começavam a tiritar com um frio de gelo nos ossos e aos poucos eram tomados pelo estupor. Ficavam parados como imbecis, consumidos pela febre, cheios de manchas, cagando sangue, com delírios de fogo e de naufrágio, caindo ao chão com os ossos de lã, as pernas de trapo e um gosto de bílis na boca, o corpo em carne viva, uma pústula vermelha ao lado de outra azul e outra amarela e outra negra, vomitando até as tripas e gritando a Deus que tivesse piedade e que os deixasse morrer de vez, que não aguentavam mais, que a cabeça se lhes rebentava e a alma se lhes ia em merda e espanto. Esteban propôs levar toda a família para o campo, para a preservar do contágio, mas Clara não quis ouvir falar no assunto. Estava muito ocupada a socorrer os pobres numa tarefa que não tinha princípio nem fim. Sala muito cedo e às vezes chegava perto da meia-noite. Esvaziou os armários da casa, tirou a roupa às crianças, os cobertores das camas, os casacos do marido. Tirava a comida da despensa e estabeleceu um sistema de envio com Pedro Segundo Garcia, que mandava de Las Tres Marias queijos, ovos, carnes secas, frutas, galinhas, que ela distribuía entre os seus necessitados. Adelgaçou e sentia-se magra. À noite voltou a caminhar sonâmbula. A ausência de Férula sentiu-se na casa como um cataclismo e até a Ama, que sempre tinha desejado que esse momento chegasse um dia, se comoveu. Quando começou a Primavera e Clara pôde descansar um pouco, aumentou a tendência para fugir à realidade e perder-se no sonho. Ainda que não contasse com a impecável organização da cunhada para impedir o caos da grande casa da esquina, despreocupou-se das coisas domésticas. Delegou tudo nas mãos da Ama e dos outros criados e sumiu-se no mundo das aparições e das experiências psíquicas. Os cadernos de anotar a vida complicaram-se, a sua caligrafia perdeu a elegância de convento que sempre tivera, e degenerou em traços calcados que às vezes eram tão minúsculos que não se podiam ler e outras tão grandes que três palavras enchiam a página. Nos anos seguintes juntou-se à volta de Clara e das três irmãs Mora um grupo de estudiosos de Gourdieff, de rosa-cruzes, de espiritistas e de boémios noctívagos que faziam três refeições diárias em casa e alternavam o seu tempo entre consultas peremptórias aos espíritos da mesa de pé-de-galo e à leitura dos versos do último poeta iluminado que aterrava no regaço de Clara. Esteban permitia essa invasão de extravagantes porque há muito tempo se tinha dado conta que era inútil interferir na vida da mulher. Decidiu que pelo menos os meninos varões deviam estar à margem da magia, de modo que Jaime e Nicolau foram internados num colégio inglês vitoriano, onde qualquer pretexto era bom para lhes baixar as calças e dar-lhes chibatadas no traseiro, especialmente a Jaime, que se marimbava para a família real britânica e aos doze anos estava interessado em ler Marx, um judeu que provocava revoluções em todo o mundo. Nicolau herdou o espírito aventureiro do tio-avô Marcos e a propensão da mãe, de fabricar horóscopos e decifrar o futuro, mas isso não constituía um delito grave para a rígida formação do colégio, mas apenas uma excentricidade, por isso o jovem foi muito menos castigado que seu Irmão. O caso de Blanca era diferente porque o pai não intervinha na sua educação. Considerava que o destino dela era casar-se e brilhar em sociedade, daí a faculdade de comunicar com os mortos, se ela mantinha um tom frívolo, poder ser uma atracção. Defendia que a magia, como a religião e a cozinha, era um assunto propriamente feminino e, talvez por isso, era capaz de sentir simpatia pelas três irmãs Mora. Em contrapartida, detestava os espirituados do sexo masculino quase tanto como os padres. Por seu lado, Clara andava por toda a parte com a filha agarrada às saias, convidava-a para as sessões dos membros das sociedades secretas, com os artistas misérrimos de quem era mecenas. Tal como a mãe o tinha feito com ela em tempos de mudez, levava agora Blanca para ver os pobres, carregada de presentes e consolações. - Isto serve para nos tranquilizar a consciência, minha filha - explicava a Blanca. - Mas não ajuda os pobres. Eles não necessitam de caridade mas sim de justiça. Era nesse ponto onde tinha as maiores discussões com Esteban, que tinha outra opinião a esse respeito. - Justiça! é justo que todos tenham o mesmo? Os mandriões o mesmo que os trabalhadores? Os tontos o mesmo que os inteligentes? Isso não se passa nem com os animais! Não é uma questão de ricos e de pobres, mas das mesmas oportunidades, mas essa gente não faz nenhum esforço. É muito fácil estender a mão e pedir esmola! Eu só acredito no esforço e na recompensa. Graças a esta filosofia cheguei a ter o que tenho. Nunca pedi um favor a ninguém e não cometi nenhuma desonestidade, o que prova que qualquer um pode fazê-lo. Eu estava destinado a ser um pobre infeliz escriturário de notário. Por isso não aceitarei ideias bolchevistas em minha casa. Vão fazer caridade para os asilos, se querem! Isso está muito bem; é bom para a formação das senhoras. Mas não me venham com as mesmas cretinices de Pedro Tercero Garcia, porque não vou aguentar isso! Era verdade, Pedro Tercero Garcia estava a falar de justiça em Las Tres Marias. Era o único que se atrevia a desafiar o patrão, apesar das cargas de porrada que lhe tinha dado seu pai, Pedro Segundo Garcia, sempre que o surpreendia. Desde muito novo que o rapaz fazia viagens sem autorização à aldeia para conseguir livros emprestados, ler os jornais e conversar com o mestre-escola, um comunista ardente que anos mais tarde matariam com um balázio entre os olhos. Também se escapava de noite para o bar de San Lucas, onde se reunia com sindicalistas que tinham a mania de endireitar o mundo, entre dois golos de cerveja, ou com o gigantesco e magnífico padre José Dulce Maria, um sacerdote espanhol com a cabeça cheia de ideias revolucionárias que lhe valeram ser atirado pela Companhia de Jesus para aquele canto do mundo, mas nem por isso renunciou a transformar as parábolas bíblicas em panfletos socialistas. No dia em que Esteban Trueba descobriu que o filho do seu administrador estava a introduzir literatura subversiva entre os rendeiros, chamou-o ao escritório e diante do pai deu-lhe um arraial de pancada com uma chibata de pele de cobra. - Este é o primeiro aviso, ranhoso de merda! - disse-lhe sem levantar a voz e olhando-o com olhos de fogo. - A próxima vez que te encontrar chateando as pessoas, prendo-te. Na minha propriedade não quero revoltosos, porque aqui mando eu e tenho direito de rodear-me de pessoas de quem gosto. Eu não gosto de ti, fica sabendo. Aguento-te pelo teu pai, que me serviu lealmente durante muitos anos, mas anda com cuidado, porque podes acabar muito mal. Retira-te! Pedro Tercero Garcia era parecido com o pai, moreno, de faces esculpidas em pedra, com grandes olhos tristes, cabelo negro e duro, cortado à escovinha. Tinha só dois amores, seu pai e a filha do patrão, a quem amou desde o dia em que dormiram debaixo da mesa da sala de jantar, na sua tenra infância. E Blanca não se livrou da mesma fatalidade. Cada vez que ia de férias ao campo e chegava a Las Tres Marias, no meio da poeirada provocada pelos carros carregados com a complicada bagagem, sentia o coração a bater-lhe como um tambor africano de impaciência e ansiedade. Era a primeira a saltar do veiculo e a largar a correr até casa e encontrava Pedro Tercero Garcia no mesmo sitio em que se tinham visto pela primeira vez, de pé à porta da casa, meio oculto pela sombra da porta, tímido e escuro, com as calças puídas, descalço, com olhos de velho espreitando o caminho para a ver chegar. Os dois corriam e abraçavam-se, beijavam-se, riam, davam um ao outro encontrões carinhosos, e rebolavam pelo chão, puxando os cabelos e gritando de alegria. - Pára, miúda! Deixa esse maltrapilho! - gritava a Ama procurando separá-los. - Deixa-os lá, Ama, são meninos e gostam um do outro – dizia Clara, que sabia mais. Os meninos escapavam, correndo, escondiam-se para contarem um ao outro tudo o que tinham acumulado durante esses meses de separação. Pedro entregava-lhe, envergonhado, uns animaizinhos esculpidos que tinha feito para ela, em pedaços de madeira, e em troca Blanca dava-lhe os presentes que tinha Juntado para ele: um canivete que se abria como uma flor e um pequeno íman que atraía por obra de magia os pregos enferrujados do chão. No Verão em que ela chegou com parte do conteúdo do baú dos livros mágicos do tio Marcos, tinha à volta de dez anos e ainda Pedro Tercero lia com dificuldade, mas a curiosidade e a ânsia conseguiram o que não se tinha podido obter com chibatadas. Passaram o Verão lendo, deitados entre as canas do rio, entre os pinheiros do bosque, entre as espigas dos trigais, discutindo as virtudes de Sandokan e Robin dos Bosques, a má sorte do Pirata Negro, as histórias verídicas e edificantes do Tesouro da Juventude, o malicioso significado das palavras proibidas no dicionário da Real Academia da Língua Espanhola, o sistema cardiovascular em estampas, onde podiam ver um tipo sem pele, com todas as veias e o coração exposto à vista, mas com calções. Em poucas semanas o menino aprendeu a ler com voracidade. Entraram no mundo amplo e profundo das histórias impossíveis, dos duendes, das fadas, dos náufragos que se comem uns aos outros depois de tirar à sorte, dos tigres que se deixam amestrar por amor, dos inventos fascinantes, das curiosidades geográficas e zoológicas, dos países orientais onde há génios dentro de garrafas, dragões nas grutas e princesas prisioneiras nas torres. Iam frequentemente visitar Pedro Garcia, o velho, a quem o tempo tinha gasto os sentidos. Foi ficando cego a pouco e pouco, uma película azul celeste cobria-lhe as pupilas. «São as nuvens que me estão entrando pela vista», dizia. Agradecia muito as visitas de Blanca e Pedro Tercero, que era seu neto, mas que ele já tinha esquecido. Escutava os contos que eles seleccionavam dos livros mágicos e que tinham de lhe gritar ao ouvido, porque ele também dizia que o vento lhe estava entrando pelas orelhas e por isso estava surdo. Em troca, ensinava-lhes a imunizarem-se contra as picadas dos bichos malignos e demonstrava-lhes a eficácia do seu antídoto, pondo um lacrau vivo no braço. Ensinava-os a procurar água. Tinham de segurar um pau seco com as duas mãos e caminhar tocando o solo, em silêncio, pensando na água e na sede que tem o pau, até que de repente, ao sentir a humidade, o pau começa a tremer. Tem de se cavar ali, dizia-lhes o velho, mas esclarecia que esse não era o sistema que ele empregava para localizar os poços no solo de Las Tres Marias, porque ele não necessitava do pau. Os seus ossos tinham tanta sede que ao passar pela água subterrânea, mesmo que fosse profunda, o seu esqueleto avisava-o. Mostrava-lhes as ervas do campo e fazia-os cheirá-las, prová-las, acariciá-las para conhecerem o seu perfume natural, o seu sabor e a sua textura e assim poderem identificar cada uma, segundo as suas propriedades curativas: acalmar o espirito, expulsar os fluidos diabólicos, polir os olhos, fortificar o ventre, estimular o sangue. Nesse terreno a sua sabedoria era tão grande que o médico do hospital das freiras ia visitá-lo para lhe pedir conselho. No entanto, toda a sua sabedoria não pôde curar uma cãibra da sua Pancha, que a despachou para o outro mundo. Deu-lhe a comer bosta de vaca e, como isso não resultasse, deu-lhe bosta de cavalo, envolveu-a em mantas e fê-la suar o mal até que a deixou nos ossos, deu-lhe fricções de aguardente com pólvora por todo o corpo, mas foi inútil; Pancha foi-se embora numa diarreia interminável que lhe esturgiu as carnes e a fez padecer uma sede insaciável. Vencido, Pedro Garcia pediu autorização ao patrão para a levar à aldeia numa carroça. Os dois meninos acompanharam-no. O médico do hospital das freiras examinou Pancha cuidadosamente e disse ao velho que estava perdida, que se a tivesse levado antes e não lhe tivesse provocado aquela suadeira tinha podido fazer algo por ela, mas que o seu corpo já não podia reter nenhum liquido e era como uma planta com as raízes secas. Pedro Garcia ofendeu-se e continuou negando o fracasso mesmo quando regressou com o cadáver da filha envolto numa manta, acompanhado pelos meninos assustados, e o descarregou no pátio de Las Tres Marias resmungando contra a ignorância do doutor. Enterraram-na num sitio privilegiado no pequeno cemitério junto à igreja abandonada ao pé do vulcão, pois lhe tinha dado o único filho que levou o seu nome, embora não tivesse levado apelido, e um neto, o estranho Esteban Garcia, que estava destinado a cumprir um terrível papel na história da família. Um dia o velho Pedro Garcia contou a Blanca e a Pedro Tercero o conto das galinhas que se puseram de acordo para enfrentar um raposo que se metia todas as noites no galinheiro para roubar os ovos e devorar os pintainhos. As galinhas decidiram que já estavam fartas de aguentar a prepotência do raposo, esperaram-no organizadas e, quando entrou no galinheiro, fecharam-lhe a passagem. Rodearam-no e caíram-lhe em cima às bicadas até o deixarem mais morto que vivo. - E então viu-se que o raposo escapava com o rabo entre as pernas, perseguido pelas galinhas - terminou o velho. Blanca riu-se com a história e disse que isso era impossível porque as galinhas nascem estúpidas e débeis e os raposos nascem astutos e fortes, mas Pedro Tercero riu-se. Ficou toda a tarde pensativo, ruminando o conto do raposo e das galinhas, e talvez fosse esse o instante em que o menino começou a fazer-se homem. Capítulo V Os Amantes A infância de Blanca passou-se sem grandes sobressaltos, alternando aqueles Verões quentes em Las Tres Marias, onde descobrira a força de um sentimento que crescia com ela, e a rotina da capital, semelhante à das outras meninas da sua idade e meio, apesar de que a presença de Clara punha uma nota extravagante na sua vida. Todas as manhãs aparecia a Ama com o pequeno almoço a sacudir-lhe a modorra e vigiar-lhe o uniforme, esticar-lhe as peúgas, pôr-lhe o chapéu, as luvas e o lenço, arrumar os livros na bolsa, enquanto intercalava orações murmuradas por alma dos mortos com recomendações em voz alta para que Blanca não se deixasse enganar pelas freiras. - Essas mulheres são todas umas depravadas - avisava-a - que escolhem as alunas mais bonitas, mais inteligentes e de boas famílias para as meter no convento, rapam a cabeça às noviças, pobrezinhas, e destinam-nas a perder a vida fazendo tortas para vender e cuidando velhinhos dos outros. O motorista levava a menina ao colégio, onde a primeira actividade do dia era a missa e a comunhão obrigatória. Ajoelhada no seu banco Blanca aspirava o intenso perfume do incenso e as açucenas de Maria, e padecia o suplício combinado das náuseas, da culpa e do aborrecimento. Era a única coisa de que não gostava no colégio. Gostava dos altos corredores de pedra, da limpeza imaculada do pavimento de mármore, das paredes brancas nuas, do Cristo de ferro que vigiava a entrada. Era uma criança romântica e sentimental, com tendência para a solidão, de poucas amigas, capaz de emocionar-se até às lágrimas quando floresciam as rosas no jardim, quando aspirava o ténue odor a pano e sabão das freiras que se inclinavam sobre as tarefas, quando se deixava ficar para trás para sentir o silêncio triste das aulas vazias. Passava por tímida e melancólica. Só no campo, com a pele dourada pelo sol e a barriga cheia de fruta morna, correndo com Pedro Tercero pelos prados, era risonha e alegre. A mãe dizia que essa era a verdadeira Blanca e que a outra, a da cidade, era uma Blanca em hibernação. Devido à agitação constante que reinava na grande casa da esquina, ninguém, excepto a Ama, deu conta de que Blanca estava a tornar-se uma mulher. Entrou de súbito na adolescência. Tinha herdado dos Trueba o sangue espanhol e árabe, o porte senhoril, a expressão soberba, a pele azeitonada e os olhos escuros dos seus genes mediterrânicos, mas tingidos pela herança da mãe, de quem tirou a doçura que jamais tivera algum Trueba. Era uma criança tranquila que se entretinha sozinha, estudava, brincava com as bonecas e não manifestava a menor inclinação natural pelo espiritismo da mãe ou pelas iras do pai. A família dizia, em tom de graça, que era a única pessoa normal em várias gerações e, na verdade, parecia ser um prodígio de equilíbrio e serenidade. Por volta dos treze anos começou-se-lhe a desenvolver o peito, a cintura a estreitar-se-lhe, adelgaçou e esticou como uma planta adubada. A Ama apanhou-lhe o cabelo num carrapito, levou-a a comprar o primeiro corpete, o primeiro par de meias de seda, o primeiro vestido de mulher, e uma colecção de toalhas pequeninas para aquilo que ela chamava a demonstração. Entretanto, a mãe continuava a fazer dançar as cadeiras por toda a casa, tocando Chopin com o piano fechado e declamando os belíssimos versos sem rima, argumento nem lógica de um poeta jovem que tinha sido acolhido em casa, de quem se começava a falar por todo o lado, sem notar as mudanças que se produziam na filha, sem ver o uniforme do colégio com as costuras rebentadas, nem se dar conta que a cara de fruta se tinha subtilmente transformado num rosto de mulher, porque Clara vivia mais atenta à aura e aos fluidos que aos quilos ou centímetros. Um dia viu-a entrar na sala de costura com o vestido de sair e admirou-se de que aquela rapariga alta e morena fosse a sua pequena Blanca. Abraçou-a, encheu-a de beijos e avisou-a de que em breve teria a menstruação. - Sente-se e eu explico-lhe o que isso é - disse Clara. - Não me mace, mãe, já vai fazer um ano que me vem todos os meses - riu Blanca. A relação de ambas não sofreu grandes mudanças com o desenvolvimento da rapariga, porque estava baseada nos sólidos princípios da total aceitação mútua e na capacidade para gozarem juntas quase todas as coisas da vida. Nesse ano, o Verão fez-se anunciar cedo, com um calor seco e abafado que cobriu a cidade com uma reverberação de sonho mau, por isso adiaram um par de semanas a viagem a Las Tres Marias. Como acontecia todos os anos, Blanca esperou ansiosamente o momento de ver Pedro Tercero e, como todos os anos, ao descer do carro a primeira coisa que fez foi procurá-lo com o olhar no lugar de sempre. Descobriu a sua sombra escondida no umbral da porta e saltou do veículo, precipitando-se ao seu encontro com a ânsia de tantos meses a sonhar com ele, mas viu, surpreendida, que o menino dava meia volta e saía escapando-se. Blanca andou toda a tarde percorrendo os lugares onde se reuniam, perguntou por ele, chamou-o aos gritos, procurou-o em casa de Pedro Garcia, o velho, e, por último, ao cair da noite deitou-se vencida, sem comer. Na enorme cama de bronze, dorida e admirada, afundou a cara na almofada e chorou desconsoladamente. A Ama levou-lhe um copo de leite com mel e adivinhou logo a causa do seu amuo. - Alegro-me! - disse com um sorriso torcido. - Já não tens idade para brincar com esse ranhoso cheio de pulgas! Meia hora mais tarde, Clara entrou para a beijar e encontrou-a soluçando os últimos estertores de um pranto melancólico. Por um momento Clara deixou de ser um anjo distraído, colocando-se à altura dos simples mortais que aos catorze anos sofrem o primeiro mal de amor. Quis perguntar, mas Blanca era muito orgulhosa ou já demasiado mulher e não lhe deu explicações, de modo que Clara se limitou a sentar-se um pouco na cama e acariciá-la até que se acalmou. Nessa noite, Blanca dormiu mal e despertou ao amanhecer rodeada pelas sombras do grande quarto. Ficou olhando as ornamentações do tecto até que ouviu o canto do galo e então levantou-se, abriu as cortinas e deixou entrar a luz suave do nascer do Sol e os primeiros ruídos do mundo. Aproximou-se do espelho do armário e olhou-se longamente. Tirou a camisa e observou o corpo pela primeira vez em pormenor, compreendendo que todas aquelas mudanças eram a causa do seu amigo ter fugido. Sorriu com um novo e delicado sorriso de mulher. Vestiu roupa velha do Verão passado, que quase não lhe servia, envolveu-se numa manta e saiu em bicos de pés para não despertar a família. Lá fora o campo sacudia-se da modorra da noite e os primeiros raios de Sol cruzavam como sabres os picos da cordilheira, aquecendo a terra e evaporando o orvalho numa fina espuma branca que apagava os contornos das coisas e fazia da paisagem uma visão de sonho. Blanca começou a andar em direcção do rio. Tudo estava ainda calmo, os seus passos esmagavam as folhas caídas e os ramos secos, produzindo um leve crepitar, único ruído naquele vasto espaço adormecido. Sentiu que as alamedas imprecisas, os trigais dourados e os longínquos cerros arroxeados, perdendo-se no céu translúcido da manhã, eram uma recordação antiga na sua memória, algo que antes tinha visto exactamente assim e que nesse instante já o tinha vivido. A finíssima chuva da noite tinha empapado a terra e as árvores, sentiu a roupa ligeiramente húmida e os sapatos frios. Respirou o perfume da terra molhada, das flores apodrecidas, do húmus, que lhe despertava um prazer desconhecido nos sentidos. Blanca chegou ao rio e viu o amigo de infância sentado no sítio onde tantas vezes se tinham encontrado. Nesse ano, Pedro Tercero não tinha crescido como ela, pelo contrário, continuou o mesmo menino delgado, pançudo e moreno, com uma sábia expressão de ancião nos olhos negros. Ao vê-la, pôs-se de pé e ela calculou que media meia cabeça mais que ele. Olharam-se desconcertados, sentindo pela primeira vez que eram quase estranhos. Por um tempo que pareceu infinito, ficaram imóveis, acostumando-se às mudanças e às novas distâncias, mas então piou um pardal e tudo voltou a ser como no Verão anterior. Tornaram a ser dois meninos que correm, se abraçam e riem, caem no chão, se rebolam contra os calhaus, murmurando os seus nomes sem se cansar, felizes por estarem juntos uma vez mais. Por fim acalmaram-se. Ela tinha o cabelo cheio de folhas secas, que ele tirou uma por uma. - Vem, quero mostrar-te uma coisa - disse Pedro Tercero. Levou-a pela mão. Caminharam, saboreando aquele amanhecer do mundo, arrastando os pés no barro, apanhando talos tenros para lhes sugar a seiva, olhando-se e sorrindo, sem falar, até que chegaram a um prado afastado. O Sol aparecia por cima do vulcão, mas o dia ainda não acabara de se instalar e a terra bocejava. Pedro disse-lhe para se deitar no chão e guardar silêncio. Rastejaram aproximando-se dos matos, deram uma pequena volta e então Blanca viua. Era uma formosa égua baia, dando à luz sozinha na colina. Os meninos, imóveis, fazendo por que não se ouvisse nem a sua respiração, viram-na arquejar e esforçar-se até que apareceu a cabeça do potrozinho e, em seguida, depois de bastante tempo, o resto do corpo. O animalzinho caiu no chão e mãe começou a lambê-lo, deixando-o limpo e brilhante como madeira encerada, animando-o com o focinho para que tentasse erguer-se. O potrozinho tentou pôr-se em pé, mas dobraram-se-lhe as frágeis pernas de recém-nascido e ficou deitado, olhando a mãe com ar desvalido, enquanto ela relinchava saudando o Sol da manhã. Blanca sentiu a felicidade estalando no peito e brotarem-lhe as lágrimas nos olhos. - Quando for grande, vou-me casar contigo e vamos viver aqui, em Las Tres Marias - disse num sussurro. Pedro ficou a olhá-la com expressão de velho triste e negou com a cabeça. Era ainda muito mais pequeno que ela, mas já conhecia o seu lugar no mundo. Também sabia que amaria aquela menina durante toda a sua existência, que esse amanhecer perduraria na sua recordação e que seria o último que veria no momento de morrer. Passaram esse Verão oscilando entre a infância, que ainda os retinha, e o despertar do homem e da mulher. Por momentos corriam como crianças, fazendo esvoaçar galinhas e tresmalhando vacas, fartavam-se de leite morno acabado de ordenhar e ficavam com bigodes de espuma, roubavam pão saído do forno, trepavam às árvores para construir casinhas com ramos. Outras vezes escondiam-se nos lugares mais secretos e densos do bosque, faziam camas de folhas e brincavam a que estavam casados, acariciando-se até ficarem extenuados. Não tinham perdido a inocência para tirarem a roupa sem curiosidade e banhar-se nus no rio, como o tinham feito sempre, mergulhando na água fria e deixando que a corrente os arrastasse sobre as pedras lustrosas do fundo. Mas havia coisas que já não partilhavam como dantes. Aprenderam a ter vergonha. Já não faziam competição para ver quem fazia o maior charco de urina e Blanca não lhe falou daquela matéria escura que lhe manchava as cuecas uma vez por mês. Sem que ninguém o dissesse, deram-se conta de que não podiam ter familiaridades diante das outras pessoas. Quando Blanca vestia a roupa de senhora e se sentava à tarde no terraço a beber limonada com a família, Pedro Tercero observava-a de longe, sem se aproximar. Começaram a esconder-se para as suas brincadeiras. Deixaram de andar de mãos dadas à vista dos adultos e ignoravam-se para não atrair a sua atenção. A Ama respirou mais tranquila, mas Clara começou a observá-los mais cuidadosamente. Terminaram as férias e os Trueba regressaram à capital carregados de frascos de doces, compotas, caixotes de fruta, queijos, galinhas e coelhos em escabeche, cestos com ovos. Enquanto arrumavam tudo nos carros que os levariam ao comboio, Blanca e Pedro Tercero esconderam-se no celeiro para se despedirem. Nesses três meses tinham chegado a amar-se com aquela paixão arrebatada que os transtornou durante o resto das suas vidas. Com o tempo, esse amor tornou-se mais invulnerável e persistente, mas tinha já, então, a mesma profundidade e certeza que o caracterizou depois. Sobre um monte de grão, aspirando o aromático pó do celeiro, à luz dourada e difusa da manhã que passava por entre as tábuas, beijaram-se por todo o lado, lamberam-se, morderam-se, chuparam-se, soluçaram e beberam as lágrimas dos dois, juraram-se amor eterno e combinaram um código secreto que lhes serviria para se comunicarem durante os meses de separação. Todos os que viveram aquele momento dizem que foi por volta das oito da noite quando apareceu Férula, sem que nada fizesse prever a sua chegada. Todos puderam vê-la com a blusa engomada, o molho de chaves à cintura e o carrapito de solteirona, tal como a tinham visto sempre em casa. Entrou pela porta da sala de jantar no momento em que Esteban estava a trinchar o assado e reconheceram-na imediatamente, apesar de não a verem fazia seis anos e estar muito pálida e muito mais velha. Era um sábado e os gémeos, Jaime e Nicolau, tinham saído do internato para passar o fim-de-semana com a família, de modo que também estavam ali. O seu testemunho é muito importante, porque eram os únicos membros da família que viviam afastados por completo da mesa de pé-de-galo, preservados da magia e do espiritismo pelo rígido colégio inglês. Primeiramente, sentiram um frio súbito na sala de jantar e Clara mandou fechar as janelas, porque pensou que era uma corrente de ar. Logo a seguir ouviram o tilintar das chaves e quase em seguida abriu-se a porta e apareceu Férula, silenciosa e com uma expressão distante, ao mesmo tempo que a Ama entrava pela porta da cozinha com a travessa da salada. Esteban Trueba ficou com a faca e o garfo de trinchar no ar, paralisado pela surpresa, e os três meninos gritaram «tia Férula!» quase em uníssono. Blanca levantou-se para ir ao seu encontro, mas Clara, que se sentava ao seu lado, estendeu a mão e segurou-a por um braço. Na realidade, Clara foi a única que se deu conta, ao primeiro olhar, do que se estava a passar, devido à sua grande familiaridade com os assuntos sobrenaturais, apesar de que nada no aspecto da cunhada denunciasse o seu verdadeiro estado. Férula deteve-se a um metro da mesa, olhou-os a todos com olhos vazios e indiferentes e logo avançou para Clara, que se pôs de pé, sem nenhum movimento para se aproximar, mas fechou os olhos e começou a respirar agitadamente, como se estivesse incubando um dos seus ataques de asma. Férula aproximou-se dela, pôs-lhe uma mão em cada ombro e deu-lhe um breve beijo na testa. Na sala de jantar só se ouvia a respiração ofegante de Clara e o tilintar metálico das chaves na cintura de Férula. Depois de beijar a cunhada, Férula passou por ela e saiu por onde tinha entrado, fechando a porta nas costas com suavidade. Na sala de jantar ficou a família imóvel, como se fosse um pesadelo. A Ama começou logo a tremer tanto que lhe caíram as colheres da salada e o barulho da prata a bater contra o parquet (Em francês no texto. (N. T.)) sobressaltou todos. Clara abriu os olhos. Continuava a respirar com dificuldade e calam-lhe lágrimas pela face e pelo pescoço, manchando-lhe a blusa. - Férula morreu - anunciou. Esteban largou os talheres de trinchar o assado sobre a toalha e saiu a correr da sala de jantar. Foi até à rua chamando a irmã, mas não encontrou nem rasto dela. Entretanto, Clara mandou um criado buscar casacos e quando o esposo regressou estava a vestir o seu e tinha as chaves do automóvel na mão. - Vamos a casa do padre António - disse. Fizeram o caminho em silêncio. Esteban conduzia com o coração oprimido, procurando a antiga paróquia do padre António nesses bairros de pobres onde fazia muitos anos não punha os pés. O sacerdote estava a pregar um botão na sotaina puída quando chegaram com a noticia de que Férula tinha morrido. - Não pode ser! - exclamou. - Estive com ela há dois dias e estava de boa saúde e com boa disposição. - Leve-nos a sua casa, padre, por favor - suplicou Clara. - Eu sei porque lho digo. Está morta. Em face da insistência de Clara, o padre António acompanhou-os. Durante aqueles anos de solidão, ela tinha vivido num daqueles bairros de lata onde ia rezar o terço contra a vontade dos beneficiados nos tempos da sua juventude. Tiveram de deixar o carro a vários quarteirões de distância, porque as ruas se foram tornando mais e mais estreitas, até que compreenderam que estavam feitas só para andar a pé ou de bicicleta. Meteram-se por elas caminhando, evitando os charcos de água suja que transbordava das regueiras, contornando o lixo empilhado em montões onde os gatos esgatanhavam como sombras. O bairro era uma comprida rua de casas arruinadas, todas iguais, pequenas e humildes vivendas de cimento, com uma só porta e duas janelas pintadas de cor parda, desbotadas, comidas pela humidade, com arames estendidos através da rua, onde de dia se pendurava roupa ao sol, mas a essa hora da noite, vazios, mexiam-se imperceptivelmente. Ao centro da ruela havia um único chafariz para abastecer as famílias que viviam ali e só os faróis iluminaram o corredor entre as casas. O padre António saudou uma velha que estava junto do chafariz à espera que se enchesse um balde com o jorro miserável que sala da torneira. - Viu a senhora Férula? - perguntou. - Deve estar em casa, padre. Não a vi nos últimos dias - disse a velha. O padre António apontou uma das vivendas, igual às outras, triste, descascada e suja, mas a única que tinha dois vasos, pendurados junto da porta, onde cresciam uns pequenos tufos de cardeais, a flor do pobre. O sacerdote bateu à porta. - Podem entrar! - gritou a velha do chafariz. - A senhora nunca põe a chave na porta. Aí não há nada que roubar! Esteban abriu a porta chamando a irmã, mas não se atreveu a entrar. Clara foi a primeira a passar o umbral. Dentro estava escuro e veio-lhes ao encontro o inconfundível aroma de lavanda e de limão. O padre António acendeu um fósforo. A débil chama abriu um círculo de luz na penumbra, mas antes que pudessem avançar ou dar conta do que os rodeava apagou-se. - Esperem aqui - disse o padre. - Eu conheço a casa. Avançou às apalpadelas e ao fim de pouco tempo acendeu uma vela. A sua figura destacou-se grotescamente e viram o seu rosto deformado pela luz que lhe dava por baixo flutuando a meia altura, enquanto a gigantesca sombra bailava contra as paredes. Clara descreveu esta cena com minúcia no diário, pormenorizando com cuidado os dois quartos escuros, cujas paredes estavam manchadas pela humidade, a pequena casa de banho suja e sem água corrente, a cozinha onde havia sobras de pão velho e um tacho com um pouco de chá. O resto da vivenda de Férula pareceu a Clara congruente com o pesadelo que tinha começado quando a sua cunhada apareceu na sala de jantar da grande casa da esquina para se despedir. Deu-lhe a impressão de ser o armazém de um vendedor de roupa usada ou os bastidores de uma mísera companhia de teatro em digressão. De pregos nas paredes estavam pendurados trajos antiquados, boás de penas, esquálidos pedaços de papel, colares de pedras falsas, chapéus que se tinham deixado de usar há meio século, saiotes desbotados com as rendas desfeitas, vestidos que tinham sido ostentosos e cujo brilho já não existia, inexplicáveis casacos de almirante e casulas de bispo, tudo misturado numa irmandade grotesca, onde se anichava o pó de anos. Pelo chão havia uma confusão de sapatos de cetim, bolsas de debutantes, cinturões de bijuteria, suspensórios e até uma brilhante espada de cadete militar. Viu cabeleiras tristes, postiços com enfeites, frascos vazios e um não mais acabar de coisas impossíveis, semeadas por todos os lados. Uma porta estreita separava os dois únicos quartos. No outro, jazia Férula na sua cama, engalanada como rainha austríaca, com um vestido de veludo roído pela traça, saiotes de tafetá amarelo e, na cabeça, bem enfiada, brilhava uma incrível peruca frizada de cantora de ópera. Ninguém estava com ela, ninguém soube da sua agonia e calcularam que tinha morrido há muitas horas, porque os ratos começavam já a mordiscar-lhe os pés e a devorar-lhe os dedos. Estava magnifica na sua desolação de rainha e tinha no rosto a expressão doce e serena que nunca tivera na sua existência de pesadelo. - Gostava de vestir-se com roupa usada que conseguia em segunda mão e apanhava nas lixeiras, pintava-se e punha estas cabeleiras, mas nunca fez mal a ninguém, pelo contrário, até ao fim dos seus dias rezava o terço para salvação dos pecadores - explicou o padre António. - Deixem-me sozinha com ela - disse Clara com firmeza. Os dois saíram para a viela, onde começavam já a juntar-se os vizinhos. Clara tirou o casaco de lã branca e arregaçou as mangas, aproximou-se da cunhada, tirou-lhe com suavidade a peruca e viu que ela estava quase calva, velha e desvalida. Beijou-a na testa tal como ela a tinha beijado poucas horas antes na sala de jantar de sua casa e em seguida procedeu com toda a calma, a improvisar os ritos de morte. Despiu-a, lavou-a, ensaboou-a meticulosamente, sem esquecer nenhum cantinho, friccionou-a com água-de-colónia, pôs-lhe pó de talco, escovou a meia dúzia de cabelos amorosamente, vestiu-a com os mais extravagantes e elegantes andrajos que encontrou, pôs-lhe a cabeleira de soprano, retribuiulhe na morte os infinitos serviços que Férula lhe tinha prestado em vida. Enquanto trabalhava, lutando contra a asma, falava-lhe de Blanca, que já era uma mulherzinha, dos gémeos, da grande casa da esquina, do campo, «e se visses como te sentimos a menos, cunhada, a falta que me fazes para cuidar desta família, já sabes que eu não sirvo para as tarefas da casa, os rapazes estão insuportáveis, em compensação Blanca é uma menina adorável, e as hortênsias que tu plantaste com a tua própria mão em Las Tres Marias, puseram-se maravilhosas, há algumas azuis, porque pus moedas de cobre na terra adubada, para que rebentassem com essa cor, é um segredo da natureza, e todas as vezes que as ponho nas jarras recordo-me de ti, mas também me recordo de ti quando não há hortênsias, recordo-me sempre, Férula, porque a verdade é que desde que saíste de ao pé de mim ninguém mais me deu tanto amor». Acabou de a arranjar, ficou um pouco falando com ela e acariciando-a e depois chamou o marido e o padre António, para tratarem do enterro. Numa caixa de bolachas encontraram intactos os envelopes com o dinheiro que Esteban tinha enviado mensalmente a sua irmã durante aqueles anos. Clara deu-os ao sacerdote para as suas obras piedosas, convicta de que esse era o destino que Férula pensava dar-lhes de qualquer modo. O padre ficou ao pé da morta para que os ratos não lhe faltassem ao respeito. Era cerca da meia-noite quando saíram. À porta tinham-se juntado os vizinhos do bairro para comentar a notícia. Tiveram de abrir passagem afastando os curiosos e espantando os cães que farejava n no meio das pessoas. Esteban afastou-se a grandes passadas levando Clara pelo braço quase de rastos, sem dar atenção à água suja que salpicava as impecáveis calças cinzentas do alfaiate inglês. Estava furioso porque a irmã, mesmo depois de morta, conseguia fazê-lo sentir-se culpado, como quando era uma criança. Recordou a sua infância, quando ela o rodeava com as suas solicitudes obscuras, envolvendo-o em dividas de gratidão tão grandes que não conseguiria pagá-las em todos os dias da sua vida. Tornou a sentir o sentimento de indignidade que frequentemente o atormentava na sua presença e a detestar o seu espírito de sacríficio, a sua severidade, a sua vocação para a pobreza e a sua inabalável castidade, que ele sentia como uma acusação pela sua natureza egoísta, sensual e ansiosa de poder. «Que o Diabo te leve, maldita!» disse entredentes, negando-se a admitir, nem no mais íntimo do coração, que sua mulher tão-pouco chegou a pertencer-lhe depois de ele ter posto Férula fora de casa. - Porque vivia assim, se lhe sobrava dinheiro? – gritou Esteban. - Porque lhe faltava tudo o resto - replicou Clara docemente. Durante os meses que estiveram separados, Blanca e Pedro Tercero trocaram por correio missivas inflamadas, que ele assinava com nome de mulher e ela escondia logo que chegavam. A Ama conseguiu interceptar uma ou duas, mas não sabia ler e, mesmo que soubesse, o código secreto impedia-a de inteirar-se do conteúdo, afortunadamente para ela, porque o seu coração não teria resistido. Blanca passou o Inverno tecendo um poncho com lã escocesa na aula de lavores do colégio, pensando nas medidas do rapaz. De noite dormia abraçada ao poncho, aspirando o odor da lã e sonhando que era ele quem dormia na sua cama. Pedro Tercero, por sua vez, passou o Inverno compondo canções na guitarra para cantar a Blanca e a esculpir a sua imagem em quanto bocado de madeira lhe caía nas mãos, sem poder afastar a recordação angélica da rapariga, com aqueles tormentos que lhe ferviam no sangue, lhe abrandavam os ossos, lhe estavam fazendo mudar de voz e a sair pêlos na cara. Debatia-se inquieto entre as exigências do corpo, que se transformava no de um homem, e a doçura de um sentimento que ainda estava contido pelos jogos inocentes da infância. Ambos esperaram a chegada do Verão com uma impaciência dolorosa e, finalmente, quando este chegou e tornaram a encontrar-se, o poncho que Clara tinha tecido não entrava a Pedro Tercero pela cabeça, porque nesses meses tinha deixado para trás a meninice e alcançado as proporções de homem adulto, e as ternas canções de flores e amanheceres que ele tinha composto para ela soaram-lhe ridículas, porque tinha o porte de uma mulher e as suas urgências. Pedro Tercero continuava a ser delgado, com o cabelo teso e os olhos tristes, mas ao mudar a voz adquiriu uma tonalidade rouca e apaixonada com a qual seria conhecido mais tarde, quando cantasse a revolução. Falava pouco e era escuro e rude no trato, mas terno e delicado com as mãos, tinha grandes dedos de artista com que esculpia, arrancava lamentos das cordas da guitarra e desenhava com a mesma facilidade com que segurava as rédeas de um cavalo, brandia o machado para cortar lenha ou guiava o arado. Era o único em Las Tres Marias que enfrentava o patrão. Seu pai, Pedro Segundo, disse-lhe mil vezes que não olhasse o patrão nos olhos, que não lhe respondesse, que não se metesse com ele, e no seu desejo de protegê-lo, chegou a dar-lhe grandes sovas para lhe baixar a grimpa. Mas o filho era rebelde. Aos dez anos já sabia tanto como a mestra-escola de Las Tres Marias e aos doze insistia em fazer a viagem ao liceu da povoação, a cavalo ou a pé, saindo da casinha de tijolos às cinco da manhã, chovesse ou trovejasse. Leu e releu mil vezes os livros mágicos dos baús encantados do tio Marcos, e continuou alimentando-se com outros que lhe emprestavam os sindicalistas do bar e o padre José Dulce Maria, que também o ensinou a cultivar a sua habilidade natural para fazer versos e para traduzir em canções as suas ideias. - Meu filho, a Santa Madre Igreja está à direita, mas Jesus esteve sempre à esquerda - dizia-lhe enigmaticamente entre dois golos de vinho de missa com que celebrava as visitas de Pedro Tercero. Assim foi que um dia Esteban Trueba, que estava descansando no terraço depois do almoço, o ouviu cantar qualquer coisa de galinhas organizadas que se uniam para enfrentar o raposo e o venciam. Chamou-o. - Quero ouvir-te. Canta, para ver! - ordenou-lhe. Pedro Tercero pegou na guitarra com um gesto apaixonado, acomodou a perna numa cadeira e dedilhou as cordas. Ficou-se a olhar fixamente o patrão enquanto a sua voz de veludo se elevava apaixonada na calmaria da sesta. Esteban Trueba não era parvo e compreendeu o desafio. - Aí está! Vejo que a coisa mais estúpida se pode dizer cantando - grunhiu. - Aprende a cantar canções de amor! - Eu gosto, patrão. A união faz a força, como diz o padre José Dulce Maria. Se as galinhas podem enfrentar o raposo, o que é que detém os homens? Pegou na guitarra e saiu arrastando os pés, sem que o outro discorresse o que lhe podia dizer, apesar de já ter a raiva à flor dos lábios e começar-lhe a subir a tensão. Desde esse dia, Esteban Trueba teve-o na mira, observava-o, desconfiava. Tratou de impedir que fosse ao liceu, inventando tarefas de homem crescido, mas o rapaz levantava-se mais cedo e deitava-se mais tarde para as cumprir. Foi nesse ano que Esteban o açoitou com a chibata diante do seu pai porque levou aos rendeiros as novidades que andavam a circular entre os sindicalistas do povo, ideias de domingos, de feriados, de salário mínimo, de reforma e serviços médicos, de licença maternal para as mulheres grávidas, de votar sem pressões e, o mais grave, a ideia de uma organização camponesa que pudesse enfrentar os patrões. Nesse Verão, quando Blanca foi passar férias a Las Tres Marias, esteve a pontos de não o reconhecer, porque media quinze centímetros mais e tinha deixado muito para trás o menino barrigudo que compartilhou com ela todos os Verões da sua infância. Ela desceu do carro, esticou a saia e pela primeira vez não correu a abraçá-lo, fez-lhe apenas uma inclinação de cabeça à maneira de saudação, embora com os olhos dissesse o que os outros não deviam ouvir e que, por outro lado, já lhe tinha dito na sua impudica correspondência em código. A Ama observou a cena pelo canto do olho e sorriu em ar de gozo. Ao passar em frente de Pedro Tercero, fez-lhe uma careta: - Aprende, ranhoso, a meter-te com os da tua classe e não com senhoras - gracejou entredentes. Nessa noite Blanca jantou com toda a família na sala de jantar o ensopado de galinha com que sempre os recebiam em Las Tres Marias, sem que se vislumbrasse nela nenhuma ansiedade durante a prolongada sobremesa em que o pai bebia conhaque e falava sobre vacas importadas e minas de ouro. Esperou que a mãe fizesse sinal de retirar-se, parou calmamente, desejou as boas-noites a cada um dos presentes e foi para o quarto. Pela primeira vez na sua vida, fechou a porta à chave. Sentou-se na cama sem tirar a roupa e esperou no escuro até que se calassem as vozes dos gémeos gritando no quarto ao lado, os passos dos criados, as portas, os ferrolhos e a casa se acomodou no sono. Então abriu uma janela e saltou, caindo sobre as matas de hortênsias que muito tempo atrás a tia Férula tinha plantado. A noite estava clara, ouviam-se os grilos e os sapos. Respirou profundamente e o ar levou o cheiro doce dos pêssegos que secavam no pátio para as conservas. Esperou que os olhos se acostumassem à escuridão e depois começou a andar, mas não pôde seguir mais longe porque ouviu o ladrar furioso que os cães de guarda soltavam na noite. Eram quatro mastins que se tinham criado amarrados com correntes e que passavam o dia encerrados, que ela nunca tinha visto de perto e sabia que a não podiam reconhecer. Por um instante sentiu que o pânico a fazia perder a cabeça e esteve a ponto de começar a gritar, mas então lembrou-se de que Pedro Garcia, o velho, lhe tinha dito que os ladrões andavam nus para não serem atacados pelos cães. Sem hesitar despiu a roupa com toda a rapidez que os nervos lhe permitiam, pô-la debaixo do braço e caminhou com passo tranquilo, rezando para que os animais não lhe farejassem o medo. Viu-os correr ladrando e continuou sem perder o ritmo da marcha. Os cães aproximaram-se, rosnando desconcertados, mas ela não parou. Um deles, mais audaz que os outros, aproximou-se a cheirá-la. Recebeu o bafo morno da sua respiração nas costas, mas não fez caso. Continuaram a rosnar e a ladrar por algum tempo, acompanharam-na um bocado e, por fim, fartos, deram meia volta. Blanca suspirou aliviada e deu-se conta que estava a tremer e coberta de suor, teve de apoiar-se numa árvore e esperou até que passasse a fadiga que tinha posto os seus joelhos em papas. Depois vestiu-se a toda a pressa e deitou a correr em direcção ao rio. Pedro Tercero esperava-a no mesmo sitio onde se tinham encontrado no Verão anterior e onde muitos anos antes Esteban Trueba se tinha apoderado da humilde virgindade de Pancha Garcia. Ao ver o rapaz, Blanca corou violentamente. Durante os meses em que tinham estado separados, ele amadureceu no duro oficio de fazer-se homem e ela, por seu lado, esteve recolhida entre as paredes do seu quarto e do colégio das freiras, preservada das durezas da vida, alimentando sonhos românticos com varas de tecer e lã escocesa, mas a imagem dos seus sonhos não coincidia com aquele jovem alto que se aproximava murmurando o seu nome. Pedro Tercero estendeu a mão e tocou-lhe o pescoço junto da orelha. Blanca sentiu algo quente que lhe corria pelos ossos e lhe abanava as pernas, fechou os olhos e abandonou-se. Ele puxou-a a si e rodeou-a com os braços, ela afundou o nariz no peito daquele homem que não conhecia, tão diferente do menino magro com quem se acariciava até ficar extenuada poucos meses antes. Aspirou-lhe o odor novo, esfregou-se contra a sua pele áspera, apalpou aquele corpo enxuto e forte e sentiu uma paz grandiosa e completa, em que nada se parecia com a agitação que se havia apoderado dele. Procuraram-se com as línguas, como o faziam antes, embora parecesse uma caricia acabada de inventar, caíram ajoelhados beijando-se com desespero e rebolaram sobre o leito macio da terra húmida. Descobriram-se pela primeira vez e não tinham nada que dizer um ao outro. A Lua percorreu todo o horizonte, mas eles não a viram, porque estavam ocupados em explorar a sua mais profunda intimidade, metendo-se cada um na pele do outro, incansavelmente. A partir dessa noite, Blanca e Pedro Tercero encontravam-se sempre no mesmo lugar à mesma hora. De dia ela bordava, lia e pintava insípidas aguarelas nos arredores da casa, ante o olhar feliz da Ama, que por fim podia dormir tranquila. Clara, por sua vez, pressentia que algo de estranho estava sucedendo, porque podia ver uma nova cor na aura da filha e pensava adivinhar a causa. Pedro Tercero fazia as suas lides habituais no campo e não deixou de ir à povoação ver os amigos. Ao cair da noite estava morto de fadiga, mas a perspectiva de se encontrar com Blanca devolvia-lhe a força. Não era em vão que tinha quinze anos. Assim passaram todo o Verão e muitos anos mais tarde os dois recordariam essas noites veementes como a melhor época das suas vidas. Entretanto, Jaime e Nicolau aproveitavam as férias fazendo todas aquelas coisas que estavam proibidas no internato britânico, gritando até esganiçar-se, lutando sob qualquer pretexto, transformados em dois imundos ranhosos, maltrapilhos, com os joelhos cheios de crostas e a cabeça cheia de piolhos, fartos de fruta apanhada de fresco, de sol e de liberdade. Saiam de manhãzinha e não voltavam a casa até ao anoitecer, ocupados em caçar coelhos à pedrada, galopar a cavalo até perder o fôlego e espiar as mulheres que ensaboavam a roupa no rio. Assim passaram três anos, até que o terramoto mudou as coisas. No fim dessas férias, os gémeos regressaram à capital antes do resto da família, acompanhados pela Ama, os criados da cidade e grande parte da bagagem. Os rapazes iam directamente para o colégio enquanto a Ama e os outros empregados preparavam a grande casa da esquina para a chegada dos patrões. Blanca ficou com os pais no campo uns dias mais. Foi então que Clara começou a ter pesadelos, a caminhar sonâmbula pelos corredores e a despertar aos gritos. Durante o dia andava como que imbecilizada, vendo sinais premonitórios no comportamento dos animais: que as galinhas não põem o seu ovo diário, que as vacas andam espantadas, que os cães uivam à morte e as ratazanas, as aranhas e os vermes saem dos seus esconderijos, que os pássaros abandonam os ninhos e estão a partir em bandos, enquanto as suas crias gritam de fome nas árvores. Olhava obsessivamente a ténue coluna de fumo branco do vulcão, observando as mudanças na cor do céu. Blanca preparou-lhe infusões calmantes e banhos mornos e Esteban recorreu à antiga caixinha de pílulas homeopáticas para tranquilizar, mas os sonhos continuaram. - A terra vai tremer! - dizia Clara, cada vez mais pálida e agitada. - Sempre tremeu, Clara, por Deus - respondia Esteban. - Desta vez será diferente. Haverá dez mil mortos. - Não há tanta gente em todo o pais - gracejava ele. Começou o cataclismo às quatro da madrugada. Clara despertou pouco tempo antes com um pesadelo apocalíptico de cavalos rebentados, vacas arrebatadas pelo mar, gente rastejando debaixo das pedras e cavernas abertas no chão por onde se afundavam casas inteiras. Levantou-se lívida de terror e correu ao quarto de Blanca. Mas Blanca, como todas as noites, tinha fechado à chave a porta e deslizado pela janela em direcção ao rio. Nos últimos dias, antes de voltar à cidade, a paixão do Verão adquiriu características dramáticas, porque na iminência de uma nova separação, os jovens aproveitavam todos os momentos possíveis para se amarem desenfreadamente. Passavam a noite no rio, imunes ao frio e ao cansaço, entregando-se com a força do desespero, e só ao vislumbrar os primeiros raios do amanhecer Blanca regressava a casa entrando pela janela do quarto, onde chegava justamente a tempo de ouvir cantar os galos. Clara foi até à porta do quarto, quis abri-la mas estava trancada. Bateu e como ninguém respondesse saiu correndo, deu meia volta à casa e viu então a janela aberta de par em par e as hortênsias de Férula todas pisadas. Num instante compreendeu a causa da cor da aura de Blanca, as suas olheiras, o fastio, a sonolência matinal e as aguarelas vespertinas. Nesse mesmo momento começou o terramoto. Clara sentiu que o solo se sacudia e não pôde aguentar-se em pé. Caiu de joelhos. As telhas desprenderam-se e choveram à sua volta com estrépito ensurdecedor. Viu a parede de adobe da casa quebrar-se como se tivesse levado uma machadada de frente, a terra abrir-se, tal como tinha visto em sonhos e uma enorme fenda aparecer na sua frente, engolindo na passagem os galinheiros, a empena do lavadouro e parte do estábulo. O tanque de água escorregou e caiu ao chão espalhando mil litros de água em cima das galinhas sobreviventes que esvoaçavam desesperadas. Ao longe, o vulcão deitava fogo e fumo como um dragão furioso. Os cães soltaram-se das correntes e correram enlouquecidos, os cavalos que escaparam ao desmoronar do estábulo cheiraram o ar e relincharam de terror antes de fugir assustados pelo campo fora, os álamos abanaram como bêbados e alguns caíram com as raízes no ar, esmagando os ninhos dos pardais. E o mais tremendo foi aquele rugido do fundo da terra, aquele resfolgar de gigante que se sentiu durante longo tempo, enchendo o ar de espanto. Clara fez por se arrastar até casa chamando Blanca, mas os estertores do solo impediram-na. Viu os camponeses que saiam espavoridos das casas, gritando ao céu, abraçando-se uns aos outros, aos puxões às crianças, aos pontapés nos cães, aos empurrões aos velhos, tratando Durante os meses que estiveram separados, Blanca e Pedro Tercero trocaram por correio missivas inflamadas, que ele assinava com nome de mulher e ela escondia logo que chegavam. A Ama conseguiu interceptar uma ou duas, mas não sabia ler e, mesmo que soubesse, o código secreto impedia-a de inteirar-se do conteúdo, afortunadamente para ela, porque o seu coração não teria resistido. Blanca passou o Inverno tecendo um poncho com lã escocesa na aula de lavores do colégio, pensando nas medidas do rapaz. De noite dormia abraçada ao poncho, aspirando o odor da lã e sonhando que era ele quem dormia na sua cama. Pedro Tercero, por sua vez, passou o Inverno compondo canções na guitarra para cantar a Blanca e a esculpir a sua imagem em quanto bocado de madeira lhe caía nas mãos, sem poder afastar a recordação angélica da rapariga, com aqueles tormentos que lhe ferviam no sangue, lhe abrandavam os ossos, lhe estavam fazendo mudar de voz e a sair pêlos na cara. Debatia-se inquieto entre as exigências do corpo, que se transformava no de um homem, e a doçura de um sentimento que ainda estava contido pelos jogos inocentes da infância. Ambos esperaram a chegada do Verão com uma impaciência dolorosa e, finalmente, quando este chegou e tornaram a encontrar-se, o poncho que Clara tinha tecido não entrava a Pedro Tercero pela cabeça, porque nesses meses tinha deixado para trás a meninice e alcançado as proporções de homem adulto, e as ternas canções de flores e amanheceres que ele tinha composto para ela soaram-lhe ridículas, porque tinha o porte de uma mulher e as suas urgências. Pedro Tercero continuava a ser delgado, com o cabelo teso e os olhos tristes, mas ao mudar a voz adquiriu uma tonalidade rouca e apaixonada com a qual seria conhecido mais tarde, quando cantasse a revolução. Falava pouco e era escuro e rude no trato, mas terno e delicado com as mãos, tinha grandes dedos de artista com que esculpia, arrancava lamentos das cordas da guitarra e desenhava com a mesma facilidade com que segurava as rédeas de um cavalo, brandia o machado para cortar lenha ou guiava o arado. Era o único em Las Tres Marias que enfrentava o patrão. Seu pai, Pedro Segundo, disse-lhe mil vezes que não olhasse o patrão nos olhos, que não lhe respondesse, que não se metesse com ele, e no seu desejo de protegê-lo, chegou a dar-lhe grandes sovas para lhe baixar a grimpa. Mas o filho era rebelde. Aos dez anos já sabia tanto como a mestra-escola de Las Tres Marias e aos doze insistia em fazer a viagem ao liceu da povoação, a cavalo ou a pé, saindo da casinha de tijolos às cinco da manhã, chovesse ou trovejasse. Leu e releu mil vezes os livros mágicos dos baús encantados do tio Marcos, e continuou alimentando-se com outros que lhe emprestavam os sindicalistas do bar e o padre José Dulce Maria, que também o ensinou a cultivar a sua habilidade natural para fazer versos e para traduzir em canções as suas ideias. - Meu filho, a Santa Madre Igreja está à direita, mas Jesus esteve sempre à esquerda - dizia-lhe enigmaticamente entre dois golos de vinho de missa com que celebrava as visitas de Pedro Tercero. Assim foi que um dia Esteban Trueba, que estava descansando no terraço depois do almoço, o ouviu cantar qualquer coisa de galinhas organizadas que se uniam para enfrentar o raposo e o venciam. Chamou-o. - Quero ouvir-te. Canta, para ver! - ordenou-lhe. Pedro Tercero pegou na guitarra com um gesto apaixonado, acomodou a perna numa cadeira e dedilhou as cordas. Ficou-se a olhar fixamente o patrão enquanto a sua voz de veludo se elevava apaixonada na calmaria da sesta. Esteban Trueba não era parvo e compreendeu o desafio. - Aí está! Vejo que a coisa mais estúpida se pode dizer cantando - grunhiu. - Aprende a cantar canções de amor! - Eu gosto, patrão. A união faz a força, como diz o padre José Dulce Maria. Se as galinhas podem enfrentar o raposo, o que é que detém os homens? Pegou na guitarra e saiu arrastando os pés, sem que o outro discorresse o que lhe podia dizer, apesar de já ter a raiva à flor dos lábios e começar-lhe a subir a tensão. Desde esse dia, Esteban Trueba teve-o na mira, observava-o, desconfiava. Tratou de impedir que fosse ao liceu, inventando tarefas de homem crescido, mas o rapaz levantava-se mais cedo e deitava-se mais tarde para as cumprir. Foi nesse ano que Esteban o açoitou com a chibata diante do seu pai porque levou aos rendeiros as novidades que andavam a circular entre os sindicalistas do povo, ideias de domingos, de feriados, de salário mínimo, de reforma e serviços médicos, de licença maternal para as mulheres grávidas, de votar sem pressões e, o mais grave, a ideia de uma organização camponesa que pudesse enfrentar os patrões. Nesse Verão, quando Blanca foi passar férias a Las Tres Marias, esteve a pontos de não o reconhecer, porque media quinze centímetros mais e tinha deixado muito para trás o menino barrigudo que compartilhou com ela todos os Verões da sua infância. Ela desceu do carro, esticou a saia e pela primeira vez não correu a abraçá-lo, fez-lhe apenas uma inclinação de cabeça à maneira de saudação, embora com os olhos dissesse o que os outros não deviam ouvir e que, por outro lado, já lhe tinha dito na sua impudica correspondência em código. A Ama observou a cena pelo canto do olho e sorriu em ar de gozo. Ao passar em frente de Pedro Tercero, fez-lhe uma careta: - Aprende, ranhoso, a meter-te com os da tua classe e não com senhoras - gracejou entredentes. Nessa noite Blanca jantou com toda a família na sala de jantar o ensopado de galinha com que sempre os recebiam em Las Tres Marias, sem que se vislumbrasse nela nenhuma ansiedade durante a prolongada sobremesa em que o pai bebia conhaque e falava sobre vacas importadas e minas de ouro. Esperou que a mãe fizesse sinal de retirar-se, parou calmamente, desejou as boas-noites a cada um dos presentes e foi para o quarto. Pela primeira vez na sua vida, fechou a porta à chave. Sentou-se na cama sem tirar a roupa e esperou no escuro até que se calassem as vozes dos gémeos gritando no quarto ao lado, os passos dos criados, as portas, os ferrolhos e a casa se acomodou no sono. Então abriu uma janela e saltou, caindo sobre as matas de hortênsias que muito tempo atrás a tia Férula tinha plantado. A noite estava clara, ouviam-se os grilos e os sapos. Respirou profundamente e o ar levou o cheiro doce dos pêssegos que secavam no pátio para as conservas. Esperou que os olhos se acostumassem à escuridão e depois começou a andar, mas não pôde seguir mais longe porque ouviu o ladrar furioso que os cães de guarda soltavam na noite. Eram quatro mastins que se tinham criado amarrados com correntes e que passavam o dia encerrados, que ela nunca tinha visto de perto e sabia que a não podiam reconhecer. Por um instante sentiu que o pânico a fazia perder a cabeça e esteve a ponto de começar a gritar, mas então lembrou-se de que Pedro Garcia, o velho, lhe tinha dito que os ladrões andavam nus para não serem atacados pelos cães. Sem hesitar despiu a roupa com toda a rapidez que os nervos lhe permitiam, pô-la debaixo do braço e caminhou com passo tranquilo, rezando para que os animais não lhe farejassem o medo. Viu-os correr ladrando e continuou sem perder o ritmo da marcha. Os cães aproximaram-se, rosnando desconcertados, mas ela não parou. Um deles, mais audaz que os outros, aproximou-se a cheirá-la. Recebeu o bafo morno da sua respiração nas costas, mas não fez caso. Continuaram a rosnar e a ladrar por algum tempo, acompanharam-na um bocado e, por fim, fartos, deram meia volta. Blanca suspirou aliviada e deu-se conta que estava a tremer e coberta de suor, teve de apoiar-se numa árvore e esperou até que passasse a fadiga que tinha posto os seus joelhos em papas. Depois vestiu-se a toda a pressa e deitou a correr em direcção ao rio. Pedro Tercero esperava-a no mesmo sitio onde se tinham encontrado no Verão anterior e onde muitos anos antes Esteban Trueba se tinha apoderado da humilde virgindade de Pancha Garcia. Ao ver o rapaz, Blanca corou violentamente. Durante os meses em que tinham estado separados, ele amadureceu no duro oficio de fazer-se homem e ela, por seu lado, esteve recolhida entre as paredes do seu quarto e do colégio das freiras, preservada das durezas da vida, alimentando sonhos românticos com varas de tecer e lã escocesa, mas a imagem dos seus sonhos não coincidia com aquele jovem alto que se aproximava murmurando o seu nome. Pedro Tercero estendeu a mão e tocou-lhe o pescoço junto da orelha. Blanca sentiu algo quente que lhe corria pelos ossos e lhe abanava as pernas, fechou os olhos e abandonou-se. Ele puxou-a a si e rodeou-a com os braços, ela afundou o nariz no peito daquele homem que não conhecia, tão diferente do menino magro com quem se acariciava até ficar extenuada poucos meses antes. Aspirou-lhe o odor novo, esfregou-se contra a sua pele áspera, apalpou aquele corpo enxuto e forte e sentiu uma paz grandiosa e completa, em que nada se parecia com a agitação que se havia apoderado dele. Procuraram-se com as línguas, como o faziam antes, embora parecesse uma caricia acabada de inventar, caíram ajoelhados beijando-se com desespero e rebolaram sobre o leito macio da terra húmida. Descobriram-se pela primeira vez e não tinham nada que dizer um ao outro. A Lua percorreu todo o horizonte, mas eles não a viram, porque estavam ocupados em explorar a sua mais profunda intimidade, metendo-se cada um na pele do outro, incansavelmente. A partir dessa noite, Blanca e Pedro Tercero encontravam-se sempre no mesmo lugar à mesma hora. De dia ela bordava, lia e pintava insípidas aguarelas nos arredores da casa, ante o olhar feliz da Ama, que por fim podia dormir tranquila. Clara, por sua vez, pressentia que algo de estranho estava sucedendo, porque podia ver uma nova cor na aura da filha e pensava adivinhar a causa. Pedro Tercero fazia as suas lides habituais no campo e não deixou de ir à povoação ver os amigos. Ao cair da noite estava morto de fadiga, mas a perspectiva de se encontrar com Blanca devolvia-lhe a força. Não era em vão que tinha quinze anos. Assim passaram todo o Verão e muitos anos mais tarde os dois recordariam essas noites veementes como a melhor época das suas vidas. Entretanto, Jaime e Nicolau aproveitavam as férias fazendo todas aquelas coisas que estavam proibidas no internato britânico, gritando até esganiçar-se, lutando sob qualquer pretexto, transformados em dois imundos ranhosos, maltrapilhos, com os joelhos cheios de crostas e a cabeça cheia de piolhos, fartos de fruta apanhada de fresco, de sol e de liberdade. Saiam de manhãzinha e não voltavam a casa até ao anoitecer, ocupados em caçar coelhos à pedrada, galopar a cavalo até perder o fôlego e espiar as mulheres que ensaboavam a roupa no rio. Assim passaram três anos, até que o terramoto mudou as coisas. No fim dessas férias, os gémeos regressaram à capital antes do resto da família, acompanhados pela Ama, os criados da cidade e grande parte da bagagem. Os rapazes iam directamente para o colégio enquanto a Ama e os outros empregados preparavam a grande casa da esquina para a chegada dos patrões. Blanca ficou com os pais no campo uns dias mais. Foi então que Clara começou a ter pesadelos, a caminhar sonâmbula pelos corredores e a despertar aos gritos. Durante o dia andava como que imbecilizada, vendo sinais premonitórios no comportamento dos animais: que as galinhas não põem o seu ovo diário, que as vacas andam espantadas, que os cães uivam à morte e as ratazanas, as aranhas e os vermes saem dos seus esconderijos, que os pássaros abandonam os ninhos e estão a partir em bandos, enquanto as suas crias gritam de fome nas árvores. Olhava obsessivamente a ténue coluna de fumo branco do vulcão, observando as mudanças na cor do céu. Blanca preparou-lhe infusões calmantes e banhos mornos e Esteban recorreu à antiga caixinha de pílulas homeopáticas para tranquilizar, mas os sonhos continuaram. - A terra vai tremer! - dizia Clara, cada vez mais pálida e agitada. - Sempre tremeu, Clara, por Deus - respondia Esteban. - Desta vez será diferente. Haverá dez mil mortos. - Não há tanta gente em todo o país - gracejava ele. Começou o cataclismo às quatro da madrugada. Clara despertou pouco tempo antes com um pesadelo apocalíptico de cavalos rebentados, vacas arrebatadas pelo mar, gente rastejando debaixo das pedras e cavernas abertas no chão por onde se afundavam casas inteiras. Levantou-se lívida de terror e correu ao quarto de Blanca. Mas Blanca, como todas as noites, tinha fechado à chave a porta e deslizado pela janela em direcção ao rio. Nos últimos dias, antes de voltar à cidade, a paixão do Verão adquiriu características dramáticas, porque na iminência de uma nova separação, os jovens aproveitavam todos os momentos possíveis para se amarem desenfreadamente. Passavam a noite no rio, imunes ao frio e ao cansaço, entregando-se com a força do desespero, e só ao vislumbrar os primeiros raios do amanhecer Blanca regressava a casa entrando pela janela do quarto, onde chegava justamente a tempo de ouvir cantar os galos. Clara foi até à porta do quarto, quis abri-la mas estava trancada. Bateu e como ninguém respondesse saiu correndo, deu meia volta à casa e viu então a janela aberta de par em par e as hortênsias de Férula todas pisadas. Num instante compreendeu a causa da cor da aura de Blanca, as suas olheiras, o fastio, a sonolência matinal e as aguarelas vespertinas. Nesse mesmo momento começou o terramoto. Clara sentiu que o solo se sacudia e não pôde aguentar-se em pé. Caiu de joelhos. As telhas desprenderam-se e choveram à sua volta com estrépito ensurdecedor. Viu a parede de adobe da casa quebrar-se como se tivesse levado uma machadada de frente, a terra abrir-se, tal como tinha visto em sonhos e uma enorme fenda aparecer a sua frente, engolindo na passagem os galinheiros, a empena do lavadouro e parte do estábulo. O tanque de água escorregou e caiu ao chão espalhando mil litros de água em cima das galinhas sobreviventes que esvoaçavam desesperadas. Ao longe, o vulcão deitava fogo e fumo como um dragão furioso. Os cães soltaram-se das correntes e correram enlouquecidos, os cavalos que escaparam ao desmoronar do estábulo cheiraram o ar e relincharam de terror antes de fugir assustados pelo campo fora, os álamos abanaram como bêbados e alguns caíram com as raízes no ar, esmagando os ninhos dos pardais. E o mais tremendo foi aquele rugido do fundo da terra, aquele resfolgar de gigante que se sentiu durante longo tempo, enchendo o ar de espanto. Clara fez por se arrastar até casa chamando Blanca, mas os estertores do solo impediram-na. Viu os camponeses que saiam espavoridos das casas, gritando ao céu, abraçando-se uns aos outros, aos puxões às crianças, aos pontapés nos cães, aos empurrões aos velhos, tratando de pôr a salvo os pobres haveres naquele estrondo de tijolos e telhas que saiam das próprias entranhas da terra, como um interminável rumor de fim do mundo. Esteban Trueba apareceu no umbral da porta no preciso momento em que a casa se partiu como uma casca de ovo e se desmoronou numa nuvem de pó, esmagando-o debaixo de uma montanha de escombros. Clara rastejou até lá chamando-o aos gritos, mas ninguém respondeu. A primeira sacudidela do terramoto durou quase um minuto e foi a mais forte que se tinha registado até à data naquele pais de catástrofes. Atirou ao chão quase tudo o que estava em pé e o resto acabou por se desmoronar com o rosário de tremores menores que se seguiu estremecendo o mundo até ao amanhecer. Em Las Tres Marias, esperaram que nascesse o Sol para contar os mortos e desenterrar os soterrados que ainda gemiam debaixo da derrocada, entre eles Esteban Trueba, que todos sabiam onde estava mas ninguém tinha esperança de encontrar com vida. Foram necessários quatro homens a mando de Pedro Segundo, para remover o monte de terra, telhas e adobes que o cobria. Clara tinha abandonado a sua distracção angélica e ajudava a tirar as pedras com força de homem. - Temos de o tirar! Está vivo, ouve-nos! - assegurava Clara e isso dava-lhes ânimo para continuar. Com as primeiras luzes apareceram Blanca e Pedro Tercero, intactos. Clara caiu em cima da filha e deu-lhe um par de bofetadas, mas logo a abraçou chorando aliviada por a saber a salvo e por a ter a seu lado. - O seu pai está ali! - apontou Clara. Os rapazes puseram-se a trabalhar com os demais e ao cabo de uma hora, quando já tinha nascido o Sol naquele universo de angústia, tiraram o patrão do túmulo. Os ossos partidos eram tantos, que não se podiam contar, mas estava vivo e tinha os olhos abertos. - Temos de levá-lo à povoação para ser visto pelos médicos - disse Pedro Segundo. Estavam discutindo a maneira de o transladar sem que os ossos lhe saíssem por todos os lados como de um saco roto, quando chegou Pedro Garcia, o velho, que graças à cegueira e à velhice tinha suportado o terramoto sem se comover. Agachou-se ao lado do ferido e com grande cautela percorreu-lhe o corpo, tacteando-o com as mãos, olhando com os seus dedos antigos, até não deixar nada por contabilizar nem fractura sem ter em conta. - Se lhe mexerem, morre - avisou. Esteban Trueba não estava inconsciente e ouviu-o com toda a clareza, recordou-se da praga das formigas e achou que o velho era a sua única esperança. - Deixem-no, ele sabe o que faz - balbuciou. Pedro Garcia mandou trazer uma manta e, com a ajuda do filho e do neto, colocaram sobre ela o patrão, levantaram-no com cuidado e acomodaram-no sobre uma mesa improvisada que tinham armado no centro daquilo que antes era o pátio, mas que já não era mais que uma pequena clareira naquele pesadelo de cascalho, de cadáveres de animais, de choros de crianças, de gemidos de cães e orações de mulheres. Entre as ruínas recuperaram um odre de vinho, que Pedro Garcia distribuiu em três partes, uma para lavar o corpo do ferido, outra para lhe dar a tomar e outra que ele bebeu com parcimónia, antes de começar a compor-lhe os ossos, um por um, com paciência e calma, esticando aqui, ajustando dali, colocando cada um no seu sitio, entalando-os, envolvendo-os em tiras de lençol para os imobilizar, dizendo entredentes ladainhas de santos curandeiros, invocando a boa sorte e a Virgem Maria, e suportando os gritos e blasfémias de Esteban Trueba, sem mudar em nada a beatifica expressão de cego. às tantas, reconstruiu-lhe o corpo tão bem, que os médicos que o observaram depois não podiam acreditar que isso fosse possível. - Eu nem sequer o teria tentado - reconheceu o doutor Cuevas ao saber do sucedido. Os destroços do terramoto mergulharam o país num grande luto. Não bastou a terra sacudir-se até deitar tudo ao chão, mas também o mar se afastou várias milhas e regressou numa única e gigantesca onda que pôs barcos sobre as colinas, muito longe da costa, levou casebres, caminhos e animais e submergiu várias ilhas do Sul mais de um metro abaixo do nível da água. Houve edifícios que caíram como dinossauros feridos, outros que se desfizeram como castelos de cartas, os mortos contavam-se aos milhares e não ficou família que não tivesse alguém por quem chorar. A água salgada do mar arruinou as colheitas, os incêndios devoraram zonas inteiras da cidade e povoações e, por último, correu lava e caiu cinza como a minar do castigo sobre as aldeias próximas dos vulcões. As pessoas deixaram de dormir nas suas casas, aterrorizadas com a possibilidade de que o cataclismo se repetisse, improvisavam acampamentos em lugares desertos, dormiam nas praças e nas ruas. Os soldados tiveram de conter a desordem e fuzilavam sem mais trâmites quem surpreendiam a roubar porque, enquanto os mais cristãos enchiam as igrejas clamando perdão pelos seus pecados e rogavam a Deus para que aplacasse a sua ira, os ladrões percorriam os escombros e onde aparecia uma orelha com um brinco ou um dedo com um anel cortavam-nos com uma facada, sem considerar que a vitima estivesse morta ou apenas aprisionada nos escombros. Desenvolveu-se uma imensidade de gérmenes que provocou diversas pestes em todo o pais. O resto do mundo, demasiado ocupado com a guerra, apenas soube que a natureza se tornara louca nesse longínquo lugar do planeta, mas mesmo assim chegaram carregamentos de medicamentos, cobertores, alimentos e materiais de construção, que se perderam nos misteriosos labirintos da administração pública, até ao ponto de, muito anos depois, se poderem comprar os guisados enlatados da América do Norte e o leite em pó da Europa ao preço de requintados manjares nos armazéns exclusivos. Esteban Trueba passou quatro meses envolto em ligaduras, rígido entre talas, pensos e agrafes, num atroz suplício de pontadas e imobilidade, devorado pela impaciência. O seu carácter piorou até que ninguém o pôde suportar. Clara ficou no campo para cuidar dele e, quando se normalizaram as comunicações e se restaurou a ordem, mandaram Blanca interna para o colégio, porque a mãe não podia encarregar-se dela. Na capital, o terramoto surpreendeu a Ama na cama e, apesar de ali se ter sentido menos que no Sul, também a matou de susto. A grande casa da esquina estalou como uma noz, abriram-se gretas nas paredes, e o grande lustre de cristal da sala de jantar caiu com um clamor de mil sinos, fazendo-se em fanicos. Fora isso, a única coisa grave foi a morte da Ama. Quando passou o terror do primeiro momento, os criados deram conta que a anciã não tinha saído fugindo para a rua como as outras pessoas. Entraram para a ir buscar e encontraram-na na cama, com os olhos desorbitados e o pouco cabelo que lhe restava eriçado de pavor. No caos desses dias, não puderam fazer-lhe um enterro digno, como ela tinha esperado, mas tiveram de a enterrar a toda a pressa sem discursos nem lágrimas. Não assistiu ao seu funeral nenhum dos numerosos filhos alheios que ela com tanto amor tinha criado. O terramoto marcou uma mudança tão importante na vida da família Trueba que a partir de então dividiram os acontecimentos em antes e depois dessa data. Em Las Tres Marias, Pedro Segundo Garcia voltou a assumir o cargo de administrador, pela impossibilidade do patrão sair da cama. Tocou-lhe a tarefa de organizar os trabalhadores, devolver a calma e reconstruir a ruína em que se tinha transformado a propriedade. Começaram por enterrar os mortos no cemitério ao pé do vulcão, que milagrosamente se tinha salvo do rio de lava que desceu pelas ladeiras do cerro maldito. Os novos túmulos deram um ar festivo ao humilde campo santo e plantaram fileiras de vidoeiros para darem sombra aos que visitavam os seus mortos. Reconstruíram as casinhas de tijolo uma por uma, exactamente como eram dantes, os estábulos, a leitaria e o celeiro e voltaram a preparar a terra para as sementeiras, agradecidos de que a lava e a cinza tivessem caído para outro lado, salvando a propriedade. Pedro Tercero teve de renunciar aos seus passeios à aldeia, porque o pai queria-o a seu lado. Acompanhava-o de mau humor, fazendo-lhe notar que rebentavam as costas para tornar a pôr de pé a riqueza do patrão, porque eles continuavam a ser tão pobres como dantes. - Sempre foi assim, filho. Não se pode mudar a lei de Deus - respondia-lhe o pai. - Sim, pode-se mudar, pai. Há gente que o está a fazer, mas aqui nem sequer temos notícias. No mundo estão a passar-se coisas importantes - replicava Pedro Tercero e citava sem pausas o discurso do professor comunista ou do padre José Dulce Maria. Pedro Segundo não respondia e continuava trabalhando sem vacilações. Fazia vista grossa quando o filho, aproveitando-se da doença do patrão ter relaxado a vigilância, rompia o cerco de censura e introduzia em Las Tres Marias os folhetos dos sindicalistas, os jornais políticos do professor e as estranhas versões bíblicas do padre espanhol. Por ordem de Esteban Trueba, o administrador começou a reconstrução da casa senhorial seguindo o mesmo plano que tinha originalmente. Nem sequer mudaram os adobes de palha e barro cozido por modernos tijolos, ou modificaram o vão das janelas demasiado estreito. O único melhoramento foi canalizar água quente para os banhos e mudar o antigo fogão a lenha por uma máquina a petróleo à qual, no entanto, nenhuma cozinheira chegou a habituar-se, terminando os seus dias atirada para o pátio para uso indiscriminado das galinhas. Enquanto se construía a casa, improvisaram um refúgio de tábuas com tecto de zinco onde acomodaram Esteban no seu leito de inválido e dali, através de uma janela, ele podia observar os progressos da obra e gritar instruções, fervendo de raiva pela forçada imobilidade. Clara mudou muito nesses meses. Teve de pôr-se ao lado de Pedro Segundo Garcia na tarefa de salvar o que pudesse ser salvo. Pela primeira vez na sua vida tomou a seu cargo, sem nenhuma ajuda, os assuntos materiais, porque já não contava com o marido, com Férula ou com a Ama. Despertou ao fim de uma longa infância em que tinha estado sempre protegida, rodeada de cuidados, de comodidades e sem obrigações. Esteban Trueba adquiriu a mania de que tudo o que comia lhe caia mal, excepto o que ela cozinhava, de modo que passava uma boa parte do dia metida na cozinha depenando galinhas para fazer canjas de doente e amassando pão. Teve de fazer de enfermeira, lavá-lo com uma esponja, mudar-lhe as ligaduras, pôr-lhe a arrastadeira. Ele ficou cada dia mais irritadiço e despótico, exigia-lhe «põe-me uma almofada aqui, não, mais acima, traz-me vinho, não, disse-te que queria vinho branco, abre a janela, fecha-a, dói-me aqui, tenho fome, tenho calor, coça-me as costas, mais abaixo». Clara chegou a temê-lo muito mais que quando era o homem são e forte que se introduzia na paz da sua vida com o seu cheiro de macho ansioso, o seu vozeirão de furacão, a sua guerra sem quartel, a sua prepotência de grande senhor, impondo a sua vontade e atirando os seus caprichos contra o delicado equilíbrio que ela mantinha entre os espíritos do Mais- Além e as almas necessitadas do Mais-Aqui. Chegou a detestá-lo. Logo que os ossos se soldaram e ele pôde mover-se um pouco, voltou a Esteban o desejo tormentoso de abraçá-la e, todas as vezes que ela passava a seu lado, dava-lhe uma palmada, confundindo-a na sua perturbação de doente com as robustas camponesas que nos seus anos de moço o serviam na cozinha e na cama. Clara sentia que já não estava para essas cavalgadas. As desgraças tinhamna espiritualizado e a idade e a falta de amor pelo marido tinham-na levado a considerar o sexo como um passatempo algo brutal, que lhe deixava as articulações doridas e produzia desordem no mobiliário. Em poucas horas, o terramoto fê-la aterrar na violência, na morte e na vulgaridade e pô-la em contacto com as necessidades básicas, que antes tinha ignorado. De nada lhe serviram a mesa de pé-de-galo ou a capacidade de adivinhar o futuro nas folhas de chá face à urgência de defender os caseiros da peste e da desorientação, a terra da seca e do caracol, as vacas da febre aftosa, as galinhas da gosma, a roupa da traça, os seus filhos do abandono e o marido da morte e da sua ira incontida. Clara estava muito cansada. Sentia-se sozinha, confundida e nos momentos das decisões a única pessoa a que podia recorrer em busca de ajuda era Pedro Segundo Garcia. Esse homem leal e silencioso estava sempre presente, ao alcance da sua voz, dando certa estabilidade à barafunda trágica que tinha entrado na sua vida. Frequentemente, ao fim do dia, Clara chamava-o para lhe oferecer uma chávena de chá. Sentavam-se nas cadeiras de vime debaixo de um alpendre, à espera que chegasse a noite para aliviar a tensão do dia. Olhavam o escuro que cala suavemente e as primeiras estrelas que começavam a brilhar no céu, ouviam coaxar as rãs e então ficavam calados. Tinham muito coisa em que falar, muitos problemas a resolver, muitos acordos pendentes, mas ambos compreendiam que aquela meia hora em silêncio era um prémio merecido, sorviam o chá sem pressas, para fazê-lo durar, e cada um pensava na vida do outro. Conheciam-se há mais de quinze anos, estavam perto todos os Verões, mas no total tinham trocado muito poucas frases. Ele tinha visto a patroa como uma luminosa aparição estival, alheia aos afãs brutais da vida, de uma espécie diferente das outras mulheres que tinha conhecido. Mesmo agora, com as mãos metidas na massa ou com o avental ensanguentado pela galinha do almoço, parecia-lhe uma miragem na reverberação do dia. Só ao entardecer, na calma desses momentos que partilhavam com as suas chávenas de chá, podia vê-la na sua dimensão humana. Secretamente tinha-lhe jurado lealdade e, como um adolescente, por vezes fantasiava com a ideia de dar a vida por ela. Apreciava-a tanto como odiava Esteban Trueba. Quando foram colocar o telefone, faltava muito à casa para ser habitável. Fazia quatro anos que Esteban Trueba lutava por consegui-lo e foram-lho pôr justamente quando não tinha nem um tecto para o proteger da intempérie. O aparelho não durou muito, mas serviu para chamar os gémeos e ouvir-lhes a voz como se estivessem noutra galáxia, no meio de um barulho ensurdecedor e das interrupções da telefonista da aldeia, que participava na conversa. Por telefone souberam que Blanca estava doente e as freiras não queriam tomar conta dela. A menina tinha uma tosse persistente e dava-lhe febre com frequência. O terror da tuberculose estava presente em toda a parte, porque não havia família que não tivesse um tísico a lamentar, de modo que Clara decidiu ir buscá-la. No mesmo dia em que Clara viajava, Esteban Trueba partiu o telefone à bengalada, porque começou a tocar, e ela gritou que já ia, que se tinha calado, mas o aparelho continuou a tocar e ele, num repente de fúria caiu-lhe em cima às pancadas, deslocando-se com isso, a clavícula que a Pedro Garcia, o velho, tanto lhe tinha custado a consertar. Era a primeira vez que Clara viajava sozinha. Tinha feito o mesmo trajecto em vários anos, mas sempre distraída, porque contava com alguém que se encarregasse dos pormenores prosaicos, enquanto ela sonhava observando a paisagem pela janela. Pedro Segundo Garcia levou-a até à estação e acomodou-a no assento do comboio. Ao despedir-se, ela inclinou-se e beijou-o ligeiramente na face e sorriu. Ele levou a mão à cara para proteger do vento aquele beijo fugaz e não sorriu, porque a tristeza o tinha invadido. Guiada pela intuição mais que pelo conhecimento das coisas ou por lógica, Clara conseguiu chegar até ao colégio da filha sem contratempos. A Madre Superiora recebeu-a no escritório espartano, com um Cristo enorme e sangrento na parede e um incongruente ramo de rosas vermelhas sobre a mesa. - Chamámos o médico, senhora Trueba - disse-lhe. - A menina não tem nada nos pulmões, mas é melhor levá-la, o campo far-lhe-á bem. Nós não podemos assumir a responsabilidade, compreenda. A freira tocou uma sineta e entrou Blanca. Estava mais magra e pálida, com sombras violáceas debaixo dos olhos que teriam impressionado qualquer mãe, mas Clara compreendeu imediatamente que a doença da filha não era do corpo, mas da alma. O horrendo uniforme cinzento fazia-a muito mais pequena do que era, apesar das suas formas de mulher estalarem as costuras. Blanca ficou surpreendida ao ver a mãe, a quem recordava como um anjo vestido de branco, alegre e distraído, e que em poucos meses se tinha tornado numa mulher eficiente, com as mãos calejadas e duas profundas rugas nos cantos da boca. Foram ver os gémeos ao colégio. Era a primeira vez que se encontravam depois do terramoto, e tiveram a surpresa de comprovar que o único lugar do território nacional que não tinha sido tocado pelo cataclismo fora o velho colégio, dai terem-no ignorado por completo. Ali os dez mil mortos passaram sem pena nem glória, enquanto eles continuavam cantando em inglês e jogando o críquete, comovidos apenas pelas notícias que chegavam da Grã-Bretanha com três semanas de atraso. Admiradas, viram que aqueles rapazes, que tinham sangue de mouros e espanhóis nas veias e que tinham nascido no último canto da América, falavam o castelhano com sotaque de Oxford e a única emoção que eram capazes de manifestar era a surpresa, levantando a sobrancelha esquerda. Não tinham nada em comum com os dois rapazes exuberantes e piolhosos que passavam o Verão no campo. «Espero que tanta fleuma saxónica não mos ponha idiotas», balbuciou Clara ao despedir-se dos filhos. A morte da Ama, que apesar dos seus anos era a responsável pela grande casa da esquina na ausência dos patrões, originou o desleixo dos criados. Sem vigilância, abandonaram as suas tarefas e passavam o dia numa orgia de sesta e anedotas, enquanto as plantas secavam por falta de rega e as aranhas passeavam pelos cantos. A deterioração era tão evidente que Clara decidiu fechar a casa e despedi-los a todos. Depois entregou-se ao trabalho de cobrir os móveis com lençóis e pôr naftalina por todos os lados. Abriram as gaiolas de pássaros uma por uma e o céu encheu-se de caturras, canários, pintassilgos e cristofués (Pássaro pouco maior do que a calhandra que abunda nos vales da Venezuela. (N. T.)), que deram voltas cegos pela liberdade e finalmente voaram em todas as direcções. Blanca notou que em todos esses trabalhos não apareceu nenhum fantasma por detrás das cortinas, não chegou nenhum rosa-cruz atraído pelo seu sexto sentido nem nenhum poeta faminto chamado pela necessidade. A sua mãe parecia ter-se tornado uma senhora comum e rústica. - A mamã mudou muito - observou Blanca. - Não fui eu, filha, foi o mundo que mudou – respondeu Clara. Antes de se irem embora, foram ao quarto da Ama no pátio dos criados. Clara abriu os seus caixotes, tirou a mala de cartão que a boa mulher usou durante meio século e revistou o roupeiro. Não havia mais que um pouco de roupa, umas alpergatas velhas e caixas de todos os tamanhos, atadas com fitas e elásticos, onde ela guardava estampas da Primeira Comunhão e do Baptismo, mechas de cabelo, unhas cortadas, retratos desbotados e alguns sapatinhos de bebé gastos pelo uso. Eram recordações de todos os filhos da família del Valle e depois dos Trueba que lhe tinham passado pelos braços e que ela embalara no peito. Debaixo da cama encontrou um atado com os disfarces que a Ama usava para lhe espantar a mudez. Sentada na enxerga, com esses tesouros no regaço, Clara chorou longamente aquela mulher que tinha dedicado a sua existência a fazer mais cómoda a dos outros e que morrera sozinha. - Depois de tanto tentar assustar-me, foi ela que morreu de susto - observou Clara. Mandou transladar o corpo para o mausoléu dos del Valle, no Cemitério Católico, porque supôs que ela não gostaria de estar enterrada com os evangelistas e os judeus e teria preferido seguir na morte aqueles que tinha servido em vida. Pôs um ramo de flores junto da lápide e foi com Blanca para a estação, de regresso a Las Tres Marias. Durante a viagem de comboio, Clara pôs a sua filha em dia sobre as novidades da família e a saúde do pai, esperando que Blanca lhe fizesse a única pergunta que sabia que ela desejava fazer, mas Blanca não mencionou Pedro Tercero e Clara não se atreveu a fazê-lo. Tinha a ideia que, ao nomear os problemas, estes materializavam-se e já não era possível ignorá-los; por outro lado, se ficam no limbo das palavras não ditas, podem desaparecer sozinhos, com o decorrer do tempo. Na estação, Pedro Segundo esperava-as com o carro e Blanca surpreendeu-se ao ouvi-lo assobiar todo o trajecto para Las Tres Marias, pois o administrador tinha fama de taciturno. Encontraram Esteban Trueba sentado num cadeirão forrado de felpa azul, ao qual tinham adaptado rodas de bicicleta, à espera que chegasse da capital a cadeira de rodas que tinha encomendado e que Clara trazia na bagagem. Dirigia com enérgicas bengaladas e impropérios os progressos da casa, tão absorto que as recebeu com um beijo distraído e se esqueceu de perguntar pela saúde da filha. Nessa noite comeram numa rústica mesa de tábuas, iluminados por um candeeiro de petróleo. Blanca viu a mãe servir a comida nos pratos de barro feitos artesanalmente, tal como os tijolos, porque no terramoto tinha-se partido toda a loiça. Sem a Ama para dirigir os assuntos da cozinha, tinham simplificado as coisas até à frugalidade e partilhavam apenas uma espessa sopa de lentilhas, pão, queijo e marmelada, que era menos do que ela comia no internato nas sextas-feiras de jejum. Esteban dizia que, mal pudesse aguentar-se nas pernas, iria em pessoa à capital comprar as coisas mais finas e caras para mobilar a casa, porque já estava farto de viver como um labrego, por culpa da maldita natureza histérica daquele país do caralho. De tudo o que se falou à mesa, a única coisa que Blanca reteve foi que tinha despedido Pedro Tercero Garcia com ordem de não voltar a pôr os pés na propriedade, porque o surpreendeu a levar ideias comunistas aos camponeses. A rapariga empalideceu ao ouvi-lo e deixou cair o conteúdo da colher no vestido. Só Clara percebeu a alteração, porque Esteban estava embrenhado no monólogo de sempre sobre os mal-nascidos que mordem a mão a quem lhes dá de comer, «e tudo por causa desses politiqueiros do diabo! Como esse novo candidato socialista, um fantoche que se atreve a cruzar o pais de Norte a Sul no seu comboio de pacotilha, sublevando gente de paz com a sua fanfarronice bolchevista, mais vale que não se aproxime daqui, porque se desce do comboio nós fazemo-lo em puré, já estamos preparados, não há um só patrão em toda a região que não esteja de acordo, não vamos permitir que venham pregar contra o trabalho honrado, o prémio justo para os que se esforçam, a recompensa dos que vingam na vida, não é possível que os mandriões tenham o mesmo que nós, que trabalhamos de sol a sol e sabemos investir o nosso capital, correr os riscos, assumir as responsabilidades, porque se vamos à semente, o conto de que a terra é de quem a trabalha, vai dar-lhes a volta, porque aqui o único que sabe trabalhar sou eu, sem mim isto era uma ruína e continuaria a sê-lo, nem o próprio Cristo disse que temos de dividir o fruto do nosso esforço com os mandriões e esse ranhoso de merda, Pedro Tercero, atreve-se a dizê-lo na minha propriedade, se não lhe meti uma bala na cabeça é porque estimo muito o pai e de certa forma devo a vida ao seu avô, mas já o avisei que se o vejo dar voltas por aqui faço-o em papas a tiros de espingarda.» Clara não tinha participado na conversa. Estava ocupada a pôr e tirar as coisas da mesa e a vigiar a filha pelo rabo do olho, mas ao tirar a terrina com o resto das lentilhas ouviu as últimas palavras da cantilena de seu marido. - Não podes impedir que o mundo se transforme, Esteban. Se não é Pedro Tercero Garcia, será outro a trazer novas ideias a Las Tres Marias - disse. Esteban Trueba deu uma bengalada na terrina que a mulher tinha nas mãos e atirou-a para longe, despejando o conteúdo pelo chão. Blanca pôs-se de pé aterrorizada. Era a primeira vez que via o mau humor do pai dirigido contra Clara e pensou que ela entraria num dos transes lunáticos e que sairia a voar pela janela, mas nada disso aconteceu. Clara apanhou os restos da terrina partida com a calma habitual, sem dar mostras de ouvir os palavrões de marinheiro que Esteban cuspia. Esperou que ele acabasse de refilar, deu-lhe as boas-noites com um beijo na face e saiu levando Blanca pela mão. Blanca não perdeu a tranquilidade pela ausência de Pedro Tercero. Ia todos os dias ao rio e esperava. Sabia que a notícia do seu regresso ao campo chegaria ao rapaz mais cedo ou mais tarde e que o chamamento do amor o alcançaria onde quer que ele estivesse. Assim foi, de facto. Ao quinto dia viu chegar um maltrapilho, coberto com uma manta de Inverno e um chapéu de aba larga, arrastando um burro carregado com utensílios de cozinha, panelas de estanho, bules de cobre, grandes marmitas de ferro esmaltadas, conchas de todos os tamanhos, com um chocalhar de latas que anunciava o seu andar com dez minutos de antecipação. Não o reconheceu. Parecia um velho miserável, um desses tristes viajantes que vão pela província com a mercadoria de porta em porta. Parou em frente dela, tirou o chapéu e então ela viu os formosos olhos negros a brilhar no meio de uma melena e de uma barba hirsuta. O burro ficou a mordiscar a erva e a mastigar as folhas ruidosas aborrecido, enquanto Blanca e Pedro Tercero saciavam a fome e a sede acumuladas em tantos meses de silêncio e separação, rebolando sobre pedras e matos, gemendo como desesperados. Depois ficaram abraçados entre as canas da margem. No zunzum dos besouros e coaxar das rãs, ela contou-lhe que tinha posto cascas de plátano e papel nos sapatos para ter febre e comido giz moído até lhe dar tosse de verdade, para convencer as freiras de que a sua moleza e a sua palidez eram sintomas seguros da tuberculose. - Queria estar contigo - disse, beijando-o no pescoço. Pedro Tercero falou-lhe do que estava acontecendo no mundo e no pais, da guerra longínqua que mantinha meia humanidade num estripalhar de metralha, numa agonia de campo de concentração e numa imensidão de viúvas e órfãos, falou-lhe dos trabalhadores na Europa e América do Norte, cujos direitos eram respeitados, porque a mortandade de sindicalistas e socialistas das décadas anteriores tinha produzido leis mais justas e repúblicas como Deus manda, onde os governantes não roubam o leite em pó dos sinistrados. - Os últimos a dar conta das coisas, somos sempre nós, os camponeses não nos inteiramos do que se passa noutros lados. Ao teu pai odeiam-no aqui. Mas têm-lhe tanto medo que não são capazes de se organizarem para lhe fazer frente. Percebes Blanca? Ela entendia, mas nesse momento o seu único interesse era aspirar o seu cheiro a grão fresco, lamber-lhe as orelhas, meter os dedos naquela barba densa, ouvir os seus gemidos enamorados. Também temia por ele. Sabia que não só o pai lhe meteria na cabeça a bala prometida, como também qualquer dos patrões da região faria o mesmo com gosto. Blanca recordou a Pedro Tercero a história do dirigente socialista que um par de anos antes percorria a região de bicicleta, distribuindo panfletos nas herdades e organizando os trabalhadores, até que os irmãos Sanchez o apanharam, o mataram à paulada e o penduraram num poste do telégrafo no cruzamento de dois caminhos, para que todos o pudessem ver. Esteve ali um dia e uma noite recortando-se no céu, até que chegaram os polícias a cavalo e o tiraram. Para dissimular deitaram as culpas aos índios da reserva, apesar de toda a gente saber que eram pacíficos e que, se tinham medo de matar uma galinha, com maior razão tinham medo de matar um homem. Mas os irmãos Sanchez desenterraram-no do cemitério, voltaram a exibir o cadáver e isto já era demasiado para atribuir aos índios. Mas nem por isso a justiça se atreveu a intervir e a morte do socialista foi rapidamente esquecida. - Podem-te matar - suplicou Blanca abraçando-o. - Tomarei cuidado - tranquilizou-a Pedro Tercero. – Não ficarei muito tempo no mesmo sitio. Por isso não poderei ver-te todos os dias. Espera-me aqui neste lugar. Eu virei todas as vezes que puder. - Amo-te - disse ela soluçando. - Eu também. Voltaram a abraçar-se com o ardor insaciável próprio da sua idade, enquanto o burro continuava mastigando a erva. Blanca preparou as coisas para não regressar ao colégio, provocando a si própria vómitos com salmoura quente, com cerejas verdes e fadigas, apertando a cintura com uma cilha de cavalo, até que adquiriu fama de má saúde, que era justamente o que ela pretendia. Imitava tão bem os sintomas das mais diversas doenças que poderia ter enganado uma junta de médicos e ela mesma chegou a convencer-se de que era muito doente. Todas as manhãs, ao acordar, fazia uma revisão mental ao seu organismo para ver onde lhe doía e que novo mal a atormentava. Aprendeu a aproveitar qualquer circunstancia para se sentir doente, desde uma mudança de temperatura até ao pólen das flores, e a transformar todo o pequeno mal-estar em agonia. Clara era da opinião de que o melhor para a saúde era ter as mãos ocupadas, e assim manteve à distância os mal-estares da sua filha dando-lhe trabalho. A rapariga tinha de se levantar cedo, como todos os outros, tomar banho em água fria e dedicar-se aos seus afazeres, que incluíam ensinar na escola, coser na fábrica e fazer todas as tarefas de enfermaria, desde pôr pensos até suturar feridas com agulhas e fio de costureiro, sem que lhe valessem de nada os desmaios ao ver o sangue nem os suores frios quando tinha de limpar um vómito. Pedro Garcia, o velho, que já tinha cerca de noventa anos e apenas arrastava os ossos, partilhava a ideia de Clara de que as mãos são para se usar. Assim foi que um dia, quando Blanca se andava a lamentar de uma terrível enxaqueca, a chamou e sem preâmbulos lhe pôs uma bola de barro no regaço. Passou a tarde a ensinar-lhe a modelar a argila para fazer vasilhas de cozinha, sem que a rapariga se lembrasse das suas doenças. O velho não sabia que estava a dar a Blanca o que mais tarde seria o seu único meio de vida e o seu consolo nas horas mais tristes. Ensinou-a a mover o torno com o pé enquanto fazia voar as mãos sobre o barro brando, para fabricar vasilhas e cântaros. Mas muito depressa Blanca descobriu que os utensílios a aborreciam e que era muito mais divertido fazer figuras de animais e pessoas. Com o tempo, dedicou-se a fabricar um mundo em miniatura de animais domésticos e personagens dedicados a todos os ofícios, carpinteiros, lavadeiras, cozinheiras, todos com as suas pequenas ferramentas e móveis. - Isso não serve para nada! - disse Esteban Trueba quando viu a obra da filha. - Procuremos-lhe a utilidade - sugeriu Clara. Assim surgiu a ideia dos presépios. Blanca começou a produzir figurinhas para o presépio, não só os reis magos e os pastores, mas também uma multidão de pessoas dos tipos mais diversos e toda a espécie de animais, camelos e zebras de África, iguanas da América e tigres da Ásia, sem ter em conta para nada a zoologia própria de Belém. Depois compôs animais que inventava, pegando meio elefante com a metade de um crocodilo, sem saber que estava a fazer com barro o mesmo que sua tia Rosa, a quem não conheceu, fazia com os fios de bordar na sua gigantesca colcha, enquanto Clara especulava que, se as loucuras se repetem na família, deverá ser porque existe uma memória genética que impede que se percam no esquecimento. Os multitudinários presépios de Blanca transformaram-se numa curiosidade. Teve de treinar duas raparigas para a ajudarem, porque não dava vazão aos pedidos, nesse ano toda a gente queria ter um para a noite de Natal, especialmente porque eram de graça. Esteban Trueba determinou que a mania do barro estava bem como diversão de rapariga, mas que, se se transformasse em negócio, o nome dos Trueba seria colocado junto aos dos comerciantes que vendiam pregos nas casas de ferragens e peixe frito no mercado. Os encontros de Blanca e Pedro Tercero eram distanciados e irregulares, mas por isso mesmo mais intensos. Nesses anos, ela acostumou-se ao sobressalto e à espera, resignou-se com a ideia de que sempre se amariam às escondidas e deixou de alimentar o sonho de se casar e de viver numa das casinhas de seu pai. Frequentemente passava semanas sem que se soubesse alguma coisa dele, mas de repente aparecia ao longe um carteiro em bicicleta, um evangelista pregando com uma Bíblia no sovaco, ou um cigano falando numa língua pagã, todos eles tão inofensivos, que passavam sem levantar suspeitas ao olho vigilante do patrão. Reconhecia-o pelas suas pupilas negras. Não era a única: todos os caseiros de Las Tres Marias e muitos camponeses de outras herdades também o esperavam. Desde que o jovem era perseguido pelos patrões ganhou fama de herói. Todos queriam escondê-lo por uma noite, as mulheres teciam-lhe ponchos e peúgas para o Inverno e os homens guardavam-lhe a melhor aguardente e o melhor charque (Carne salgada e seca ao vento. (N. T)) da época. O seu pai, Pedro Segundo Garcia, suspeitava que o filho violava a proibição de Trueba e adivinhava os vestígios que deixava na sua passagem. Estava dividido entre o amor pelo filho e o seu papel de guardião da propriedade. Além disso, tinha medo de o reconhecer e também que Esteban lho lesse na cara, mas sentia uma secreta alegria ao atribuir-lhe algumas das coisas estranhas que estavam sucedendo no campo. A única coisa que não lhe passou pela imaginação, foi que as visitas do filho tivessem algo a ver com os passeios de Blanca Trueba ao rio, porque essa possibilidade não estava na ordem natural do mundo. Nunca falava do filho, excepto no seio da família, mas sentia-se orgulhoso dele e preferia vê-lo transformado em fugitivo do que ser mais um do montão, semeando batatas e colhendo pobreza como todos os outros. Quando ouvia cantarolar algumas das canções de galinhas e raposos, sorria pensando que o filho tinha conseguido mais adeptos com as suas baladas subversivas do que com os panfletos do Partido Socialista que distribuía incansavelmente. Capítulo VI A Vingança Ano e meio depois do terramoto, Las Tres Marias tinha voltado a ser a herdade modelo de antes. Estava de pé a grande casa senhorial igual à de origem, mas mais sólida e com uma instalação de água quente nas casas de banho. A água era como chocolate claro e por vezes até limos apareciam, mas sala alegre e em forte jorro. A bomba alemã era uma maravilha. Eu circulava por todo o lado sem mais apoio que um grosso bastão de prata, o mesmo que tenho agora e que a minha neta diz que o não uso por ser coxo, mas sim para dar força às minhas palavras, brandindo-o como um argumento contundente. A longa doença amoleceu o meu organismo, piorou o meu caracter. Reconheço que, por fim, nem Clara podia travar as minhas raivas. Outra pessoa teria ficado inválida para sempre por causa do acidente, mas eu fui ajudado pela força do desespero. Pensava na minha mãe, sentada na cadeira de rodas apodrecendo em vida, e por isso dava-me tenacidade para me conter e pôr-me a andar, ainda que fosse à custa de maldições. Creio que as pessoas tinham medo de mim. Até a própria Clara, que nunca tinha temido o meu mau génio, em parte porque eu tinha o cuidado de não o dirigir contra ela, andava assustada. Vê-la com medo de mim punha-me frenético. Pouco a pouco Clara foi mudando. Via-se que andava cansada e notei que se afastava de mim. Já não tinha simpatia por mim, as minhas dores não lhe davam compaixão mas enfado, dei conta de que evitava a minha presença. Atrever-me-ia a dizer que nessa época ela tinha mais prazer em ordenhar as vacas com Pedro Segundo, do que em fazer-me companhia no salão. Quanto mais distante estava Clara, maior era a necessidade que eu sentia do seu amor. Não tinha diminuído o desejo que tive dela ao casar-me, queria possui-la completamente, até ao seu último pensamento, mas aquela mulher diáfana passava ao meu lado como um sopro e, mesmo que a agarrasse com as duas mãos e a abraçasse com brutalidade, não podia aprisionála. O seu espírito não estava comigo. Quando me teve medo, a vida tornou-se-nos um purgatório. De dia, cada um de nós andava ocupado com as suas coisas. Tínhamos os dois muito que fazer. Só nos encontrávamos à hora das refeições e, então, era eu quem fazia toda a conversa porque ela parecia vaguear pelas nuvens. Falava muito pouco, tinha perdido aquele riso fresco e atrevido que foi a primeira coisa que gostei nela, já não deitava para trás a cabeça, rindo-se com todos os dentes. Sorria apenas. Pensei que a idade e o meu acidente nos estava separando, que estava aborrecida da vida matrimonial, isso acontece a todos os casais e eu não era um amante delicado, desses que oferecem flores a cada momento e dizem coisas bonitas. Mas tentei aproximar-me dela. Como o tentei, meu Deus! Aparecia no seu quarto quando estava atarefada com os cadernos de anotar a vida ou na mesa de pé-de-galo. Tratei inclusivamente de compartilhar esses aspectos da sua existência, mas ela não gostava que lessem nos seus cadernos e a minha presença cortava-lhe a inspiração quando conversava com os espíritos, de modo que tive de desistir. Abandonei também o propósito de estabelecer uma boa relação com Blanca. A minha filha desde pequenina era estranha e nunca foi a menina carinhosa e terna que eu teria desejado. Na realidade parecia um quirquincho (Mamífero da América do Sul de cuja carapaça os índios fazem um bandolim de doze cordas. (N. T.)). Desde que me lembro foi arisca comigo e não teve de superar o complexo de Édipo porque nunca o teve. Mas já era uma senhorita, parecia inteligente e madura para a sua idade, estava muito ligada à mãe. Pensei que poderia ajudar-me e tratei de a conquistar como aliada, davalhe presentes, tentava gracejar com ela, mas evitava-me também. Agora que já estou muito velho e posso falar disto sem perder a cabeça com raiva, creio que a culpa de tudo estava no seu amor por Pedro Tercero Garcia. Blanca era insubornável. Nunca pedia nada, falava menos que a mãe e, se eu a obrigava a dar-me um beijo de bons-dias, fazia-o com tão má vontade que ele me doía como uma bofetada. «Tudo mudará quando regressarmos à capital e fizermos uma vida civilizada», dizia eu então, mas nem Clara nem Blanca demonstravam o menor interesse em deixar Las Tres Marias, pelo contrário, cada vez que eu mencionava o assunto, Blanca dizia que a vida no campo lhe tinha voltado a dar a saúde, mas que ainda não se sentia forte, e Clara recordava-me que tinha muito que fazer no campo, que as coisas não estavam de modo a deixá-las em meio. A minha mulher não punha de parte os refinamentos a que tinha estado habituada e, no dia em que chegou a Las Tres Marias o carregamento de móveis e artigos domésticos que encomendei para lhe fazer surpresa, limitou-se a achar tudo muito bonito. Eu próprio tive de decidir onde se poriam as coisas, a ela isso parecia não lhe importar nada. A nova casa vestiu-se com um luxo que nunca tinha tido, nem sequer nos dias esplendorosos que antecederam meu pai, que a arruinou. Chegaram grandes móveis coloniais em carvalho e nogueira, trabalhados à mão, pesados tapetes de lã, candeeiros de ferro e cobre martelado. Encomendei na capital uma baixela de porcelana pintada à mão, digna de uma embaixada, cristaleira, quatro caixotes atafulhados de adornos, lençóis e mantas bordadas, uma colecção de discos de música clássica e ligeira com o seu moderno gira-discos. Qualquer mulher se teria encantado com tudo isso e teria tido ocupação para vários meses organizando a sua casa, menos Clara, que era impermeável a essas coisas. Limitou-se a ensinar um par de cozinheiras e treinar algumas raparigas, filhas dos caseiros, para servirem em casa, - e logo que se viu livre dos tachos e das vassouras regressou aos cadernos de anotar a vida e às cartas de tarot nos momentos de ócio. Passava a maior parte do dia ocupada na oficina de costura, na enfermaria e na escola. Eu deixava-a tranquila, porque esses afazeres justificavam-lhe a vida. Era uma mulher caridosa e generosa, com ânsia de fazer felizes os que a rodeavam, a todos menos a mim. Depois da derrocada construímos a cantina e, para lhe agradar, suprimi o sistema de papelinhos cor-de-rosa e comecei a pagar às pessoas com notas, porque Clara diria que isso lhes permitia fazer compras na aldeia e poupar. Não era certo. Só servia para os homens se embebedarem na taberna de San Lucas e as mulheres e crianças passarem dificuldades. Por causa desse tipo de coisas lutámos muito entre nós. Os caseiros eram a causa de todas as nossas discussões. Bom, nem de todas. Também discutíamos por causa da guerra mundial. Eu seguia o avanço das tropas nazis num mapa que tinha posto na parede do salão, enquanto Clara fazia peúgas para os soldados aliados. Blanca deitava as mãos à cabeça, sem compreender a causa da nossa paixão por uma guerra que não tinha nada a ver connosco e que estava acontecendo do outro lado do oceano. Suponho também que tínhamos mal-entendidos por outros motivos. Na realidade, muito poucas vezes estávamos de acordo em alguma coisa. Não creio que a culpa de tudo fosse o meu mau génio, porque eu era um bom marido, nem sombra do estoira-vergas que tinha sido em solteiro. Ela era a única mulher para mim. E ainda o é. Um dia Clara mandou pôr um ferrolho na porta do seu quarto e não voltou a aceitar-me na sua cama, excepto naquelas ocasiões em que eu forçava tanto a situação que negar-se teria significado uma ruptura definitiva. A princípio pensei que tinha algumas dessas misteriosas indisposições que dão às mulheres de vez em quando, ou seja, a menopausa, mas quando o assunto se prolongou por várias semanas, decidi falar com ela. Explicou-me com calma que a nossa relação matrimonial se tinha deteriorado e por isso tinha perdido a sua boa disposição para os folguedos carnais. Deduziu naturalmente que, se não tínhamos nada a dizer, também não podíamos partilhar a mesma cama, e pareceu surpreendida de que eu passasse todo o dia enraivecendo-me contra ela e à noite quisesse as suas caricias. Tentei fazer-lhe ver que nesse sentido os homens e as mulheres somos um pouco diferentes e que a adorava apesar de todas as minhas manias, mas foi inútil. Nesse tempo mantinha-me mais são e mais forte do que ela, apesar do meu acidente e de Clara ser mais nova. Com a idade eu tinha adelgaçado. Não tinha nem um grama de gordura no corpo e mantinha a mesma resistência e força da juventude. Podia passar todo o dia cavalgando, comer fosse o que fosse sem sentir a vesícula, o fígado e outros órgãos internos de que as pessoas falam constantemente. Doíam-me os ossos, isso sim. Nas tardes frias ou nas noites húmidas a dor dos ossos esmagados no terramoto era tão intensa que mordia a almofada para não ouvirem os meus gemidos. Quando não podia mais, enfiava um bom golo de aguardente e duas aspirinas pela goela abaixo, mas nem isso me aliviava. O estranho é que, se a minha sensualidade se tinha tornado mais selectiva com a idade, era quase tão inflamável como na minha juventude. Gostava de olhar as mulheres, e ainda hoje gosto. É um prazer estético quase espiritual. Mas só Clara despertava em mim um desejo concreto e imediato, porque na nossa longa vida em comum tínhamos aprendido a conhecer-nos e cada um tinha na ponta dos dedos a geografia precisa do outro. Ela sabia onde estavam os meus pontos mais sensíveis, podia dizer-me exactamente o que eu necessitava ouvir. Numa idade em que a maioria dos homens está aborrecido da sua mulher e necessita do estimulo de outras para encontrar a chispa do desejo, eu estava convencido que apenas com Clara podia fazer amor como nos tempos da lua-de-mel, incansavelmente. Não sentia a tentação de procurar outras. Recordo que começava a assediá-la ao cair da noite. De tarde ela sentava-se a escrever e eu fingia saborear o cachimbo, mas na realidade estava a espiá-la pelo canto do olho. Logo que eu calculava que se ia deitar – porque começava a limpar o aparo e a guardar os cadernos - adiantava-me. Ia a coxear até à casa de banho, arranjava-me, vestia um roupão de felpa episcopal que tinha comprado para a seduzir, mas que ela nunca pareceu dar conta da sua existência, ficava de ouvido colado à porta e esperava-a. Quando a ouvia avançar pelo corredor, assaltava-a. Tentei tudo, desde cobri-la de carícias e presentes até ameaçá-la de deitar a porta abaixo e moê-la com bengaladas, mas nenhuma dessas alternativas resolvia o abismo que nos separava. Suponho que era inútil que eu tentasse fazê-la esquecer com as minhas manifestações amorosas à noite o mau humor com que a atacava durante o dia. Clara evitava-me com aquele ar distraído que acabei por detestar. Não posso compreender o que me atraía tanto nela. Era. uma mulher madura, sem nenhum coquetismo, que arrastava ligeiramente os pés e tinha perdido a alegria injustificada que a fazia tão atraente na sua juventude. Clara não era sedutora nem terna comigo. Estou certo de que não me amava. Não havia razão para a desejar dessa forma descomedida e brutal que me afundava no desespero e no ridículo. Mas não podia evitá-lo. Os seus pequenos gestos, o seu suave odor a roupa limpa e sabão, a luz dos seus olhos, a graça da sua nuca delgada coroada pelos caracóis rebeldes, de tudo isso eu gostava nela. A sua fragilidade produzia em mim uma ternura insuportável. Queria protegê-la, abraçá-la, fazê-la rir como nos velhos tempos, tornar a dormir com ela ao meu lado, a sua cabeça no meu ombro, as pernas encolhidas debaixo das minhas, tão pequena e quente, a sua mão no meu peito, vulnerável e preciosa. Por vezes, tinha intenções de a castigar com uma fingida indiferença, mas ao cabo de alguns dias dava-me por vencido, porque parecia muito mais tranquila e feliz quando eu a ignorava. Fiz um furo na parede da casa de banho para a ver nua, mas isso punha-me em tal estado de perturbação que preferi voltar a tapá-lo com argamassa. Para a ferir, fiz gala de ir ao Farolito Roio, mas o seu único comentário foi que isso era melhor que forçar as camponesas, o que me surpreendeu, porque não imaginava que soubesse disso. Em face deste comentário, tornei a tentar as violações, nada mais do que para a incomodar. Pude comprovar que o tempo e o terramoto tinham feito estragos na minha virilidade e que já não tinha forças para rodear a cintura de uma robusta rapariga e alçá-la sobre a garupa do cavalo, e muito menos tirar-lhe a roupa aos puxões e penetrá-la contra a sua vontade. Estava na idade em que se necessita ajuda e ternura para fazer amor. Tinha ficado velho, porra! Ele foi a única pessoa que deu conta de que estava a diminuir. Notou-o pela roupa. Não era simplesmente por lhe sobrar nas costuras, mas por lhe ficarem grandes as mangas e as pernas das calças. Pediu a Blanca que se sentasse à máquina de costura, mas perguntava-se inquieto se Pedro Garcia, o velho, não lhe teria posto os ossos ao contrário e por isso estava encolhendo. Não o disse a ninguém, como não falou nunca das suas dores, por uma questão de orgulho. Por esses dias, preparavam-se as eleições presidenciais. Num jantar de políticos conservadores na povoação, Esteban Trueba conheceu o conde Jean de Satigny. Usava sapatos de pelica e casaco de linho cru, não suava como os demais mortais e cheirava a colónia inglesa, estava sempre queimado pelo hábito de meter uma bola com um pau através dum pequeno arco em plena luz do meio-dia e falava arrastando as últimas silabas das palavras, comendo os erres. Era o único homem que Esteban conhecia que punha verniz brilhante nas unhas e deitava colírio azul nos olhos. Tinha cartões de visita com o escudo da família e observava todas as regras conhecidas do civismo e outras inventadas por ele, como comer as alcachofras com pinças, o que provocava estupefacção geral. Os homens gozavam-no pelas costas, mas logo se viu que tratavam de imitar-lhe a sua elegância, os seus sapatos de pelica, a sua indiferença e o seu ar civilizado. O título de conde colocava-o num nível diferente ao dos outros emigrantes que tinham chegado da Europa Central fugindo às pestes do século passado, de Espanha escapando à guerra, do Médio Oriente com os seus negócios de turcos e arménios da Ásia a vender a sua comida típica e as suas bagatelas. O conde de Satigny não necessitava ganhar a vida, como fez saber a toda a gente. O negócio das chinchilas era só um passatempo para ele. Esteban Trueba tinha visto as chinchilas vadiando pela propriedade. Caçava-as a tiro, para não lhe devorarem as sementeiras, mas não lhe tinha ocorrido que esses roedores insignificantes pudessem tornar-se em casacos de senhora. Jean de Satigny procurava um sócio que entrasse com o capital, o trabalho, os criadouros e corresse todos os riscos, para dividir os lucros a meias. Esteban Trueba não era aventureiro em nenhum aspecto da sua vida, mas o conde francês tinha a graça alada e o engenho que podiam cativá-lo, por isso perdeu muitas noites acordado, estudando a proposta das chinchilas e fazendo contas. Entretanto, Monsieur de Satigny passava longas temporadas em Las Tres Marias, como convidado de honra. Jogava com a bolinha em pleno sol, bebia quantidades exorbitantes de sumo de melão sem açúcar e rondava delicadamente as cerâmicas de Blanca. Chegou, inclusivamente, a propor à rapariga exportá-las para outros lugares onde havia um mercado seguro para os artesanatos indígenas. Blanca fez por tirá-lo do erro, explicando-lhe que ela não tinha nada de índio nem a sua obra, mas a barreira da língua impediu que ele compreendesse o seu ponto de vista. O conde foi uma aquisição social para a família Trueba porque, desde o momento em que se instalou na propriedade, choveram os convites das herdades vizinhas, para as reuniões com as autoridades políticas da povoação e para todos os acontecimentos culturais e sociais da região. Todos queriam estar perto do francês, com a esperança de que algo da sua distinção se contagiasse, as jovenzinhas suspiravam ao vê-lo e as mães desejavam-no como genro, disputando entre si a honra de o convidar. Os cavalheiros invejavam a sorte de Esteban Trueba, que tinha sido escolhido para o negócio das chinchilas. A única pessoa que não se deslumbrou pelos encantos do francês e não se maravilhou pela maneira de descascar uma laranja com os talheres sem a tocar com os dedos, deixando as cascas em forma de flor, ou pela habilidade para citar poetas e filósofos franceses na língua natal, foi Clara, que todas as vezes que o via tinha de lhe perguntar o nome e se desconcertava quando o encontrava de roupão de seda a caminho da casa de banho da sua própria casa. Blanca, por seu lado, divertia-se com ele e agradecia-lhe a oportunidade de mostrar os seus melhores vestidos, pentear-se com esmero e de pôr a mesa com a melhor loiça inglesa e os candelabros de prata. - Pelo menos tira-nos da barbárie - dizia. Esteban Trueba estava menos impressionado pelo espalhafato do nobre do que pelas chinchilas. Pensava como diabo não lhe tinha ocorrido a ideia de curtir-lhes a pele, em vez de perder tantos anos criando aquelas malditas galinhas que morriam de qualquer diarreia sem importância, e aquelas vacas que por cada litro de leite que lhes ordenhava comiam um hectare de forragem, e uma caixa de vitaminas e além disso enchiam tudo de moscas e de merda. Clara e Pedro Segundo Garcia, em troca, não partilhavam o seu entusiasmo pelos roedores, ela por razões humanitárias, porque lhe parecia atroz criá-los para lhes arrancar a pele, e ele porque nunca tinha ouvido falar de criadores de ratos. Uma noite o conde saiu para fumar um dos seus cigarros orientais, especialmente trazidos do Líbano, vá lá alguém saber onde isso fica! como dizia Trueba, e para respirar o perfume das flores que subia em grandes baforadas do jardim e inundava os quartos. Passeou um pouco pelo terraço e mediu com a vista a extensão do parque que se estendia à volta da casa senhorial. Suspirou, comovido com aquela natureza pródiga que podia reunir, no mais esquecido pais da terra, todos os climas da sua invenção, a cordilheira e o mar, os vales e os cumes mais altos, rios de água cristalina e uma benigna fauna que permitia passear com toda a confiança, com a certeza de que não apareciam víboras venenosas ou feras esfomeadas, e, para total perfeição, nem havia negros rancorosos ou índios selvagens. Estava farto de percorrer países exóticos atrás de negócios de barbatanas de tubarão para afrodisíacos, ginseng para todos os males, figuras esculpidas pelos esquimós, piranhas embalsamadas do Amazonas e chinchilas para fazer casacos de senhora. Tinha trinta e oito anos, pelo menos isso confessava, e sentia que por fim tinha encontrado o paraíso na terra, onde podia montar empresas tranquilas com sócios ingénuos. Sentou-se num tronco a fumar no escuro. De súbito viu uma sombra agitar-se e teve a ideia fugaz de que podia ser um ladrão, mas em seguida pôla de parte, porque os bandidos naquelas terras estavam longe dali como os animais malignos. Aproximou-se com prudência e avistou Blanca, que deitava as pernas por uma janela e descia como um gato pela parede, caindo entre hortênsias sem o menor ruído. Vestia-se de homem, porque os cães já a conheciam e não necessitava de andar em pelota. Jean de Satigny viu-a afastar-se procurando as sombras do alpendre da casa e das árvores, pensou segui-la, mas teve medo dos mastins e pensou que não tinha necessidade disso para saber onde ia uma rapariga que salta por uma janela de noite. Sentiu-se preocupado, porque o que acabava de ver punha em perigo os seus planos. No dia seguinte, o conde pediu Blanca Trueba em casamento. Esteban, que não tinha tido tempo para conhecer bem a filha, confundiu a sua plácida amabilidade e entusiasmo em colocar os candelabros de prata na mesa com o amor. Sentiu-se muito satisfeito de que a filha, tão aborrecida e de má saúde, tivesse apanhado o galã mais solicitado da região. «Que terá ele visto nela?» perguntou a si próprio, admirado. Disse ao pretendente que devia consultar Blanca, mas que estava seguro de que não haveria nenhum inconveniente e que, por seu lado, se adiantava a dar-lhe as boas-vindas à família. Mandou chamar a filha, que nesse momento estava ensinando geografia na escola, e fechou-se com ela no escritório. Cinco minutos depois, abriu-se a porta violentamente e o conde viu sair a jovem com as faces coradas. Ao passar por ele atirou-lhe um olhar assassino e voltou-lhe a cara. Outro menos teimoso teria pegado nas malas e ido para o único hotel da povoação, mas o conde disse a Esteban que estava certo de conseguir o amor da jovem, se lhe dessem tempo para isso. Esteban Trueba ofereceu-lhe hospedagem em Las Tres Marias enquanto considerasse necessário. Blanca não disse nada, mas desde esse dia deixou de comer à mesa com eles e não perdeu oportunidade de fazer sentir ao francês que lhe era indesejável. Guardou os vestidos de festa, os candelabros de prata e evitou-o cuidadosamente. Disse ao pai que se ele tornava a mencionar o assunto do casamento regressava à capital no primeiro comboio que passasse pela estação e entrava como noviça no colégio. - Hás-de mudar de opinião - rugiu Esteban Trueba. - Duvido - respondeu ela. Nesse ano a chegada dos gémeos a Las Tres Marias foi um grande alívio. Levaram uma lufada de ar fresco e bulício ao clima opressivo da casa. Nenhum dos três irmãos soube apreciar os encantos do nobre francês, apesar dele fazer esforços discretos para ganhar a simpatia dos jovens. Jaime e Nicolau riam-se das suas maneiras, os sapatos de maricas e o apelido estrangeiro, mas Jean de Satigny nunca se ofendeu. O seu bom humor terminou por desarmá-los e conviveram o resto do Verão amigavelmente, chegando inclusivamente a aliarse para arrancar Blanca da raiva em que se tinha metido. - Já tens vinte e quatro anos, irmã. Queres ficar para tia? - diziam. Procuravam entusiasmá-la para cortar o cabelo e copiar os vestidos que faziam furor nas revistas, mas ela não tinha nenhum interesse por essa moda exótica que não tinha a menor oportunidade de sobreviver na poeirada do campo. Os gémeos eram tão diferentes entre si que não pareciam irmãos. Jaime era alto, forte, tímido e estudioso. Obrigado pela educação do internato, chegou a desenvolver com o desporto uma musculatura de atleta, mas na realidade considerava que essa era uma actividade esgotante e inútil. Não podia compreender o entusiasmo de Jean de Satigny em passar a manhã perseguindo uma bola com um pau para a meter num buraco, quando era mais fácil colocá-la com a mão. Tinha estranhas manias que se começaram a manifestar nessa época e que se foram acentuando ao longo da vida. Não gostava que respirassem perto, que lhe dessem a mão, que lhe fizessem perguntas pessoais, lhe pedissem livros emprestados ou lhe escrevessem cartas. Isso dificultava-lhe o trato com as pessoas mas não conseguiu isolá-lo, porque cinco minutos depois de o conhecerem, saltava à vista que, apesar da sua atitude atrabiliária, era generoso, cândido e tinha uma grande capacidade de ternura, que procurava inutilmente dissimular, porque isso o envergonhava. Interessava-se pelos outros muito mais do que queria admitir, era fácil comovê-lo. Em Las Tres Marias os caseiros chamavam-lhe «o patrãozinho» e iam ter com ele sempre que precisavam de alguma coisa. Jaime escutava-os sem comentários, respondia com monossílabos e terminava virando-lhes as costas, mas não descansava até solucionar o problema. Era insociável e a mãe dizia que nem mesmo quando era pequeno se deixava acariciar. Desde menino tinha gestos extravagantes, era capaz de tirar a roupa que levava vestida para a dar a outro, como o fez em várias ocasiões. O afecto e as emoções pareciam-lhe sinais de inferioridade e só com os animais perdia as barreiras do exagerado pudor, rebolava no chão com eles, acariciava-os, dava-lhes de comer na boca e dormia abraçado aos cães. Podia fazer o mesmo com as crianças de tenra idade, sempre que ninguém o estivesse a observar, porque em frente das pessoas preferia fazer o papel de homem rijo e solitário. A formação britânica de doze anos de colégio não conseguiu desenvolver nele o spleen que se considerava o melhor atributo num cavalheiro. Era um sentimental incorrigível. Por isso, interessou-se pela política e decidiu que não seria advogado como o pai lhe exigia, mas médico para ajudar os necessitados como lhe sugeriu a mãe que o conhecia melhor. Jaime tinha brincado com Pedro Tercero Garcia durante toda a infância, mas foi nesse ano que aprendeu a admirá-lo. Blanca teve de sacrificar um par de encontros no rio, para que os dois jovens se reunissem. Falavam de justiça, de igualdade, de movimento camponês, de socialismo, enquanto Blanca os escutava com impaciência, desejando que acabassem depressa para ficar só com o seu amante. Essa amizade uniu os dois rapazes até à morte, sem que Esteban Trueba o suspeitasse. Nicolau era formoso como uma donzela. Herdou a delicadeza e a transparência da pele da mãe, era pequeno, delgado, astuto e rápido como um raposo. De inteligência brilhante, sem fazer nenhum esforço ultrapassava o irmão em tudo o que empreendiam juntos. Tinha inventado um jogo para atormentá-lo: punha-se do contra em qualquer tema e argumentava com tanta habilidade e certeza que terminava por convencer Jaime, que estava equivocado, obrigando-o a admitir o erro. - Estás certo de que eu tenho razão? - dizia finalmente Nicolau ao irmão. - Sim, tens razão - grunhia Jaime, cuja rectidão o impedia de discutir de má-fé. - Ah! Alegro-me - exclamava Nicolau. - Agora vou-te demonstrar que quem tem razão és tu e que o equivocado sou eu. Vou-te dar os argumentos que tu me deverias dar se fosses inteligente. Jaime perdia a paciência e cala-lhe em cima com pancada, mas a seguir arrependia-se, porque era muito mais forte que o irmão e a sua própria força fazia-o sentir culpado. No colégio, Nicolau usava o engenho para chatear os outros e, quando se via obrigado a enfrentar uma situação de violência, chamava o irmão para o defender enquanto ele o animava pelas costas. Jaime acostumou-se a dar a cara por Nicolau e chegou a parecer-lhe natural ser castigado em seu lugar, fazer as suas tarefas e esconder as suas mentiras. O interesse principal de Nicolau nesse período da sua juventude, à parte as mulheres, foi desenvolver a habilidade de Clara para adivinhar o futuro. Comprava livros sobre sociedades secretas, de horóscopos e de tudo o que tivesse características sobrenaturais. Nesse ano deu-lhe para desmascarar milagres, comprou As Vidas dos Santos em edição popular e passou o Verão procurando explicações simples nas mais fantásticas proezas de ordem espiritual. A mãe ria-se dele. - Se não podes perceber como funciona o telefone, meu filho - dizia Clara - como queres compreender os milagres? O interesse de Nicolau pelos assuntos sobrenaturais começou a manifestar-se um par de anos antes. Nos fins-de-semana, em que podia sair do internato, ia visitar as três irmãs Mora ao seu velho moinho, para aprender ciências ocultas. Mas viu-se logo que não tinha nenhuma disposição natural para a clarividência ou a telequinésia, de modo que teve de conformar-se com a mecânica das cartas astrológicas, o tarot e os pauzinhos chineses. Como uma coisa traz a outra, conheceu em casa das Mora uma formosa jovem chamada Amanda, um pouco mais velha do que ele, que o iníciou na meditação ioga e na acupunctura, ciências com as quais Nicolau chegou a curar o reumatismo e outras doenças menores, mais do que o seu irmão conseguia com a medicina tradicional, depois de sete anos de estudo. Mas tudo isso foi muito depois. Nesse Verão, tinha vinte e um anos e aborrecia-se no campo. O irmão vigiava-o estreitamente para que não incomodasse as raparigas de Las Tres Marias, apesar de Nicolau se aproveitar disso para seduzir todas as adolescentes da zona, com artes de galantaria que nunca se tinham visto por aquelas bandas. O resto do tempo passava-o a investigar milagres, tratando de aprender os truques da mãe para mover o saleiro com a força da mente, e escrever versos apaixonados a Amanda, que os devolvia pelo correio, corrigidos e melhorados, sem que isso conseguisse desanimar o jovem. Pedro Garcia, o velho, morreu pouco antes das eleições presidenciais. O pais estava perturbado pelas campanhas políticas, os comboios triunfais iam do Norte para o Sul levando os candidatos instalados na cauda, com a sua corte de prosélitos, saudando todos do mesmo modo, prometendo todos as mesmas coisas, embandeirados e com uma chinfrineira de orfeão e altifalantes que espantava a calma da paisagem e embasbacava o gado. O velho tinha vivido tanto que já não era nada mais que um montão de ossinhos de cristal cobertos por uma pelanga amarela. O rosto era uma renda de rugas. Falava enquanto caminhava, com um matraquear de castanholas, não tinha dentes e só podia comer papinhas de bebé, além de cego tinha ficado surdo, mas nunca lhe faltou o conhecimento das coisas e a memória do passado e do imediato. Morreu sentado na cadeira de vime ao entardecer. Gostava de ficar à porta do rancho sentindo cair a tarde, que ele adivinhava pela mudança subtil de temperatura, pelos ruídos do pátio, o trabalho das cozinhas, o silêncio das galinhas. Foi ali que a morte o encontrou. A seus pés, estava o bisneto Esteban Garcia, que já tinha à volta de dezoito anos, ocupado em vazar com um prego os olhos a um frango. Era filho de Esteban Garcia, o único bastardo do patrão que levou o seu nome, embora não o apelido. Ninguém recordava a sua origem nem a razão pelo qual tinha esse nome, excepto ele mesmo, porque a sua avó Pancha Garcia, antes de morrer conseguiu envenenar-lhe a sua infância com a história de que, se o seu pai tivesse nascido no lugar de Blanca, Jaime ou Nicolau, teria herdado Las Tres Marias e poderia ter chegado a Presidente da República, só por o ter querido. Naquela região semeada de filhos ilegítimos e de outros legítimos que não conheciam o pai, ele foi provavelmente o único que cresceu odiando o seu apelido. Viveu castigado pelo rancor contra o patrão, contra a avó seduzida, contra o pai bastardo e contra o próprio destino inexorável de labrego. Esteban Trueba não o distinguia entre os restantes miúdos da propriedade, e era mais um no montão de crianças que cantavam o hino nacional na escola e faziam bicha para receber o presente de Natal. Não se recordava de Pancha Garcia nem de ter tido um filho dela, e muito menos daquele neto malicioso que o odiava e que não o observava de longe para lhe imitar os gestos e copiar a voz. O menino passava as noites imaginando horríveis doenças ou acidentes que pusessem fim à existência do patrão e de todos os seus filhos para ele poder herdar a propriedade. Então transformava Las Tres Marias no seu reino. Acarinhou essas fantasias toda a vida, e mesmo depois de saber que jamais teria alguma coisa por via da herança culpou sempre Trueba da existência obscura que tinha forjado contra ele e sentia-se castigado, inclusivamente nos dias em que chegou ao cume do poder e os teve todos na mão. O menino percebeu que algo tinha mudado no velho. Aproximou-se, tocou nele e o corpo cambaleou. Pedro Garcia caiu no chão como um saco de ossos. Tinha as pupilas cobertas pela película leitosa que os tinha deixado sem luz ao longo de um quarto de século. Esteban Garcia pegou no prego e dispunha-se a picar-lhe os olhos, quando chegou Blanca e o afastou com um empurrão, sem suspeitar que aquela criança escura e malvada era seu sobrinho e que dentro de alguns anos seria o instrumento de uma tragédia para a sua família. - Deus meu, o velhinho morreu! - soluçou inclinando-se sobre o corpo encarquilhado do ancião que lhe povoara a infância de contos e lhe protegera os amores clandestinos. Enterraram Pedro Garcia, o velho, com um velório de três dias em que Esteban Trueba ordenou que não se regateassem gastos. Acomodaram-lhe o corpo num caixão de pinho rústico, com o traje domingueiro, o mesmo que usou quando se casou e que vestia para votar e receber os seus cinquenta pesos no Natal. Vestiram-lhe a única camisa branca, que lhe ficava muito folgada no pescoço, porque a idade o tinha encolhido, a gravata de luto e um cravo vermelho na lapela, como fazia sempre que havia festa. Seguraram-lhe a mandíbula com um lenço e puseram-lhe o chapéu negro, porque tinha dito muitas vezes que o queria tirar para saudar Deus. Não tinha sapatos, mas Clara roubou uns a Esteban Trueba para que todos vissem que não ia descalço para o Paraíso. Jean de Satigny entusiasmou-se com o funeral, tirou da sua bagagem uma máquina fotográfica com tripé e fez tantos retratos ao morto que os seus familiares pensaram que lhe podia roubar a alma e por precaução escavacaram as chapas. Ao velatório acudiram camponeses de toda a região porque Pedro Garcia, no século de vida, tinha-se aparentado com muitos habitantes da província. Chegou a bruxa, que era ainda mais velha do que ele, com vários índios da tribo, os quais a uma ordem sua começaram a chorar o finado e não deixaram de o fazer até terminar a pândega, três dias depois. As pessoas juntaram-se à volta do rancho do velho, a beber vinho, tocar guitarra e vigiar os assados. Também chegaram dois padres de bicicleta, para benzer os restos mortais de Pedro Garcia e a dirigir os ritos fúnebres. Um deles era um gigante rubicundo com forte acento espanhol, o padre José Dulce Maria, a quem Esteban Trueba conhecia de nome. Esteve quase a impedir-lhe a entrada na sua propriedade, mas Clara convenceu-o de que não era o momento de antepor os seus ódios políticos ao fervor cristão dos camponeses. «Pelo menos porá alguma ordem nos assuntos da alma», disse ela. De maneira que Esteban Trueba acabou por lhe dar as boas-vindas e convidá-lo a ficar em sua casa com o irmão leigo, que não abria a boca e olhava sempre para o chão, com a cabeça de lado e as mãos juntas. O patrão estava comovido com a morte do velho que lhe tinha salvo as sementeiras das formigas e a vida da invalidez, e queria que todos recordassem esse enterro como um acontecimento. Os padres reuniram os caseiros e os visitantes na escola, para voltar a dar uma passagem nos esquecidos Evangelhos, e dizer uma missa pelo descanso da alma de Pedro Garcia. Depois retiraram-se para o quarto que lhes tinham dado na casa senhorial, enquanto os outros continuavam na patuscada que tinha sido interrompida com a sua chegada. Essa noite, Blanca esperou que se calassem as guitarras e o choro dos índios e que todos fossem para a cama, para saltar pela janela do quarto e enfiar na direcção habitual, protegida pelas sombras. Tornou a fazê-lo durante as três noites seguintes, até que os sacerdotes se foram embora. Todos menos os seus pais souberam que Blanca se encontrava com um deles no rio. Era Pedro Tercero Garcia, que não quis perder o funeral do avô e aproveitou a sotaina para falar aos trabalhadores casa por casa, explicando-lhes que as próximas eleições eram a sua oportunidade de sacudir o jugo com que sempre tinham vivido. Escutavam-no surpreendidos e confusos. O seu tempo media-se por estações, os seus pensamentos por gerações, eram lentos e prudentes. Só os mais jovens, os que tinham rádio e ouviam as notícias, os que às vezes iam à povoação e conversavam com os sindicalistas podiam seguir o fio das suas ideias. Os restantes escutavam-no porque o rapaz era o herói perseguido pelos patrões, mas no fundo estavam convencidos de que dizia loucuras. - Se o patrão descobre que vamos votar nos socialistas, fodemo-nos - disseram. - Não pode saber! O voto é secreto - alegou o falso padre. - Isso pensas tu, filho - respondeu Pedro Segundo, seu pai. - Dizem que é secreto, mas depois sabem sempre em quem votamos. Além disso, se ganham os do teu partido, vão-nos pôr na rua, não teremos trabalho. Eu vivi sempre aqui. Que faria eu? - Não nos podem correr a todos, porque o patrão perde mais quevocês se vocês se vão embora - argumentou Pedro Tercero. - Não importa por quem vamos votar. Eles ganham sempre. - Mudem o voto - disse Pedro Tercero. - Mandaremos gente do partido para controlar as mesas de voto e para verificar se as urnas ficam seladas. Mas os camponeses desconfiavam. A experiência havia-lhes ensinado que o raposo acaba sempre por comer as galinhas, apesar das baladas subversivas que andavam de boca em boca cantando o contrário. Por isso, quando passou o comboio do novo candidato do Partido Socialista, um doutor míope e carismático que movia multidões com o seu discurso inflamado, eles olharam-no da estação, vigiados pelos patrões que montavam um cerco à sua volta, armados com caçadeiras e cajados. Escutaram respeitosamente as palavras do candidato, mas não se atreveram a fazer-lhe nem um gesto de saudação, excepto alguns braçais que acudiram em bando munidos de paus e picaretas, que o vitoriaram até se esganiçarem porque eles não tinham nada a perder, eram nómadas do campo, vagueavam pela região sem trabalho fixo nem família, sem amo e sem medo. Pouco depois da morte e do memorável enterro de Pedro Garcia, o velho, Blanca começou a perder as cores de maçã e a sofrer fadigas naturais que não eram produzidas por deixar de respirar e vómitos matinais que não eram provocados por salmoura quente. Pensou que a causa estava no excesso de comida, era a época dos pêssegos dourados, dos damascos, do milho tenro preparado em caçarolas de barro e perfumado com alfavaca, era o tempo de fazer as marmeladas e as conservas para o Inverno. Mas o jejum, a maçela, os purgantes e o repouso não a curaram. Perdeu o entusiasmo pela escola, pela enfermaria e até pelos presépios de barro, tornou-se mole e sonolenta, podia passar horas deitada à sombra olhando o céu, sem se interessar por nada. A única actividade que manteve foram as escapadas nocturnas no rio com Pedro Tercero. Jean de Satigny, que não se tinha dado por vencido no seu assalto romântico, observava-a. Por discrição, passava umas temporadas no hotel da povoação e fazia algumas viagens curtas à capital, donde regressava carregado de literatura sobre as chinchilas, as suas gaiolas, o seu alimento, as suas doenças, os seus métodos reprodutivos, a forma de curtir-lhes a pele e, em geral, tudo o que dizia respeito a esses pequenos animais cujo destino era transformarem-se em estolas. Na maior parte do Verão, o conde foi hóspede em Las Tres Marias. Era um visitante encantador, bem educado, tranquilo e alegre. Tinha sempre uma frase amável na ponta dos lábios, celebrava a comida, divertia-os à tarde tocando piano no salão, onde competia com Clara nos nocturnos de Chopin, e era uma fonte inesgotável de anedotas. Levantava-se tarde e passava uma ou duas horas dedicado ao seu arranjo pessoal, fazia ginástica, trotava à volta da casa sem se importar com a chacota dos rudes camponeses, remolhava-se na banheira de água quente, e demorava-se muito a escolher a roupa para cada ocasião. Era um esforço perdido, já que ninguém lhe apreciava a elegância e, frequentemente, a única coisa que conseguia com os trajes ingleses de montar, os casacos de veludo e os chapéus tiroleses com pena de faisão era que Clara, com a melhor das intenções lhe oferecesse roupa mais apropriada para o campo. Jean não perdia o bom humor, aceitava os sorrisos irónicos do dono da casa, as más caras de Blanca e a perene distracção de Clara, que ao fim de um ano ainda continuava a perguntar-lhe o nome. Sabia cozinhar algumas receitas francesas, muito esmeradas e magnificamente apresentadas, com as quais contribuía quando tinham convidados. Era a primeira vez que viam um homem interessado pela cozinha, mas supuseram que eram costumes europeus e não se atreveram a dizer-lhe piadas para não passar por ignorantes. Nas suas viagens à capital, trazia, para além do respeitante às chinchilas, revistas de moda, os folhetins de guerra que se haviam popularizado para criar o mito do soldado heróico e novelas românticas para Blanca. Nas conversas à sobremesa referia-se, por vezes, com tom de mortal aborrecimento, aos seus Verões com a nobreza europeia nos castelos de Liechtenstein ou na Costa Azul. Nunca deixava de dizer que estava feliz por ter trocado tudo isso pelo encanto da América. Blanca perguntava-lhe por que razão não tinha escolhido as Caraíbas, ou pelo menos um pais de mulatas, coqueiros e tambores, se o que buscava era o exotismo, mas ele achava que não havia na terra outro sitio mais agradável que aquele pais esquecido do mundo. O francês não falava da vida pessoal, excepto para fornecer alguns indícios imperceptíveis que permitiam ao interlocutor astuto dar-se conta do seu esplendoroso passado, da sua fortuna incalculável e da sua nobre origem. Não se conhecia com certeza o seu estado civil, a sua idade, a sua família ou de que parte da França provinha. Clara era da opinião que tanto mistério era perigoso e tratou de desentranhá-lo com as cartas do tarot, mas Jean não permitiu que lhe tirassem a sorte nem que lhe investigassem as linhas da mão. Nem sabia o seu signo do zodíaco. Para Esteban Trueba tudo isso não tinha importância. Para ele era suficiente que o conde estivesse disposto a entretê-lo com uma partida de xadrez ou de dominó, que fosse habilidoso e simpático e nunca pedisse dinheiro emprestado. Desde que Jean de Satigny visitava a casa, era muito mais suportável o aborrecimento do campo, onde às cinco da tarde não havia nada mais para fazer. Além disso, gostava que os vizinhos o invejassem por ter aquele hóspede distinto em Las Tres Marias. Corria o boato de que Jean pretendia Blanca Trueba, mas nem por isso deixou de ser o galã predilecto das mães casamenteiras. Clara também o estimava, ainda que não tivesse nenhum cálculo matrimonial. Por seu lado, Blanca acabou por se acostumar à sua presença. Era tão discreto e suave no trato que pouco a pouco Blanca esqueceu a proposta matrimonial. Chegou a pensar que tinha sido uma espécie de brincadeira do conde. Tornou a tirar os candelabros de prata do armário, a pôr a mesa com a loiça inglesa e a usar os vestidos da cidade nas tertúlias da tarde. Frequentemente, Jean convidava-a para ir à povoação ou pedialhe que o acompanhasse nos seus numerosos convites sociais. Nessas oportunidades Clara tinha de ir com eles, porque Esteban Trueba era inflexível nesse ponto: não queria que vissem a filha sozinha com o francês. Em contrapartida, permitia-lhes passear sem chaperon pela propriedade, desde que não se afastassem demasiado e que regressassem antes de anoitecer. Clara dizia que se queriam cuidar da virgindade da jovem isso era muito mais perigoso que ir tomar chá à herdade Uzcátegui, mas Esteban estava seguro de que não havia nada a temer de Jean, já que as suas intenções eram nobres, tinha de precaver-se era das más línguas, que podiam destroçar a honra da filha. Os passeios campestres de Jean e de Blanca consolidaram uma boa amizade. Davam-se bem. Gostavam ambos de sair a meio da manhã a cavalo, com a merenda no cesto e várias malinhas de lona e couro com a bagagem de Jean. O conde aproveitava todas as paragens para pôr Blanca contra a paisagem e fotografá-la, apesar de ela resistir um pouco porque se sentia vagamente ridícula. Esse sentimento justificava-se ao ver os retratos revelados, onde aparecia com um sorriso que não era o seu, numa postura incómoda e com um ar de infelicidade, devido, segundo Jean, a que não era capaz de posar com naturalidade e, segundo ela, porque ele a obrigava a pôr-se torcida e aguentar a respiração durante longos segundos até que se imprimisse a chapa. De uma maneira geral, escolhiam um lugar sombrio debaixo das árvores, estendiam uma manta sobre a erva e sentavam-se para passar algumas horas. Falavam da Europa, de livros, de histórias familiares de Blanca ou das viagens de Jean. Ela ofereceu-lhe um livro do Poeta e ele entusiasmou-se tanto que aprendeu longas passagens de memória e podia recitar os poemas sem vacilar. Dizia que era o melhor que se tinha escrito em matéria de poesia e que nem sequer no francês, o idioma das artes, havia alguma coisa que pudesse comparar-se. Não falavam dos seus sentimentos. Jean era solicito, mas não suplicante ou insistente, pelo contrário fraternal e brincalhão. Beijava-lhe a mão para se despedir, fazia-o com um olhar de escolar que dava todo o romantismo ao gesto. Se lhe admirava um vestido, um guisado ou uma figura do presépio, o seu tom tinha um sabor irónico que permitia interpretar a frase de muitas maneiras. Se cortava flores para ela ou a ajudava a desmontar do cavalo, fazia-o com tal desenvoltura que tornava o galanteio uma atenção de amigo. De qualquer modo, para o prevenir, Blanca fez-lhe saber, sempre que se apresentou ocasião, que não casaria com ele nem morta. Jean de Satigny sorria com o brilhante sorriso de sedutor, sem dizer nada, e o mínimo que Blanca podia notar é que era muito mais gentil que Pedro Tercero. Blanca não sabia que Jean a espiava. Tinha-a visto saltar pela janela vestida de homem em muitas ocasiões. Seguiu-a algum tempo, mas voltava para trás, temendo que os cães o surpreendessem na escuridão. Todavia, pela direcção que ela tomava, tinha concluído que ia sempre rumo ao rio. Entretanto, Trueba não acabara de se decidir a respeito das chinchilas. Como experiência, acedeu em instalar uma gaiola com alguns casais daqueles roedores, imitando em pequena escala a grande indústria modelo. Foi a única vez que se viu Jean de Satigny a trabalhar de mangas arregaçadas. No entanto, as chinchilas contraíram uma doença própria das ratazanas e foram morrendo em menos de duas semanas. Nem sequer lhes puderam curtir as peles porque o pêlo pôs-se-lhes opaco e cala-lhes da pele como penas de ave molhada com água a ferver. Jean viu horrorizado os cadáveres pelados, com as patas tesas e os olhos brancos, deitando por terras as esperanças de convencer Esteban Trueba, que perdeu todo o entusiasmo pela pelaria ao ver aquela mortandade. - Se a peste tivesse dado à indústria modelo estaria totalmente arruinado - concluiu Trueba. Entre a peste das chinchilas e as escapadelas de Blanca, o conde passou vários meses ocupando o tempo. Começava a estar cansado daquelas diligências e pensava que Blanca nunca se iria prender aos seus encantos. Vendo que o criador de roedores nunca mais se decidia, resolveu que era melhor precipitar as coisas antes que outro mais esperto ficasse com a herdeira. Além disso, começava a gostar de Blanca, agora que estava mais robusta e com aquela languidez que lhe tinha atenuado as maneiras de camponesa. Preferia as mulheres plácidas e opulentas, e a visão de Blanca deitada sobre almofadões observando o céu à hora da sesta recordava-lhe a mãe. Por vezes, conseguia comovê-lo. Jean aprendeu a adivinhar, por pequenos pormenores imperceptíveis para os outros, quando Blanca tinha já planeada uma excursão nocturna ao rio. Nessas ocasiões, a jovem ficava sem jantar, com o pretexto duma dor de cabeça, despedia-se cedo e tinha um brilho estranho nas pupilas, uma impaciência e uma ânsia nos gestos que ele conhecia. Uma noite decidiu segui-la até ao fim, para terminar com aquela situação que ameaçava prolongar-se indefinidamente. Estava seguro que Blanca tinha um amante, mas acreditava que não podia ser nada de sério. Pessoalmente, Jean de Satigny não tinha nenhum preconceito em relação à virgindade, nem tinha posto a si próprio esse assunto quando decidiu pedi-la em casamento. O que nele lhe interessava eram outras coisas, que não se perderiam por um momento de prazer na margem do rio. Depois de Blanca se retirar para o quarto e o resto da família também, Jean de Satigny ficou sentado no salão, às escuras, atento aos ruídos da casa, até à hora em que calculou que ela saltasse pela janela. Então saiu para o pátio e ficou entre as árvores à espera dela. Esteve escondido na sombra mais de meia hora, sem que nada de anormal perturbasse a paz da noite. Aborrecido de esperar, dispunha-se a retirar-se quando reparou que a janela de Blanca estava aberta. Viu que ela tinha saltado antes que ele se colocasse no jardim a vigiá-la. - Merde - resmungou em francês. Fazendo votos por que os cães não alertassem toda a casa com o seu ladrar e não lhe saltassem em cima, dirigiu-se para o rio pelo caminho que tinha visto Blanca tomar doutras vezes. Não estava habituado a andar com o calçado fino pela terra lavrada nem a saltar pedras e ladear charcos, mas a noite estava muito clara, com uma formosa lua cheia iluminando o céu com um resplendor fantasmagórico e, mal lhe passou o medo de que aparecessem os cães, pôde apreciar a beleza do momento. Andou um bom quarto de hora antes de avistar os primeiros canaviais da margem e então redobrou de prudência e aproximou-se mais silenciosamente, tendo cuidado nos passos para não pisar ramos que o pudessem denunciar. A lua reflectia-se na água com um brilho de cristal e a brisa abanava suavemente as canas e as copas das árvores. Reinava o mais completo silêncio e por breves instantes teve a ilusão de que estava vivendo um sonho de sonâmbulo, no qual ia caminhando sem avançar, sempre no mesmo sitio encantado, onde o tempo se tinha detido e onde tentava tocar as árvores, que pareciam estar ao alcance da mão, e encontrava o vazio. Teve de fazer um esforço para recuperar o habitual estado de espírito, realista e pragmático. Num recanto da paisagem, entre grandes pedras cinzentas iluminadas pela luz da Lua, viu-os, tão perto que quase os podia tocar. Estavam nus. O homem estava de costas, com a cara virada para o céu, com os olhos fechados, mas não teve dificuldade em reconhecer o sacerdote jesuíta que tinha ajudado à missa do funeral de Pedro Garcia, o velho. Isso surpreendeu-o. Blanca dormia com a cabeça apoiada no ventre liso e moreno do amante. A ténue luz lunar punha reflexos metálicos nos seus corpos e Jean de Satigny estremeceu ao ver a harmonia de Blanca, que nesse momento lhe pareceu perfeita. O elegante francês levou quase um minuto a abandonar o estado de sonho em que a visão dos enamorados o tinha mergulhado, a placidez da noite, a Lua e o silêncio do campo, e ao dar-se conta de que a situação era mais grave do que tinha imaginado. Na atitude dos amantes reconheceu o abandono próprio dos que se conhecem há muito tempo. Aquilo não tinha um aspecto de aventura erótica de Verão, como supusera, mas de um casamento da carne e do espírito. Jean de Satigny não podia saber que Blanca e Pedro Tercero tinham dormido assim no primeiro dia em que se conheceram e que o continuaram a fazer sempre que puderam, ao longo desses anos, mas apesar disso percebeu-o por instinto. Procurando não fazer o mais pequeno ruído que os pudesse alertar, deu meia volta e regressou, pensando como encarar o assunto. Ao chegar a casa, já tinha tomado a decisão de contar tudo ao pai de Blanca, porque a ira sempre pronta de Esteban Trueba lhe pareceu o melhor meio para resolver o problema. «Eles que se amanhem», pensou. Jean de Satigny não esperou pela manhã. Bateu à porta do quarto do anfitrião e, antes que este conseguisse sair completamente do sono, deu-lhe a sua versão. Disse que não podia dormir com o calor e que, para tomar ar, tinha caminhado distraidamente em direcção ao rio e encontrara o deprimente espectáculo da sua futura noiva dormindo nos braços do jesuíta barbudo, nus à luz da Lua. Por um instante, isso desorientou Esteban Trueba, que não podia imaginar sua filha deitada com o padre José Dulce Maria, mas em seguida percebeu o que se tinha passado, da burla de que tinha sido vitima durante o enterro do velho e de que o sedutor não podia ser outro senão Pedro Tercero Garcia, aquele maldito filho de uma cadela que lho haveria de pagar com a vida. Vestiu as calças a toda a pressa, calçou as botas, pôs a espingarda ao ombro e tirou da parede o cavalo marinho. - O senhor espera-me aqui - ordenou ao francês, que de qualquer modo não tinha nenhuma intenção de o acompanhar. Esteban Trueba correu ao estábulo, montou no cavalo sem o selar. Ia a espumar de indignação, com os ossos soldados reclamando pelo esforço e o coração saltando no peito. «Vou matá-los, aos dois», resmungava como uma ladainha. Saiu para o caminho, na direcção indicada pelo francês, mas não teve necessidade de chegar ao rio, porque a meio encontrou Blanca, que regressava a casa cantarolando, com o cabelo em desalinho, a roupa suja e o ar feliz de quem não tinha nada que pedir à vida. Ao ver a filha, Esteban Trueba não pôde conter o mau caracter e correu para ela com o cavalo e o chicote no ar, descarregando-lhe uma chicotada atrás da outra, até que a rapariga caiu e ficou estendida, imóvel na lama. O pai saltou do cavalo, sacudiu-a até a fazer voltar a si e gritou-lhe todos os insultos conhecidos e outros inventados no arrebatamento da situação. - Quem é? Diga-me o seu nome ou mato-a - exigiu-lhe. - Não lhe direi nunca - soluçou ela. Esteban Trueba compreendeu que aquele não era o sistema para obter alguma coisa da filha, que tinha herdado a sua própria teimosia. Viu que se tinha excedido no castigo, como sempre. Fê-la subir para o cavalo e voltaram a casa. O instinto, ou o alvoroço dos cães, acordaram Clara e os criados, que esperavam à porta com todas as luzes acesas. A única pessoa que não se viu por nenhum lado foi o conde, que na confusão aproveitou para fazer as malas, atrelar os cavalos ao coche e partir discretamente para o hotel da povoação. - Que fizeste Esteban, por Deus! - exclamou Clara ao ver a filha coberta de barro e sangue. Clara e Pedro Segundo Garcia levaram Blanca em braços para a cama. O administrador tinha empalidecido mortalmente, mas não disse nem uma só palavra. Clara lavou a filha, aplicou-lhe compressas frias nas fontes e acarinhou-a até que conseguiu tranquilizá-la. Depois deixou-a a dormir, foi encontrar-se com o marido, que se tinha fechado no escritório e passeava dando murros nas paredes, dizendo maldições e dando pontapés nos móveis. Ao vêla, Esteban dirigiu toda a fúria contra ela, culpando-a de ter criado Blanca sem moral, sem sentido de classe, porque podia compreender-se se ela o tivesse feito com alguém bemnascido, mas não com um labrego, um boçal, um fanático, um ocioso, um inútil. - Devia tê-lo morto quando lho prometi! Deitando-se com a minha própria filha! Juro que o vou procurar e quando o agarrar capo-o, corto-lhe os tomates, ainda que seja a última coisa que faça na minha vida, juro por minha mãe que ele se vai arrepender de ter nascido. - Pedro Tercero Garcia não fez nada que tu próprio não tenhas feito - disse Clara, quando pôde interrompê-lo. - Tu também te deitaste com mulheres solteiras que não são da tua classe. A diferença é que ele fê-lo por amor, e Blanca também. Trueba olhou-a, imobilizado pela surpresa. Por um instante a sua ira pareceu esvaziar-se e não quis acreditar no que ouvia, mas imediatamente uma onda de sangue subiu-lhe à cabeça. Perdeu o domínio e desferiu um murro na cara da mulher, atirando-a contra a parede. Clara caiu sem um grito. Esteban pareceu despertar de um transe, ajoelhou-se a seu lado, balbuciando, chorando, pedindo desculpas e chamando-a pelos nomes ternos que só usava na intimidade, sem compreender como tinha podido levantar a mão para ela, que era o único ser que realmente lhe importava e a quem nunca, nem mesmo nos piores momentos da sua vida em comum, tinha deixado de respeitar. Levantou-a em braços, sentou-a carinhosamente num cadeirão, molhou um lenço para lhe pôr na testa e fez-lhe beber um pouco de água. Por fim, Clara abriu os olhos. Deitava sangue pelo nariz. Quando abriu a boca, cuspiu vários dentes, que caíram no chão, e um fio de saliva sangrenta correu-lhe pelo queixo e pelo pescoço. Clara, logo que pôde levantar-se, afastou Esteban com um empurrão, ergueu-se com dificuldade e saiu do escritório, fazendo por caminhar de pé. Do outro lado da porta estava Pedro Segundo Garcia, que conseguiu segurá-la no momento em que cambaleava. Ao senti-lo a seu lado, Clara abandonou-se. Poisou a cara tumefacta no peito daquele homem que tinha estado a seu lado durante os momentos mais difíceis da sua vida e pôs-se a chorar. A camisa de Pedro Segundo Garcia tingiu-se de sangue. Clara nunca mais na vida voltou a falar ao marido. Deixou de usar o seu apelido de casada e tirou do dedo a fina aliança de ouro que ele lhe tinha colocado, há mais de vinte anos, naquela noite memorável em que Barrabás morreu assassinado por uma faca de carniceiro. Dois dias depois, Clara e Blanca abandonaram Las Tres Marias e regressaram à capital. Esteban ficou humilhado e furioso, com a sensação de que algo tinha partido para sempre da sua vida. Pedro Segundo levou a patroa e a filha à estação. Desde aquela noite, não tinha tornado a vê-las e permanecia silencioso e intratável. Instalou-as no comboio e ficou depois com o chapéu na mão, de olhos baixos, sem saber como despedir-se. Clara abraçou-o. A princípio, ele manteve-se ri rido e desconcertado, mas logo foi vencido pelos próprios sentimentos e atreveu-se a envolvê-la com os braços e a dar-lhe um beijo imperceptível no cabelo. Olharam-se pela última vez através da janela e ambos tinham os olhos cheios de lágrimas. O fiel administrador chegou à sua casa de tijolos, fez um embrulho com os escassos pertences, meteu num lenço o pouco dinheiro que tinha podido poupar em todos aqueles anos de serviço e partiu. Trueba viu-o despedir-se dos caseiros e montar a cavalo. Tentou detê-lo explicandolhe que o que se tinha passado não tinha nada que ver com ele, que não era justo que por culpa do filho perdesse o trabalho, os amigos, a segurança. - Não quero estar aqui quando encontrar o meu filho, patrão - foram as últimas palavras de Pedro Segundo Garcia antes de partir a trote até à estrada. Como me sentia sozinho, nessa altura! Ignorava que a solidão não mais me abandonaria e que a única pessoa que tornaria a estar perto de mim no resto da minha vida seria uma neta boémia e estroina, com o cabelo verde como Rosa. Mas isso seria vários anos mais tarde. Depois da partida de Clara, olhei à volta e vi muitas caras novas em Las Tres Marias. Os antigos companheiros de caminhada estavam mortos ou tinham-se afastado. Já não tinha nem minha mulher nem minha filha. O contacto com os meus filhos era mínimo. Tinham falecido minha mãe, minha irmã, a boa Ama, Pedro Garcia, o velho. E também Rosa me veio à memória como uma dor inesquecível. Já não podia contar com Pedro Segundo Garcia, que esteve a meu lado durante trinta e cinco anos. Deu-me para chorar. As lágrimas caíam-me, sozinhas, eu sacudia-as com a mão, mas vinham outras. «Vão todos para o caralho!», gritava eu pelos cantos da casa. Passeava-me pelos quartos vazios, entrava no quarto de Clara e procurava no seu roupeiro e na sua cómoda qualquer coisa que ela tivesse usado para levar ao nariz e recuperar, ainda que fosse por um momento passageiro, o seu ténue odor a limpeza. Estendia-me na sua cama, enfiava a cara na sua almofada, acariciava os objectos que tinha deixado sobre o toucador e sentia-me profundamente desolado. Pedro Tercero Garcia tinha toda a culpa do que se havia passado. Por culpa dele Blanca tinha saído de junto de mim, por causa dele eu tinha discutido com Clara, por causa dele Pedro Segundo tinha saído da propriedade, por causa dele os caseiros olhavam-me com receio e cochichavam nas minhas costas. Tinha sido sempre um revoltado e o que eu devia ter feito desde o princípio era corrê-lo a pontapés. Deixei passar o tempo por respeito ao pai e ao avó e o resultado foi que aquele ranhoso de merda me roubou o que eu mais gostava no mundo. Fui ao posto da aldeia do povo e subornei os carabineiros para me ajudarem a procurá-lo. Dei-lhes ordens de não o prenderem, mas de mo entregarem sem fazer escarcéu. No bar, no barbeiro, no clube e no Farolito Rojo, fiz saber que havia uma recompensa para quem me entregasse o rapaz. - Cuidado, patrão. Não se ponha a fazer justiça por suas mãos, olhe que as coisas mudaram muito desde o tempo dos irmãos Sanchez - avisaram-me. Mas não quis escutá-los. Que teria feito a justiça nesse caso? Nada. Passaram perto de quinze dias sem nenhuma novidade. Eu sala para percorrer a propriedade, entrava nas terras vizinhas, espiava os caseiros. Estava convencido de que me escondiam o rapaz. Aumentei a recompensa e ameacei os carabineiros de os fazer destituir por incapazes, mas tudo foi inútil. Cada hora que passava aumentava-me a raiva. Comecei a beber como nunca o tinha feito, nem nos meus tempos de solteiro. Dormia mal e tornei a sonhar com Rosa. Uma noite sonhei que lhe batia como a Clara e que os seus dentes também calam no chão. Despertei aos gritos, mas estava sozinho e ninguém me podia ouvir. Estava tão deprimido que deixei de fazer a barba, não mudava de roupa, julgo que nem tomava banho. A comida parecia-me amarga, tinha um sabor a bílis na boca. Esfolei os nós dos dedos esmurrando as paredes e rebentei um cavalo galopando para espantar a fúria que me consumia as entranhas. Nesses dias ninguém se aproximava de mim, as criadas serviam-me à mesa a tremer, o que me punha ainda pior. Um dia, estava no corredor fumando um cigarro antes da sesta quando se aproximou um menino moreno que ficou em frente de mim em silêncio. Chamava-se Esteban Garcia. Era meu neto, mas eu não o sabia, e só agora, devido às terríveis coisas que ocorreram por obra sua, acabei por saber do parentesco que nos une. Era também neto de Pancha Garcia, uma irmã de Pedro Segundo, a quem na realidade não recordo. - O que é que queres, ranhoso? - perguntei ao menino. - Eu sei onde está Pedro Tercero Garcia - respondeu-me. Dei um salto tão brusco que a cadeira de verga onde estava sentado, se virou. Agarrei o rapaz pelos ombros e sacudi-o: - Onde? Onde está esse maldito? - gritei-lhe. - Dá-me a recompensa, patrão? - balbuciou o menino aterrorizado. - Tê-la-ás! Mas primeiro quero ter a certeza de que não me estás a mentir. Vamos, levame onde está esse desgraçado! Fui buscar a espingarda e salmos. O menino indicou-me que tínhamos de ir a cavalo porque Pedro Tercero estava escondido na serração dos Lebus, a várias milhas de Las Tres Marias. Como não me passou pela cabeça que estivesse ali? Era um esconderijo perfeito. Nessa época do ano, a serração dos alemães estava fechada e ficava longe de todos os caminhos. - Como soubeste que Pedro Tercero Garcia está lá? - Toda a gente o sabe, patrão, menos o senhor - respondeu-me. Fomos a trote porque naquele terreno não se podia correr. A serração estava encravada numa ladeira da montanha e ali não se podia forçar muito os animais. No esforço para trepar, os cavalos arrancavam chispas nas pedras com os cascos. Julgo que as suas pisadas eram o único ruído da tarde abafada e quieta. Ao entrar na zona dos bosques, mudou a paisagem e o ar refrescou, porque as árvores erguiam-se em filas apertadas, fechando a entrada à luz do Sol. O chão era uma almofada avermelhada e mole onde as patas dos cavalos se afundavam brandamente. Então o silêncio rodeou-nos. O menino ia adiante, montado na sua besta sem albarda, colado ao animal como se fossem um só corpo, e eu ia atrás, taciturno, ruminando a minha raiva. Por momentos a tristeza invadia-me, era mais forte que a cólera que tinha estado incubada durante tanto tempo, mais forte que o ódio que sentia por Pedro Tercero Garcia. Deve ter passado um par de horas antes de avistar os casebres baixos da serração, distribuídos em semicírculo numa clareira do bosque. Naquele lugar, o cheiro da madeira e dos pinheiros era tão intenso que por um momento distrai-me do objectivo da viagem. Caíram sobre mim a paisagem, o bosque, o silêncio. Mas essa fraqueza não durou mais que uns segundos. - Espera aqui e cuida dos cavalos. Não te movas. Desmontei. O menino pegou nas rédeas do animal e eu parti acaçapado com a espingarda aperrada nas mãos. Não sentia os sessenta anos nem as dores dos velhos ossos moídos. Ia animado pela ideia de me vingar. De uma das casotas sala uma pequena coluna de fumo, vi um cavalo amarrado à porta, conclui que ali devia estar Pedro Tercero e dirigi-me para a casa dando uma volta. Os dentes batiam-me com impaciência, ia pensando que não queria matá-lo ao primeiro tiro porque isso seria muito rápido e o prazer ia-se embora num minuto, tinha esperado tanto que queria saborear o momento de fazê-lo em pedaços, mas também não lhe podia dar uma oportunidade de escapar. Era muito mais jovem que eu e se não podia surpreendê-lo estava fodido. Levava a camisa empapada em suor, pegada ao corpo, um véu cobria-me os olhos, mas sentia-me com vinte anos e com a força de um touro. Entrei no casebre arrastando-me silenciosamente, o coração a bater-me como um tambor. Encontrei-me dentro de uma grande casa que tinha o chão coberto de serradura. Havia grandes pilhas de madeira e máquinas tapadas com pedaços de lona verde para as preservar do pó. Avancei ocultando-me entre as pilhas de madeira, até que, de súbito, o vi. Pedro Tercero Garcia estava deitado no chão, com a cabeça sobre uma manta dobrada, dormindo. A seu lado havia uma pequena fogueira de brasas sobre umas pedras e uma panela para ferver água. Parei sobressaltado e pude observá-lo à vontade, com todo o ódio do mundo, fazendo por fixar para sempre na minha memória esse rosto moreno, de feições quase infantis, onde a barba parecia um disfarce, sem compreender que diabo tinha visto minha filha naquele cabeludo ordinário. Tive de fazer um grande esforço para controlar o tremor das mãos e dos dentes. Levantei a espingarda e avancei um par de passos. Estava tão perto que podia fazer-lhe voar a cabeça sem apontar, mas decidi esperar uns segundos para que o pulso se me tranquilizasse. Esse momento de vacilação perdeu-me. Creio que o hábito de se esconder tinha afinado o ouvido a Pedro Tercero Garcia e o instinto advertiu-o do perigo. Numa fracção de segundo deve ter tomado consciência, mas ficou com os olhos fechados, preparou todos os músculos contraiu os tendões e pôs toda a sua energia num salto formidável que de um só impulso o deixou parado a um metro do sitio onde se cravou a minha bala. Não consegui apontar de novo, porque se agachou, apanhou um pedaço de madeira e atirou-mo, batendo em cheio na espingarda, que voou para longe. Recordo que senti uma onda de pânico ao ver-me desarmado, mas imediatamente me dei conta de que ele estava mais assustado do que eu. Observámo-nos em silêncio, ofegando, cada um esperava o primeiro movimento do outro para saltar. E então vi o machado. Estava tão perto, que podia alcançá-lo esticando apenas o braço, e foi isso que fiz sem pensar duas vezes. Peguei no machado e com um grito selvagem que me saiu do fundo das entranhas lancei-me contra ele, disposto a rachá-lo de alto a baixo com um só golpe. O machado brilhou no ar e caiu sobre Pedro Tercero Garcia. Um jorro de sangue saltou-me à cara. No último instante levantou os braços para deter a machadada e o fio da ferramenta decepou-lhe num ápice três dedos da mão direita. Com o esforço, caí para a frente de joelhos. Ele levou a mão ao peito e saiu correndo, saltou sobre as pilhas de madeira e os troncos espalhados pelo chão, alcançou o cavalo, montou de um salto e perdeu-se com um grito terrível entre as sombras dos pinheiros. Deixou atrás de si um rego de sangue. Fiquei de gatas no chão, arquejando. Levei vários minutos a acalmar-me e a compreender que não o tinha morto. A minha primeira reacção foi de alívio porque, ao sentir o sangue quente que me atingira a cara, o ódio despejou-se-me subitamente, e tive de fazer um esforço para recordar por que razão o queria matar, para justificar a violência que me estava a afogar, que me fazia estalar o peito, zumbir os ouvidos, que me turvava a vista. Abri a boca desesperado, para meter ar nos pulmões, consegui pôr-me de pé, mas comecei a tremer, dei um par de passos e cai sentado sobre um montão de tábuas, atordoado, sem poder recuperar o ritmo da respiração. Julguei que ia desmaiar, o coração saltava-me no peito como uma máquina enlouquecida. Deve ter passado muito tempo, não sei. Por fim levantei os olhos, parei e apanhei a espingarda. O menino Esteban Garcia estava a meu lado, olhando-me em silêncio. Tinha apanhado os dedos cortados e pegava neles como num molho de espargos sangrentos. Não consegui evitar as náuseas, tinha a boca cheia de saliva, vomitei manchando as botas, enquanto o garoto sorria impassível. - Larga isso, ranhoso de merda! - gritei, batendo-lhe na mão. Os dedos caíram sobre a serradura, tingindo-a de vermelho. Apanhei a espingarda e avancei cambaleando para a saída. O ar fresco do entardecer e o perfume pesado dos pinheiros bateram-me na cara, devol-vendo-me o sentido da realidade. Respirei com avidez, de boca aberta. Caminhei até ao cavalo com grande esforço, doía-me todo o corpo e tinha as mãos presas. O menino seguia-me. Regressámos a Las Tres Marias procurando o caminho na escuridão, que cala rapidamente depois do pôr do Sol. As árvores dificultavam a marcha, os cavalos tropeçavam nas pedras e nas moitas, os ramos atingiam-nos ao passar. Eu estava como que no outro mundo, confundido e aterrado pela minha própria violência, agradecido de que Pedro Tercero tivesse escapado, porque estava certo de que se ele tivesse caído teria continuado a dar-lhe com o machado até o matar, destroçar, fazê-lo em bocados, com a mesma decisão com que estava disposto a meter-lhe um tiro na cabeça. Eu sei o que dizem de mim. Dizem, entre outras coisas, que matei um ou vários homens na minha vida. Culparam-me da morte de alguns camponeses. Não é verdade. Se o fosse, não me importaria de o reconhecer, porque na minha idade essas coisas podem dizer-se impunemente. Já me falta muito pouco tempo para ser enterrado. Nunca matei um homem e quando mais perto estive de o fazer foi nesse dia em que peguei no machado e me atirei a Pedro Tercero Garcia. Chegámos a casa à noite. Desci com dificuldade do cavalo e caminhei até ao terraço. Tinha-me esquecido por completo do menino que me acompa-nhava, porque em todo o trajecto não abriu a boca, por isso surpreendi-me ao sentir que me puxava pela manga. - Vai dar-me a recompensa, patrão? - disse. Despedi-o com um empurrão. - Não há recompensa para os traidores que denunciam. Ah! E proíbo-te que contes o que se passou! Ouviste-me? - grunhi. Entrei em casa e fui directamente beber um gole da garrafa. O conhaque queimou-me a garganta e devolveu-me algum calor. Estendi-me depois no sofá, arquejando. Ainda me batia desesperadamente o coração e estava enjoado. Com as costas da mão limpei as lágrimas que me escorriam pelas faces. Lá fora ficou Esteban Garcia, em frente da porta fechada. Como eu, chorava de raiva. Pedro Garcia, o velho, morreu pouco antes das eleições presidenciais. O pais estava perturbado pelas campanhas políticas, os comboios triunfais iam do Norte para o Sul levando os candidatos instalados na cauda, com a sua corte de prosélitos, saudando todos do mesmo modo, prometendo todos as mesmas coisas, embandeirados e com uma chinfrineira de orfeão e altifalantes que espantava a calma da paisagem e embasbacava o gado. O velho tinha vivido tanto que já não era nada mais que um montão de ossinhos de cristal cobertos por uma pelanga amarela. O rosto era uma renda de rugas. Falava enquanto caminhava, com um matraquear de castanholas, não tinha dentes e só podia comer papinhas de bebé, além de cego tinha ficado surdo, mas nunca lhe faltou o conhecimento das coisas e a memória do passado e do imediato. Morreu sentado na cadeira de vime ao entardecer. Gostava de ficar à porta do rancho sentindo cair a tarde, que ele adivinhava pela mudança subtil de temperatura, pelos ruídos do pátio, o trabalho das cozinhas, o silêncio das galinhas. Foi ali que a morte o encontrou. A seus pés, estava o bisneto Esteban Garcia, que já tinha à volta de dezoito anos, ocupado em vazar com um prego os olhos a um frango. Era filho de Esteban Garcia, o único bastardo do patrão que levou o seu nome, embora não o apelido. Ninguém recordava a sua origem nem a razão pelo qual tinha esse nome, excepto ele mesmo, porque a sua avó Pancha Garcia, antes de morrer conseguiu envenenar-lhe a sua infância com a história de que, se o seu pai tivesse nascido no lugar de Blanca, Jaime ou Nicolau, teria herdado Las Tres Marias e poderia ter chegado a Presidente da República, só por o ter querido. Naquela região semeada de filhos ilegítimos e de outros legítimos que não conheciam o pai, ele foi provavelmente o único que cresceu odiando o seu apelido. Viveu castigado pelo rancor contra o patrão, contra a avó seduzida, contra o pai bastardo e contra o próprio destino inexorável de labrego. Esteban Trueba não o distin-guia entre os restantes miúdos da propriedade, e era mais um no montão de crianças que cantavam o hino nacional na escola e faziam bicha para receber o presente de Natal. Não se recordava de Pancha Garcia nem de ter tido um filho dela, e muito menos daquele neto malicioso que o odiava e que não o observava de longe para lhe imitar os gestos e copiar a voz. O menino passava as noites imaginando horríveis doenças ou acidentes que pusessem fim à exis-tência do patrão e de todos os seus filhos para ele poder herdar a propriedade. Então transformava Las Tres Marias no seu reino. Acarinhou essas fantasias toda a vida, e mesmo depois de saber que jamais teria alguma coisa por via da herança culpou sempre Trueba da existência obscura que tinha forjado contra ele e sentia-se castigado, inclusivamente nos dias em que chegou ao cume do poder e os teve todos na mão. O menino percebeu que algo tinha mudado no velho. Aproximou-se, tocou nele e o corpo cambaleou. Pedro Garcia caiu no chão como um saco de ossos. Tinha as pupilas cobertas pela película leitosa que os tinha deixado sem luz ao longo de um quarto de século. Esteban Garcia pegou no prego e dispunha-se a picar-lhe os olhos, quando chegou Blanca e o afastou com um empurrão, sem suspeitar que aquela criança escura e malvada era seu sobrinho e que dentro de alguns anos seria o instrumento de uma tragédia para a sua família. - Deus meu, o velhinho morreu! - soluçou inclinando-se sobre o corpo encarquilhado do ancião que lhe povoara a infância de contos e lhe protegera os amores clandestinos. Enterraram Pedro Garcia, o velho, com um velório de três dias em que Esteban Trueba ordenou que não se regateassem gastos. Acomodaram-lhe o corpo num caixão de pinho rústico, com o traje domingueiro, o mesmo que usou quando se casou e que vestia para votar e receber os seus cinquenta pesos no Natal. Vestiram-lhe a única camisa branca, que lhe ficava muito folgada no pescoço, porque a idade o tinha encolhido, a gravata de luto e um cravo vermelho na lapela, como fazia sempre que havia festa. Seguraram-lhe a mandíbula com um lenço e puseram-lhe o chapéu negro, porque tinha dito muitas vezes que o queria tirar para saudar Deus. Não tinha sapatos, mas Clara roubou uns a Esteban Trueba para que todos vissem que não ia descalço para o Paraíso. Jean de Satigny entusiasmou-se com o funeral, tirou da sua bagagem uma máquina fotográfica com tripé e fez tantos retratos ao morto que os seus familiares pensaram que lhe podia roubar a alma e por precaução escavacaram as chapas. Ao velatório acudiram camponeses de toda a região porque Pedro Garcia, no século de vida, tinha-se aparentado com muitos habitantes da província. Chegou a bruxa, que era ainda mais velha do que ele, com vários índios da tribo, os quais a uma ordem sua começaram a chorar o finado e não deixaram de o fazer até terminar a pândega, três dias depois. As pessoas juntaram-se à volta do rancho do velho, a beber vinho, tocar guitarra e vigiar os assados. Também chegaram dois padres de bicicleta, para benzer os restos mortais de Pedro Garcia e a dirigir os ritos fúnebres. Um deles era um gigante rubicundo com forte acento espanhol, o padre José Dulce Maria, a quem Esteban Trueba conhecia de nome. Esteve quase a impedir-lhe a entra-da na sua propriedade, mas Clara convenceu-o de que não era o momento de antepor os seus ódios políticos ao fervor cristão dos camponeses. «Pelo menos porá alguma ordem nos assuntos da alma», disse ela. De maneira que Esteban Trueba acabou por lhe dar as boas-vindas e convidá-lo a ficar em sua casa com o irmão leigo, que não abria a boca e olhava sempre para o chão, com a cabeça de lado e as mãos juntas. O patrão estava comovido com a morte do velho que lhe tinha salvo as sementeiras das formigas e a vida da invalidez, e queria que todos recordassem esse enterro como um acontecimento. Os padres reuniram os caseiros e os visitantes na escola, para voltar a dar uma passagem nos esquecidos Evangelhos, e dizer uma missa pelo des-canso da alma de Pedro Garcia. Depois retiraram-se para o quarto que lhes tinham dado na casa senhorial, enquanto os outros continuavam na patus-cada que tinha sido interrompida com a sua chegada. Essa noite, Blanca esperou que se calassem as guitarras e o choro dos índios e que todos fossem para a cama, para saltar pela janela do quarto e enfiar na direcção habitual, protegida pelas sombras. Tornou a fazê-lo durante as três noites seguintes, até que os sacerdotes se foram embora. Todos menos os seus pais souberam que Blanca se encontrava com um deles no rio. Era Pedro Tercero Garcia, que não quis perder o funeral do avô e aproveitou a sotaina para falar aos trabalha-dores casa por casa, explicando-lhes que as próximas eleições eram a sua oportunidade de sacudir o jugo com que sempre tinham vivido. Escutavam-no surpreendidos e confusos. O seu tempo media-se por estações, os seus pensamentos por gerações, eram lentos e prudentes. Só os mais jovens, os que tinham rádio e ouviam as notícias, os que às vezes iam à povoação e conver-savam com os sindicalistas podiam seguir o fio das suas ideias. Os restantes escutavam-no porque o rapaz era o herói perseguido pelos patrões, mas no fundo estavam convencidos de que dizia loucuras. - Se o patrão descobre que vamos votar nos socialistas, fodemo-nos - disseram. - Não pode saber! O voto é secreto - alegou o falso padre. - Isso pensas tu, filho - respondeu Pedro Segundo, seu pai. - Dizem que é secreto, mas depois sabem sempre em quem votamos. Além disso, se ganham os do teu partido, vão-nos pôr na rua, não teremos trabalho. Eu vivi sempre aqui. Que faria eu? - Não nos podem correr a todos, porque o patrão perde mais que vocês se vocês se vão embora - argumentou Pedro Tercero. - Não importa por quem vamos votar. Eles ganham sempre. - Mudem o voto - disse Pedro Tercero. - Mandaremos gente do partido para controlar as mesas de voto e para verificar se as urnas ficam seladas. Mas os camponeses desconfiavam. A experiência havia-lhes ensinado que o raposo acaba sempre por comer as galinhas, apesar das baladas subversivas que andavam de boca em boca cantando o contrário. Por isso, quando passou o comboio do novo candidato do Partido Socialista, um doutor míope e carismático que movia multidões com o seu discurso inflamado, eles olharam-no da estação, vigiados pelos patrões que montavam um cerco à sua volta, armados com caçadeiras e cajados. Escutaram respeitosamente as palavras do candidato, mas não se atreveram a fazer-lhe nem um gesto de saudação, excepto alguns braçais que acudiram em bando munidos de paus e picaretas, que o vitoriaram até se esganiçarem porque eles não tinham nada a perder, eram nómadas do campo, vagueavam pela região sem trabalho fixo nem família, sem amo e sem medo. Pouco depois da morte e do memorável enterro de Pedro Garcia, o velho, Blanca começou a perder as cores de maçã e a sofrer fadigas naturais que não eram produzidas por deixar de respirar e vómitos matinais que não eram provocados por salmoura quente. Pensou que a causa estava no excesso de comida, era a época dos pêssegos dourados, dos damascos, do milho tenro preparado em caçarolas de barro e perfumado com alfavaca, era o tempo de fazer as marmeladas e as conservas para o Inverno. Mas o jejum, a maçela, os purgantes e o repouso não a curaram. Perdeu o entusiasmo pela escola, pela enfermaria e até pelos presépios de barro, tornou-se mole e sonolenta, podia passar horas deitada à sombra olhando o céu, sem se interessar por nada. A única actividade que manteve foram as escapadas nocturnas no rio com Pedro Tercero. Jean de Satigny, que não se tinha dado por vencido no seu assalto romântico, observava-a. Por discrição, passava umas temporadas no hotel da povoação e fazia algumas viagens curtas à capital, donde regressava carregado de literatura sobre as chinchilas, as suas gaiolas, o seu alimento, as suas doenças, os seus métodos reprodutivos, a forma de curtir-lhes a pele e, em geral, tudo o que dizia respeito a esses pequenos animais cujo destino era transformarem-se em estolas. Na maior parte do Verão, o conde foi hóspede em Las Tres Marias. Era um visitante encantador, bem educado, tranquilo e alegre. Tinha sempre uma frase amável na ponta dos lábios, celebrava a comida, divertia-os à tarde tocando piano no salão, onde competia com Clara nos nocturnos de Chopin, e era uma fonte inesgotável de anedotas. Levantava-se tarde e passava uma ou duas horas dedicado ao seu arranjo pessoal, fazia ginástica, trotava à volta da casa sem se importar com a chacota dos rudes camponeses, remolhava-se na banheira de água quente, e demorava-se muito a escolher a roupa para cada ocasião. Era um esforço perdido, já que ninguém lhe apreciava a elegância e, frequentemente, a única coisa que conseguia com os trajes ingleses de montar, os casacos de veludo e os chapéus tiroleses com pena de faisão era que Clara, com a melhor das intenções lhe oferecesse roupa mais apropriada para o campo. Jean não perdia o bom humor, aceitava os sorrisos irónicos do dono da casa, as más caras de Blanca e a perene dis-tracção de Clara, que ao fim de um ano ainda continuava a perguntar-lhe o nome. Sabia cozinhar algumas receitas francesas, muito esmeradas e magnifi-camente apresentadas, com as quais contribuía quando tinham convidados. Era a primeira vez que viam um homem interessado pela cozinha, mas supu-seram que eram costumes europeus e não se atreveram a dizer-lhe piadas para não passar por ignorantes. Nas suas viagens à capital, trazia, para além do respeitante às chinchilas, revistas de moda, os folhetins de guerra que se haviam popularizado para criar o mito do soldado heróico e novelas român-ticas para Blanca. Nas conversas à sobremesa referia-se, por vezes, com tom de mortal aborrecimento, aos seus Verões com a nobreza europeia nos castelos de Liechtenstein ou na Costa Azul. Nunca deixava de dizer que estava feliz por ter trocado tudo isso pelo encanto da América. Blanca perguntava-lhe por que razão não tinha escolhido as Caraíbas, ou pelo menos um pais de mulatas, coqueiros e tambores, se o que buscava era o exotismo, mas ele achava que não havia na terra outro sitio mais agradável que aquele pais esquecido do mundo. O francês não falava da vida pessoal, excepto para fornecer alguns indícios imperceptíveis que permitiam ao interlocutor astuto dar-se conta do seu esplendoroso passado, da sua fortuna incalculável e da sua nobre origem. Não se conhecia com certeza o seu estado civil, a sua idade, a sua família ou de que parte da França provinha. Clara era da opinião que tanto mistério era perigoso e tratou de desentranhá-lo com as cartas do tarot, mas Jean não permitiu que lhe tirassem a sorte nem que lhe investigassem as linhas da mão. Nem sabia o seu signo do zodíaco. Para Esteban Trueba tudo isso não tinha importância. Para ele era suficiente que o conde estivesse disposto a entretê-lo com uma partida de xadrez ou de dominó, que fosse habilidoso e simpático e nunca pedisse dinheiro emprestado. Desde que Jean de Satigny visitava a casa, era muito mais suportável o aborrecimento do campo, onde às cinco da tarde não havia nada mais para fazer. Além disso, gostava que os vizinhos o invejassem por ter aquele hóspede distinto em Las Tres Marias. Corria o boato de que Jean pretendia Blanca Trueba, mas nem por isso deixou de ser o galã predilecto das mães casamenteiras. Clara também o estimava, ainda que não tivesse nenhum cálculo matrimonial. Por seu lado, Blanca acabou por se acostumar à sua presença. Era tão discreto e suave no trato que pouco a pouco Blanca esqueceu a proposta matrimonial. Chegou a pensar que tinha sido uma espécie de brincadeira do conde. Tornou a tirar os candelabros de prata do armário, a pôr a mesa com a loiça inglesa e a usar os vestidos da cidade nas tertúlias da tarde. Frequentemente, Jean convidava-a para ir à povoação ou pedialhe que o acompanhasse nos seus numerosos convites sociais. Nessas oportunidades Clara tinha de ir com eles, porque Esteban Trueba era inflexível nesse ponto: não queria que vissem a filha sozinha com o francês. Em contrapartida, permitia-lhes passear sem chaperon pela propriedade, desde que não se afastassem demasiado e que regressassem antes de anoitecer. Clara dizia que se queriam cuidar da virgindade da jovem isso era muito mais perigoso que ir tomar chá à herdade Uzcátegui, mas Esteban estava seguro de que não havia nada a temer de Jean, já que as suas intenções eram nobres, tinha de precaver-se era das más línguas, que podiam destroçar a honra da filha. Os passeios campestres de Jean e de Blanca consolidaram uma boa amizade. Davam-se bem. Gostavam ambos de sair a meio da manhã a cavalo, com a merenda no cesto e várias malinhas de lona e couro com a bagagem de Jean. O conde aproveitava todas as paragens para pôr Blanca contra a paisagem e fotografá-la, apesar de ela resistir um pouco porque se sentia vagamente ridícula. Esse sentimento justificava-se ao ver os retratos revelados, onde aparecia com um sorriso que não era o seu, numa postura incómoda e com um ar de infelicidade, devido, segundo Jean, a que não era capaz de posar com naturalidade e, segundo ela, porque ele a obrigava a pôr-se torcida e aguentar a respiração durante longos segundos até que se imprimisse a chapa. De uma maneira geral, escolhiam um lugar sombrio debaixo das árvores, estendiam uma manta sobre a erva e sentavam-se para passar algumas horas. Falavam da Europa, de livros, de histórias familiares de Blanca ou das viagens de Jean. Ela ofereceu-lhe um livro do Poeta e ele entusiasmou-se tanto que aprendeu longas passagens de memória e podia recitar os poemas sem vacilar. Dizia que era o melhor que se tinha escrito em matéria de poesia e que nem sequer no francês, o idioma das artes, havia alguma coisa que pudesse comparar-se. Não falavam dos seus sentimentos. Jean era solicito, mas não suplicante ou insistente, pelo contrário fraternal e brincalhão. Beijava-lhe a mão para se despedir, fazia-o com um olhar de escolar que dava todo o romantismo ao gesto. Se lhe admirava um vestido, um guisado ou uma figura do presépio, o seu tom tinha um sabor irónico que permitia interpretar a frase de muitas maneiras. Se cortava flores para ela ou a ajudava a desmontar do cavalo, fazia-o com tal desenvoltura que tornava o galanteio uma atenção de amigo. De qualquer modo, para o prevenir, Blanca fez-lhe saber, sempre que se apresentou ocasião, que não casaria com ele nem morta. Jean de Satigny sorria com o brilhante sorriso de sedutor, sem dizer nada, e o mínimo que Blanca podia notar é que era muito mais gentil que Pedro Tercero. Blanca não sabia que Jean a espiava. Tinha-a visto saltar pela janela vestida de homem em muitas ocasiões. Seguiu-a algum tempo, mas voltava para trás, temendo que os cães o surpreendessem na escuridão. Todavia, pela direcção que ela tomava, tinha concluído que ia sempre rumo ao rio. Entretanto, Trueba não acabara de se decidir a respeito das chinchilas. Como experiência, acedeu em instalar uma gaiola com alguns casais daqueles roedores, imitando em pequena escala a grande indústria modelo. Foi a única vez que se viu Jean de Satigny a trabalhar de mangas arregaçadas. No entanto, as chinchilas contraíram uma doença própria das ratazanas e foram morrendo em menos de duas semanas. Nem sequer lhes puderam curtir as peles porque o pêlo pôs-se-lhes opaco e cala-lhes da pele como penas de ave molhada com água a ferver. Jean viu horrorizado os cadáveres pelados, com as patas tesas e os olhos brancos, deitando por terras as esperanças de convencer Esteban Trueba, que perdeu todo o entusiasmo pela pelaria ao ver aquela mortandade. - Se a peste tivesse dado à indústria modelo estaria totalmente arruinado - concluiu Trueba. Entre a peste das chinchilas e as escapadelas de Blanca, o conde passou vários meses ocupando o tempo. Começava a estar cansado daquelas diligências e pensava que Blanca nunca se iria prender aos seus encantos. Vendo que o criador de roedores nunca mais se decidia, resolveu que era melhor precipitar as coisas antes que outro mais esperto ficasse com a her-deira. Além disso, começava a gostar de Blanca, agora que estava mais robusta e com aquela languidez que lhe tinha atenuado as maneiras de camponesa. Preferia as mulheres plácidas e opulentas, e a visão de Blanca deitada sobre almofadões observando o céu à hora da sesta recordava-lhe a mãe. Por vezes, conseguia comovê-lo. Jean aprendeu a adivinhar, por peque-nos pormenores imperceptíveis para os outros, quando Blanca tinha já planeada uma excursão nocturna ao rio. Nessas ocasiões, a jovem ficava sem jantar, com o pretexto duma dor de cabeça, despedia-se cedo e tinha um brilho estranho nas pupilas, uma impaciência e uma ânsia nos gestos que ele conhecia. Uma noite decidiu segui-la até ao fim, para terminar com aquela situação que ameaçava prolongar-se indefinidamente. Estava seguro que Blanca tinha um amante, mas acreditava que não podia ser nada de sério. Pessoalmente, Jean de Satigny não tinha nenhum preconceito em relação à virgindade, nem tinha posto a si próprio esse assunto quando decidiu pedi-la em casamento. O que nele lhe interessava eram outras coisas, que não se perderiam por um momento de prazer na margem do rio. Depois de Blanca se retirar para o quarto e o resto da família também, Jean de Satigny ficou sentado no salão, às escuras, atento aos ruídos da casa, até à hora em que calculou que ela saltasse pela janela. Então saiu para o pátio e ficou entre as árvores à espera dela. Esteve escondido na sombra mais de meia hora, sem que nada de anormal perturbasse a paz da noite. Aborrecido de esperar, dispunha-se a retirar-se quando reparou que a janela de Blanca estava aberta. Viu que ela tinha saltado antes que ele se colocasse no jardim a vigiá-la. - Merde - resmungou em francês. Fazendo votos por que os cães não alertassem toda a casa com o seu ladrar e não lhe saltassem em cima, dirigiu-se para o rio pelo caminho que tinha visto Blanca tomar doutras vezes. Não estava habituado a andar com o calçado fino pela terra lavrada nem a saltar pedras e ladear charcos, mas a noite estava muito clara, com uma formosa lua cheia iluminando o céu com um resplendor fantasmagórico e, mal lhe passou o medo de que aparecessem os cães, pôde apreciar a beleza do momento. Andou um bom quarto de hora antes de avistar os primeiros canaviais da margem e então redobrou de prudência e aproximou-se mais silenciosamente, tendo cuidado nos passos para não pisar ramos que o pudessem denunciar. A lua reflectia-se na água com um brilho de cristal e a brisa abanava suavemente as canas e as copas das árvores. Reinava o mais completo silêncio e por breves instantes teve a ilusão de que estava vivendo um sonho de sonâmbulo, no qual ia caminhando sem avançar, sempre no mesmo sitio encantado, onde o tempo se tinha detido e onde tentava tocar as árvores, que pareciam estar ao alcance da mão, e encontrava o vazio. Teve de fazer um esforço para recuperar o habitual estado de espírito, realista e pragmático. Num recanto da paisagem, entre grandes pedras cinzentas iluminadas pela luz da Lua, viu-os, tão perto que quase os podia tocar. Estavam nus. O homem estava de costas, com a cara virada para o céu, com os olhos fechados, mas não teve dificuldade em reconhecer o sacerdote jesuíta que tinha ajudado à missa do funeral de Pedro Garcia, o velho. Isso surpreendeu-o. Blanca dormia com a cabeça apoiada no ventre liso e moreno do amante. A ténue luz lunar punha reflexos metálicos nos seus corpos e Jean de Satigny estremeceu ao ver a harmonia de Blanca, que nesse momento lhe pareceu perfeita. O elegante francês levou quase um minuto a abandonar o estado de sonho em que a visão dos enamorados o tinha mergulhado, a placidez da noite, a Lua e o silêncio do campo, e ao dar-se conta de que a situação era mais grave do que tinha imaginado. Na atitude dos amantes reconheceu o abandono próprio dos que se conhecem há muito tempo. Aquilo não tinha um aspecto de aventura erótica de Verão, como supusera, mas de um casamento da carne e do espírito. Jean de Satigny não podia saber que Blanca e Pedro Tercero tinham dormido assim no primeiro dia em que se conheceram e que o continuaram a fazer sempre que puderam, ao longo desses anos, mas apesar disso percebeu-o por instinto. Procurando não fazer o mais pequeno ruído que os pudesse alertar, deu meia volta e regressou, pensando como encarar o assunto. Ao chegar a casa, já tinha tomado a decisão de contar tudo ao pai de Blanca, porque a ira sempre pronta de Esteban Trueba lhe pareceu o melhor meio para resolver o problema. «Eles que se amanhem», pensou. Jean de Satigny não esperou pela manhã. Bateu à porta do quarto do anfitrião e, antes que este conseguisse sair completamente do sono, deu-lhe a sua versão. Disse que não podia dormir com o calor e que, para tomar ar, tinha caminhado distraidamente em direcção ao rio e encontrara o deprimente espectáculo da sua futura noiva dormindo nos braços do jesuíta barbudo, nus à luz da Lua. Por um instante, isso desorientou Esteban Trueba, que não podia imaginar sua filha deitada com o padre José Dulce Maria, mas em seguida percebeu o que se tinha passado, da burla de que tinha sido vitima durante o enterro do velho e de que o sedutor não podia ser outro senão Pedro Tercero Garcia, aquele maldito filho de uma cadela que lho haveria de pagar com a vida. Vestiu as calças a toda a pressa, calçou as botas, pôs a espingarda ao ombro e tirou da parede o cavalo marinho. - O senhor espera-me aqui - ordenou ao francês, que de qualquer modo não tinha nenhuma intenção de o acompanhar. Esteban Trueba correu ao estábulo, montou no cavalo sem o selar. Ia a espumar de indignação, com os ossos soldados reclamando pelo esforço e o coração saltando no peito. «Vou matá-los, aos dois», resmungava como uma ladainha. Saiu para o caminho, na direcção indicada pelo francês, mas não teve necessidade de chegar ao rio, porque a meio encontrou Blanca, que regressava a casa cantarolando, com o cabelo em desalinho, a roupa suja e o ar feliz de quem não tinha nada que pedir à vida. Ao ver a filha, Esteban Trueba não pôde conter o mau caracter e correu para ela com o cavalo e o chicote no ar, descarregando-lhe uma chicotada atrás da outra, até que a rapariga caiu e ficou estendida, imóvel na lama. O pai saltou do cavalo, sacudiu-a até a fazer voltar a si e gritou-lhe todos os insultos conhecidos e outros inventados no arrebatamento da situação. - Quem é? Diga-me o seu nome ou mato-a - exigiu-lhe. - Não lhe direi nunca - soluçou ela. Esteban Trueba compreendeu que aquele não era o sistema para obter alguma coisa da filha, que tinha herdado a sua própria teimosia. Viu que se tinha excedido no castigo, como sempre. Fê-la subir para o cavalo e voltaram a casa. O instinto, ou o alvoroço dos cães, acordaram Clara e os criados, que esperavam à porta com todas as luzes acesas. A única pessoa que não se viu por nenhum lado foi o conde, que na confusão aproveitou para fazer as malas, atrelar os cavalos ao coche e partir discretamente para o hotel da povoação. - Que fizeste Esteban, por Deus! - exclamou Clara ao ver a filha coberta de barro e sangue. Clara e Pedro Segundo Garcia levaram Blanca em braços para a cama. O administrador tinha empalidecido mortalmente, mas não disse nem uma só palavra. Clara lavou a filha, aplicou-lhe compressas frias nas fontes e acarinhou-a até que conseguiu tranquilizá-la. Depois deixou-a a dormir, foi encontrar-se com o marido, que se tinha fechado no escritório e passeava dando murros nas paredes, dizendo maldições e dando pontapés nos móveis. Ao vêla, Esteban dirigiu toda a fúria contra ela, culpando-a de ter criado Blanca sem moral, sem sentido de classe, porque podia compreender-se se ela o tivesse feito com alguém bemnascido, mas não com um labrego, um boçal, um fanático, um ocioso, um inútil. - Devia tê-lo morto quando lho prometi! Deitando-se com a minha própria filha! Juro que o vou procurar e quando o agarrar capo-o, corto-lhe os tomates, ainda que seja a última coisa que faça na minha vida, juro por minha mãe que ele se vai arrepender de ter nascido. - Pedro Tercero Garcia não fez nada que tu próprio não tenhas feito – disse Clara, quando pôde interrompê-lo. - Tu também te deitaste com mulhe-res solteiras que não são da tua classe. A diferença é que ele fê-lo por amor, e Blanca também. Trueba olhou-a, imobilizado pela surpresa. Por um instante a sua ira pareceu esvaziar-se e não quis acreditar no que ouvia, mas imediatamente uma onda de sangue subiu-lhe à cabeça. Perdeu o domínio e desferiu um murro na cara da mulher, atirando-a contra a parede. Clara caiu sem um grito. Esteban pareceu despertar de um transe, ajoelhou-se a seu lado, balbuciando, chorando, pedindo desculpas e chamando-a pelos nomes ternos que só usava na intimidade, sem compreender como tinha podido levantar a mão para ela, que era o único ser que realmente lhe importava e a quem nunca, nem mesmo nos piores momentos da sua vida em comum, tinha deixado de respeitar. Levantou-a em braços, sentou-a carinhosamente num cadeirão, molhou um lenço para lhe pôr na testa e fez-lhe beber um pouco de água. Por fim, Clara abriu os olhos. Deitava sangue pelo nariz. Quando abriu a boca, cuspiu vários dentes, que caíram no chão, e um fio de saliva sangrenta correu-lhe pelo queixo e pelo pescoço. Clara, logo que pôde levantar-se, afastou Esteban com um empurrão, ergueu-se com dificuldade e saiu do escritório, fazendo por caminhar de pé. Do outro lado da porta estava Pedro Segundo Garcia, que conseguiu segurá-la no momento em que cambaleava. Ao senti-lo a seu lado, Clara abandonou-se. Poisou a cara tumefacta no peito daquele homem que tinha estado a seu lado durante os momentos mais difíceis da sua vida e pôs-se a chorar. A camisa de Pedro Segundo Garcia tingiu-se de sangue. Clara nunca mais na vida voltou a falar ao marido. Deixou de usar o seu apelido de casada e tirou do dedo a fina aliança de ouro que ele lhe tinha colocado, há mais de vinte anos, naquela noite memorável em que Barrabás morreu assassinado por uma faca de carniceiro. Dois dias depois, Clara e Blanca abandonaram Las Tres Marias e regressaram à capital. Esteban ficou humilhado e furioso, com a sensação de que algo tinha partido para sempre da sua vida. Pedro Segundo levou a patroa e a filha à estação. Desde aquela noite, não tinha tornado a vê-las e permanecia silencioso e intratável. Instalou-as no comboio e ficou depois com o chapéu na mão, de olhos baixos, sem saber como despedir-se. Clara abraçou-o. A princípio, ele manteve-se rígido e desconcertado, mas logo foi vencido pelos próprios sentimentos e atreveu-se a envolvê-la com os braços e a dar-lhe um beijo imperceptível no cabelo. Olharam-se pela última vez através da janela e ambos tinham os olhos cheios de lágrimas. O fiel administrador chegou à sua casa de tijolos, fez um embrulho com os escassos pertences, meteu num lenço o pouco dinheiro que tinha podido poupar em todos aqueles anos de serviço e partiu. Trueba viu-o despedir-se dos caseiros e montar a cavalo. Tentou detê-lo explicandolhe que o que se tinha passado não tinha nada que ver com ele, que não era justo que por culpa do filho perdesse o trabalho, os amigos, a segurança. - Não quero estar aqui quando encontrar o meu filho, patrão - foram as últimas palavras de Pedro Segundo Garcia antes de partir a trote até à estrada. Como me sentia sozinho, nessa altura! Ignorava que a solidão não mais me abandonaria e que a única pessoa que tornaria a estar perto de mim no resto da minha vida seria uma neta boémia e estroina, com o cabelo verde como Rosa. Mas isso seria vários anos mais tarde. Depois da partida de Clara, olhei à volta e vi muitas caras novas em Las Tres Marias. Os antigos companheiros de caminhada estavam mortos ou tinham-se afastado. Já não tinha nem minha mulher nem minha filha. O contacto com os meus filhos era mínimo. Tinham falecido minha mãe, minha irmã, a boa Ama, Pedro Garcia, o velho. E também Rosa me veio à memória como uma dor inesquecível. Já não podia contar com Pedro Segundo Garcia, que esteve a meu lado durante trinta e cinco anos. Deu-me para chorar. As lágrimas caíam-me, sozinhas, eu sacudia-as com a mão, mas vinham outras. «Vão todos para o caralho!», gritava eu pelos cantos da casa. Passeava-me pelos quartos vazios, entrava no quarto de Clara e procurava no seu roupeiro e na sua cómoda qualquer coisa que ela tivesse usado para levar ao nariz e recuperar, ainda que fosse por um momento passageiro, o seu ténue odor a limpeza. Estendia-me na sua cama, enfiava a cara na sua almofada, acariciava os objectos que tinha deixado sobre o toucador e sentia-me profundamente desolado. Pedro Tercero Garcia tinha toda a culpa do que se havia passado. Por culpa dele Blanca tinha saído de junto de mim, por causa dele eu tinha discutido com Clara, por causa dele Pedro Segundo tinha saído da propriedade, por causa dele os caseiros olhavam-me com receio e cochichavam nas minhas costas. Tinha sido sempre um revoltado e o que eu devia ter feito desde o princípio era corrê-lo a pontapés. Deixei passar o tempo por respeito ao pai e ao avó e o resultado foi que aquele ranhoso de merda me roubou o que eu mais gostava no mundo. Fui ao posto da aldeia do povo e subornei os carabineiros para me ajudarem a procurá-lo. Dei-lhes ordens de não o prenderem, mas de mo entregarem sem fazer escarcéu. No bar, no barbeiro, no clube e no Farolito Rojo, fiz saber que havia uma recompensa para quem me entregasse o rapaz. - Cuidado, patrão. Não se ponha a fazer justiça por suas mãos, olhe que as coisas mudaram muito desde o tempo dos irmãos Sanchez - avisaram-me. Mas não quis escutá-los. Que teria feito a justiça nesse caso? Nada. Passaram perto de quinze dias sem nenhuma novidade. Eu sala para percorrer a propriedade, entrava nas terras vizinhas, espiava os caseiros. Estava convencido de que me escondiam o rapaz. Aumentei a recompensa e ameacei os carabineiros de os fazer destituir por incapazes, mas tudo foi inútil. Cada hora que passava aumentava-me a raiva. Comecei a beber como nunca o tinha feito, nem nos meus tempos de solteiro. Dormia mal e tornei a sonhar com Rosa. Uma noite sonhei que lhe batia como a Clara e que os seus dentes também calam no chão. Despertei aos gritos, mas estava sozinho e ninguém me podia ouvir. Estava tão deprimido que deixei de fazer a barba, não mudava de roupa, julgo que nem tomava banho. A comida parecia-me amarga, tinha um sabor a bílis na boca. Esfolei os nós dos dedos esmurrando as paredes e rebentei um cavalo galopando para espantar a fúria que me consumia as entranhas. Nesses dias ninguém se aproximava de mim, as criadas serviam-me à mesa a tremer, o que me punha ainda pior. Um dia, estava no corredor fumando um cigarro antes da sesta quando se aproximou um menino moreno que ficou em frente de mim em silêncio. Chamava-se Esteban Garcia. Era meu neto, mas eu não o sabia, e só agora, devido às terríveis coisas que ocorreram por obra sua, acabei por saber do parentesco que nos une. Era também neto de Pancha Garcia, uma irmã de Pedro Segundo, a quem na realidade não recordo. - O que é que queres, ranhoso? - perguntei ao menino. - Eu sei onde está Pedro Tercero Garcia - respondeu-me. Dei um salto tão brusco que a cadeira de verga onde estava sentado, se virou. Agarrei o rapaz pelos ombros e sacudi-o: - Onde? Onde está esse maldito? - gritei-lhe. - Dá-me a recompensa, patrão? - balbuciou o menino aterrorizado. - Tê-la-ás! Mas primeiro quero ter a certeza de que não me estás a mentir. Vamos, levame onde está esse desgraçado! Fui buscar a espingarda e saímos. O menino indicou-me que tínhamos de ir a cavalo porque Pedro Tercero estava escondido na serração dos Lebus, a várias milhas de Las Tres Marias. Como não me passou pela cabeça que estivesse ali? Era um esconderijo perfeito. Nessa época do ano, a serração dos alemães estava fechada e ficava longe de todos os caminhos. - Como soubeste que Pedro Tercero Garcia está lá? - Toda a gente o sabe, patrão, menos o senhor - respondeu-me. Fomos a trote porque naquele terreno não se podia correr. A serração estava encravada numa ladeira da montanha e ali não se podia forçar muito os animais. No esforço para trepar, os cavalos arrancavam chispas nas pedras com os cascos. Julgo que as suas pisadas eram o único ruído da tarde abafada e quieta. Ao entrar na zona dos bosques, mudou a paisagem e o ar refrescou, porque as árvores erguiam-se em filas apertadas, fechando a entrada à luz do Sol. O chão era uma almofada avermelhada e mole onde as patas dos cavalos se afundavam brandamente. Então o silêncio rodeou-nos. O menino ia adiante, montado na sua besta sem albarda, colado ao animal como se fossem um só corpo, e eu ia atrás, taciturno, ruminando a minha raiva. Por momentos a tristeza invadia-me, era mais forte que a cólera que tinha estado incubada durante tanto tempo, mais forte que o ódio que sentia por Pedro Tercero Garcia. Deve ter passado um par de horas antes de avistar os casebres baixos da serração, distribuídos em semicírculo numa clareira do bosque. Naquele lugar, o cheiro da madeira e dos pinheiros era tão intenso que por um momento distrai-me do objectivo da viagem. Caíram sobre mim a paisagem, o bosque, o silêncio. Mas essa fraqueza não durou mais que uns segundos. - Espera aqui e cuida dos cavalos. Não te movas. Desmontei. O menino pegou nas rédeas do animal e eu parti acaçapado com a espingarda aperrada nas mãos. Não sentia os sessenta anos nem as dores dos velhos ossos moídos. Ia animado pela ideia de me vingar. De uma das casotas sala uma pequena coluna de fumo, vi um cavalo amarrado à porta, conclui que ali devia estar Pedro Tercero e dirigi-me para a casa dando uma volta. Os dentes batiam-me com impaciência, ia pensando que não queria matá-lo ao primeiro tiro porque isso seria muito rápido e o prazer ia-se embora num minuto, tinha esperado tanto que queria saborear o momento de fazê-lo em pedaços, mas também não lhe podia dar uma oportunidade de escapar. Era muito mais jovem que eu e se não podia surpreendê-lo estava fodido. Levava a camisa empapada em suor, pegada ao corpo, um véu cobria-me os olhos, mas sentia-me com vinte anos e com a força de um touro. Entrei no casebre arrastando-me silenciosamente, o coração a bater-me como um tambor. Encontrei-me dentro de uma grande casa que tinha o chão coberto de serradura. Havia grandes pilhas de madeira e máquinas tapadas com pedaços de lona verde para as preservar do pó. Avancei ocultando-me entre as pilhas de madeira, até que, de súbito, o vi. Pedro Tercero Garcia estava deitado no chão, com a cabeça sobre uma manta dobrada, dormindo. A seu lado havia uma pequena fogueira de brasas sobre umas pedras e uma panela para ferver água. Parei sobressaltado e pude observá-lo à vontade, com todo o ódio do mundo, fazendo por fixar para sempre na minha memória esse rosto moreno, de feições quase infantis, onde a barba parecia um disfarce, sem compreender que diabo tinha visto minha filha naquele cabeludo ordinário. Tive de fazer um grande esforço para controlar o tremor das mãos e dos dentes. Levantei a espingarda e avancei um par de passos. Estava tão perto que podia fazer-lhe voar a cabeça sem apontar, mas decidi esperar uns segundos para que o pulso se me tranquilizasse. Esse momento de vacilação perdeu-me. Creio que o hábito de se esconder tinha afinado o ouvido a Pedro Tercero Garcia e o instinto advertiu-o do perigo. Numa fracção de segundo deve ter tomado consciência, mas ficou com os olhos fechados, preparou todos os músculos contraiu os tendões e pôs toda a sua energia num salto formidável que de um só impulso o deixou parado a um metro do sitio onde se cravou a minha bala. Não consegui apontar de novo, porque se agachou, apanhou um pedaço de madeira e atirou-mo, batendo em cheio na espingarda, que voou para longe. Recordo que senti uma onda de pânico ao ver-me desarmado, mas imediatamente me dei conta de que ele estava mais assustado do que eu. Observámo-nos em silêncio, ofegando, cada um esperava o primeiro movimento do outro para saltar. E então vi o machado. Estava tão perto, que podia alcançá-lo esticando apenas o braço, e foi isso que fiz sem pensar duas vezes. Peguei no machado e com um grito selvagem que me saiu do fundo das entranhas lancei-me contra ele, disposto a rachá-lo de alto a baixo com um só golpe. O machado brilhou no ar e caiu sobre Pedro Tercero Garcia. Um jorro de sangue saltou-me à cara. No último instante levantou os braços para deter a machadada e o fio da ferramenta decepou-lhe num ápice três dedos da mão direita. Com o esforço, caí para a frente de joelhos. Ele levou a mão ao peito e saiu correndo, saltou sobre as pilhas de madeira e os troncos espalhados pelo chão, alcançou o cavalo, montou de um salto e perdeu-se com um grito terrível entre as sombras dos pinheiros. Deixou atrás de si um rego de sangue. Fiquei de gatas no chão, arquejando. Levei vários minutos a acalmar-me e a compreender que não o tinha morto. A minha primeira reacção foi de alívio porque, ao sentir o sangue quente que me atingira a cara, o ódio despejou-se-me subitamente, e tive de fazer um esforço para recordar por que razão o queria matar, para justificar a violência que me estava a afogar, que me fazia estalar o peito, zumbir os ouvidos, que me turvava a vista. Abri a boca desesperado, para meter ar nos pulmões, consegui pôr-me de pé, mas comecei a tremer, dei um par de passos e cai sentado sobre um montão de tábuas, ator-doado, sem poder recuperar o ritmo da respiração. Julguei que ia desmaiar, o coração saltava-me no peito como uma máquina enlouquecida. Deve ter pas-sado muito tempo, não sei. Por fim levantei os olhos, parei e apanhei a espingarda. O menino Esteban Garcia estava a meu lado, olhando-me em silêncio. Tinha apanhado os dedos cortados e pegava neles como num molho de espar-gos sangrentos. Não consegui evitar as náuseas, tinha a boca cheia de saliva, vomitei manchando as botas, enquanto o garoto sorria impassível. - Larga isso, ranhoso de merda! - gritei, batendo-lhe na mão. Os dedos caíram sobre a serradura, tingindo-a de vermelho. Apanhei a espingarda e avancei cambaleando para a saída. O ar fresco do entardecer e o perfume pesado dos pinheiros bateram-me na cara, devolvendo-me o sentido da realidade. Respirei com avidez, de boca aberta. Caminhei até ao cavalo com grande esforço, doía-me todo o corpo e tinha as mãos presas. O menino seguia-me. Regressámos a Las Tres Marias procurando o caminho na escuridão, que cala rapidamente depois do pôr do Sol. As árvores dificultavam a marcha, os cavalos tropeçavam nas pedras e nas moitas, os ramos atingiam-nos ao passar. Eu estava como que no outro mundo, confundido e aterrado pela minha própria violência, agradecido de que Pedro Tercero tivesse escapado, porque estava certo de que se ele tivesse caído teria continuado a dar-lhe com o machado até o matar, destroçar, fazê-lo em bocados, com a mesma decisão com que estava disposto a meter-lhe um tiro na cabeça. Eu sei o que dizem de mim. Dizem, entre outras coisas, que matei um ou vários homens na minha vida. Culparam-me da morte de alguns camponeses. Não é verdade. Se o fosse, não me importaria de o reconhecer, porque na minha idade essas coisas podem dizer-se impunemente. Já me falta muito pouco tempo para ser enterrado. Nunca matei um homem e quando mais perto estive de o fazer foi nesse dia em que peguei no machado e me atirei a Pedro Tercero Garcia. Chegámos a casa à noite. Desci com dificuldade do cavalo e caminhei até ao terraço. Tinha-me esquecido por completo do menino que me acompanhava, porque em todo o trajecto não abriu a boca, por isso surpreendi-me ao sentir que me puxava pela manga. - Vai dar-me a recompensa, patrão? - disse. Despedi-o com um empurrão. - Não há recompensa para os traidores que denunciam. Ah! E proíbo-te que contes o que se passou! Ouviste-me? - grunhi. Entrei em casa e fui directamente beber um gole da garrafa. O conhaque queimou-me a garganta e devolveu-me algum calor. Estendi-me depois no sofá, arquejando. Ainda me batia desesperadamente o coração e estava enjoado. Com as costas da mão limpei as lágrimas que me escorriam pelas faces. Lá fora ficou Esteban Garcia, em frente da porta fechada. Como eu, chorava de raiva. Capítulo VII Os Irmãos Clara e Blanca chegaram à capital com o lamentável aspecto de duas sinistradas. Ambas tinham a cara inchada, os olhos vermelhos de choro e a roupa amachucada pela longa viagem de comboio. Blanca, mais débil que a mãe, apesar de ser muito mais alta, jovem e pesada, suspirava acordada e soluçava a dormir, num lamento ininterrupto que se mantinha desde o dia da sova. Mas Clara não tinha paciência para a desgraça, de modo que ao chegar à grande casa da esquina, que estava vazia e lúgubre como um mausoléu, decidiu que bastava de queixumes, que era altura de alegrar a vida. Obrigou a filha a ajudá-la na tarefa de contratar novos criados, abrir os postigos, tirar os lençóis que cobriam os móveis, as capas dos candeeiros, os cadeados das portas, sacudir o pó e deixar entrar a luz e o ar. Estavam nisso quando o inconfundível aroma das violetas silvestres invadiu a casa e assim souberam que as três irmãs Mora, avisadas pela telepatia ou simplesmente pelo afecto, tinham chegado de visita. O falatório feliz, as compressas de água fria, os consolos espirituais e o encanto natural conseguiram que a mãe e a filha se recompusessem das contusões do corpo e das dores da alma. - Temos de comprar outros pássaros - disse Clara olhando pela janela as gaiolas vazias e o jardim por tratar, onde as estátuas do Olimpo se erguiam cagadas pelos pombos. - Não sei como pode pensar nos pássaros se lhe faltam os dentes, mamã - observou Blanca, que não se acostumava ao novo rosto desdentado da mãe. Clara teve tempo para tudo. Em duas semanas tinha as antigas gaiolas cheias de novos pássaros, e mandara fazer uma prótese de porcelana que se fixava no lugar mediante um engenhoso mecanismo que a prendia aos molares que restavam, mas o sistema resultou tão incómodo que preferiu usar a dentadura postiça pendurada no pescoço por uma fita. Punha-a só para comer e, às vezes, nas reuniões sociais. Clara voltou a dar vida à casa. Deu ordem à cozinheira para manter o fogão sempre aceso e disse-lhe que deviam estar preparados para alimentar um número variado de hóspedes. Sabia por que o dizia. Poucos dias depois, começaram a chegar os seus amigos rosa-cruzes, os espiritistas, os teósofos, os acupuncturistas, os telepatas, os fabricantes de chuva, os peripatéticos, os adventistas do sétimo dia, os artistas necessitados ou em desgraça e, por fim, todos os que habitualmente constituíam a sua corte. Clara reinava entre eles como uma pequena soberana alegre e sem dentes. Nessa época, começaram as suas primeiras tentativas sérias para comunicar com os extraterrestres, e, como ela anotou, teve as primeiras dúvidas relativamente à série de mensagens espirituais que recebia através do pêndulo ou da mesa de pé-de-galo. Ouviram-na dizer muitas vezes que talvez não fossem as almas dos mortos que vagueavam noutra dimensão, mas simplesmente seres de outros planetas que tentavam estabelecer uma relação com os terráqueos, mas que, por serem feitos de uma matéria impalpável, facilmente se podiam confundir com as almas. Essa explicação cientifica encantou Nicolau, mas não teve a mesma aceitação entre as irmãs Mora, que eram muito conservadoras. Blanca vivia alheia a essas dúvidas. Os seres de outros planetas entra-vam, para ela, na mesma categoria das almas e não podia, portanto, compre-ender a paixão da mãe e dos outros em identificá-los. Estava muito ocupada na casa, porque Clara se desligou dos assuntos domésticos com o pretexto de nunca ter tido aptidões para eles. A grande casa da esquina requeria um exército de criados para se manter limpa e o séquito da mãe obrigava a ter turnos na cozinha. Havia que cozinhar grãos e ervas para uns, verduras e peixe para outros, frutas e leite azedo para as três irmãs Mora e suculentos pratos de carne, doces e outros venenos para Jaime e Nicolau, que ainda não tinham adquirido as suas próprias manias. Com o tempo ambos passariam fome: Jaime por solidariedade com os pobres e Nicolau para purificar a alma. Mas nessa época ainda eram dois robustos jovens ansiosos por gozar os prazeres da vida. Jaime tinha entrado na Universidade e Nicolau vagueava procurando o seu destino. Tinham um automóvel pré-histórico, comprado com o produto das bandejas de prata que tinham roubado de casa dos pais. Baptizaram-no de Covadonga, como recordação dos avós del Valle. Cova longa tinha sido desmontado e tornado a montar tantas vezes com outras peças que mal podia andar. Deslocava-se com grande estrépito do motor barulhento, cuspindo fumo e porcas pelo tubo de escape. Os irmãos partilhavam-no salomonica-mente: nos dias pares usava-o Jaime e nos ímpares Nicolau. Clara estava feliz por viver com os filhos e dispôs-se a iniciar uma relação amigável. Tinha tido pouco contacto com eles durante a sua infância e, no afã de que se «fizessem homens», tinha perdido as melhores horas dos filhos e procurara preservar-se de todas as ternuras. Agora que estavam com proporções adultas, feitos homens finalmente, podia dar-se ao gosto de mimá-los como devia ter feito quando eram pequenos, mas já era tarde, porque os gémeos tinham-se criado sem as suas caricias e tinham acabado por não necessitar deles. Clara viu que não lhe pertenciam. Não perdeu a cabeça nem a boa disposição. Aceitou os jovens tal como eram e dispôs-se a gozar a sua presença sem pedir nada em troca. Blanca, no entanto, refilava porque os irmãos tinham transformado a casa numa esterqueira. À sua passagem ficava um rasto de desordem, atropelo e alvoroço. A jovem engordava a olhos vistos e parecia cada dia mais languida e mal-humorada. Jaime olhou a barriga da irmã e foi ter com a mãe: - Julgo que Blanca está grávida, mamã - disse sem preâmbulos. - Já o imaginava, filho - suspirou Clara. Blanca não negou e, uma vez confirmada a notícia, Clara escreveu-o com a sua redonda caligrafia no caderno de anotar a vida. Nicolau levantou os olhos das práticas do horóscopo chinês e sugeriu que tinham de dizê-lo ao pai, porque dentro de um par de semanas o assunto já não poderia disfarçar-se e toda a gente iria saber. - Nunca direi quem é o pai! - disse Blanca com firmeza. - Não me refiro ao pai da criança, mas ao nosso - disse o irmão. - O papá tem o direito a sabê-lo por nós, antes que lhe conte outra pessoa. - Mandem um telegrama para o campo - sugeriu Clara tristemente. Tinha a certeza de que, logo que Esteban Trueba soubesse, o bebé de Blanca se tornaria numa tragédia. Nicolau redigiu a mensagem com o mesmo espírito criptográfico com que fazia versos a Amanda, para que a telegrafista do povoado não pudesse perce-ber o telegrama e propagar o mexerico: «Envie instruções em cinta branca. Ponto». Tal como a telegrafista, Esteban Trueba não conseguiu decifrá-lo e teve de telefonar para a sua casa da capital a fim de se inteirar do assunto. Coube a Jaime explicar o caso e acrescentou que a gravidez estava tão avançada que não podiam pensar em nenhuma solução drástica. Do outro lado da linha houve um longo e terrível silêncio e depois o pai pendurou o auscultador. Em Las Tres Marias, Esteban, lívido de surpresa e de raiva, pegou na bengala e partiu o telefone pela segunda vez. Nunca lhe tinha ocorrido a ideia de que uma filha sua pudesse cometer um disparate tão monstruoso. Sabendo quem era o pai, levou menos de um segundo a arrepender-se de não lhe ter metido uma bala na cabeça quando teve a oportunidade. Estava certo que o escân-dalo seria igual se ela desse à luz um bastardo, ou se se casasse com o filho de um camponês: a sociedade condená-la-ia ao ostracismo em qualquer dos dois casos. Esteban Trueba passou várias horas às voltas pela casa em grandes passadas, dando bengaladas nos móveis e nas paredes, murmurando maldi-ções entredentes e forjando planos disparatados que iam desde mandar Blanca para um convento na Estremadura até matá-la com pancada. Finalmente, quando se acalmou um pouco, veio-lhe uma ideia salvadora à cabeça. Mandou selar o cavalo e foi a galope até à povoação. Encontrou Jean de Satigny, a quem não tinha voltado a ver desde a infortunada noite em que o despertara para lhe contar os namoricos de Blanca, bebendo sumo de melão sem açúcar na única pastelaria da povoação, acompanhado pelo filho de Indalécio Aguirrazábal, um pedante luzidio que falava com voz aflautada e recitava Rubén Darío. Sem nenhum respeito, Trueba levantou o conde francês pelas bandas do casaco escocês e retirou-o da pastelaria, praticamente pendurado, face aos olhares atónitos dos outros clientes, pondo-o no meio do passeio. - Jovem, você já me deu bastantes problemas. Primeiro as suas malditas chinchilas e depois a minha filha. Já me cansei. Traga as suas tralhas porque vai para a capital comigo, casar com Blanca. Não lhe deu tempo de se refazer da surpresa. Acompanhou-o ao hotel da povoação, onde esperou com o chicote numa mão e a bengala na outra, enquanto Jean de Satigny fazia as malas. Depois levou-o directamente à estação e fê-lo subir, sem mais explicações, para o comboio. Durante a viagem, o conde quis explicar-lhe que não tinha nada que ver com aquele assunto e que nunca tinha posto nem um dedo em cima de Blanca Trueba, que provavelmente o responsável pelo sucedido era o frade barbudo com quem Blanca se encontrava de noite na margem do rio. Esteban Trueba fulminou-o com o olhar mais feroz: - Não sei de que estás a falar, meu filho. Deves ter sonhado com isso - disse-lhe. Trueba começou a explicar-lhe as cláusulas do contrato matrimonial, o que tranquilizou bastante o francês. O dote de Blanca, a sua renda mensal e as perspectivas de herdar uma fortuna tornavam-na um bom partido. - Como vê, este é melhor negócio do que as chinchilas - concluiu o futuro sogro sem prestar atenção à choradeira nervosa do jovem. Foi assim que, no sábado, Esteban Trueba chegou à grande casa da esquina, com um marido para a filha desflorada e um pai para o pequeno bastardo. Deitava chispas de raiva. Com um murro tombou a jarra com crisântemos da entrada, deu um bofetão a Nicolau que tentou interceder para explicar a situação e anunciou aos gritos que não queria ver Blanca e que ela devia ficar fechada até ao dia do matrimónio. Clara não apareceu para o receber. Ficou no quarto e não abriu a porta nem mesmo quando ele partiu a bengala de prata às pancadas na porta. A casa entrou num turbilhão de actividade e de lutas. O ar parecia irrespirável e até os pássaros se calaram nas gaiolas. Os criados corriam às ordens daquele patrão ansioso e brusco que não admitia demoras para fazer cumprir os seus desejos. Clara continuou a fazer a mesma vida, ignorando o marido e negando-se a dirigir-lhe a palavra. O noivo, praticamente prisioneiro do futuro sogro, foi instalado num dos numerosos quartos de hóspedes, onde passava o dia dando voltas sem nada para fazer, sem ver Blanca e sem compreender como tinha ido parar àquele folhetim. Não sabia se havia de lamentar-se por ser vítima daqueles bárbaros indígenas ou de alegrar-se por poder cumprir o sonho de casar com uma herdeira sul-americana jovem e formosa. Como era de temperamento optimista e estava dotado de sentido prático, próprio dos da sua raça, optou pela segunda atitude e no decorrer da semana foi-se tranquilizando. Esteban Trueba marcou a data do matrimónio para dali a quinze dias. Decidiu que a melhor forma de evitar o escândalo era fazer uma boda especta-cular. Queria ver a filha casada pelo bispo, com vestido branco e uma cauda de seis metros levada por pagens e donzelas, fotografada na crónica social do jornal, queria uma festa caligulesca e suficiente espavento e gastos para que ninguém reparasse na barriga da noiva. A única pessoa que o secundou nos seus planos foi Jean de Satigny. No dia em que Esteban chamou a filha para a mandar à modista provar o vestido de noiva era a primeira vez que a via desde a noite da sova. Espantou-se de a ver gorda e com manchas na cara. - Não me vou casar, pai - disse ela. - Cale-se! - rugiu ele. - Vai-se casar porque eu não quero bastardos na família, está a ouvir-me? - Julgava que já tínhamos vários - respondeu Blanca. - Não me responda! Quero que saiba que Pedro Tercero Garcia está morto. Matei-o com as minhas próprias mãos, por isso esqueça-o e trate de ser uma esposa digna do homem que a leva ao altar. Blanca desatou a chorar e continuou chorando incansavelmente nos dias que se seguiram. O casamento que Blanca não desejava celebrou-se na catedral, com a bênção do bispo e um vestido de rainha feito pelo melhor costureiro do país que fez milagres para dissimular o ventre proeminente da noiva com uma guarnição de flores e pregas greco-romanas. A boda terminou com uma festa espectacular, com quinhentos convidados em traje de gala, que invadiram a casa da esquina, animada por uma orquestra de músicos contratados, com uma enormidade de reses temperadas com ervas finas, mariscos frescos, caviar do Báltico, salmão da Noruega, aves trufadas, um rio de bebidas exóticas, um jorro inacabável de champanhe, um esbanjamento de doces, suspiros, mil-folhas, éclaires, polvilhados, grandes taças de cristal com fruta cristalizada, morangos da Argentina, cocos do Brasil, papaias do Chile, ananases de Cuba e outras delícias impossíveis de recordar, sobre uma mesa compridíssima que dava volta ao jardim e terminava num bolo descomunal de três andares, fabricado por um artífice italiano originário de Nápoles, amigo de Jean de Satigny, que transformou humildes materiais, como ovos, farinha e açúcar, numa réplica da Acrópole, coroada por uma nuvem de merengue, onde repousavam dois amantes mitológicos, Vénus e Adónis, feitos com pasta de amêndoa tingida, para imitar o tom rosado da carne, o louro dos cabelos, o azul cobalto dos olhos, acompanhados por um Cupido gorducho, também comestível, e que foi partido com uma faca de prata pelo noivo orgulhoso e pela noiva desolada. Clara, que desde o principio se opusera à ideia de casar Blanca contra a sua vontade, decidiu não assistir à festa. Ficou na sala de costura elaborando tristes previsões para os noivos, que se cumpriram à letra como todos puderam comprovar mais tarde, até que o marido lhe foi suplicar que mudasse de roupa e aparecesse no jardim, nem que fosse só por dez minutos, para calar os murmúrios dos convidados. Clara fê-lo de muito má vontade, mas, por carinho pela filha, pôs os dentes e procurou sorrir a todos os presentes. Jaime chegou no final da festa, porque ficou a trabalhar no hospital dos pobres, onde iniciava os primeiros estudos de medicina. Nicolau chegou acompanhado pela bela Amanda, que acabava de descobrir Sartre e tinha adoptado o ar fatal das existencialistas europeias, toda de negro, pálida, com os olhos arroxeados, pintados com khol, o cabelo escuro solto até à cintura e uma chocalhada de colares, pulseiras e brincos que provocavam admiração à sua passagem. Por seu lado, Nicolau estava vestido de branco, como um enfermeiro, com amuletos pendurados no pescoço. O pai foi ao seu encontro, agarrou-o por um braço e introduziu-o à viva força na casa de banho, onde lhe arrancou os talismãs sem contemplações. - Vá ao seu quarto e ponha uma gravata decente! Volte à festa e porte-se como um cavalheiro! Não lhe passe pela cabeça pregar alguma religião hereje entre os convidados e diga a essa bruxa que o acompanha que feche o decote! - ordenou Esteban ao filho. Nicolau obedeceu de péssimo humor. Por princípio era abstémio, mas de raiva bebeu uns copos, perdeu a cabeça e atirou-se vestido para o tanque do jardim, de onde tiveram de pescálo com a dignidade ensopada. Blanca passou toda a noite numa cadeira observando o bolo, com expressão alheada e chorando, enquanto o seu flamante esposo circulava entre os convidados explicando a ausência da sogra com um ataque de asma e o pranto da noiva com a emoção da boda. Ninguém o acreditou. Jean de Satigny dava beijos no pescoço de Blanca, pegava-lhe na mão e procurava consolá-la com golos de champanhe e lagostins escolhidos amorosamente e servidos pela sua própria mão, mas tudo foi inútil, ela continuava chorando. Apesar de tudo, a festa foi um acontecimento, tal como tinha planeado Esteban Trueba. Comeram e beberam opiparamente e viram chegar o nascer do Sol bailando ao som da orquestra, enquanto no centro da cidade os grupos de desempregados se aqueciam em pequenas fogueiras feitas com jornais, bandos de jovens com camisas cinzentas desfilavam saudando com o braço estendido, como tinham visto nos filmes sobre a Alemanha, e nas sedes dos partidos políticos se davam os últimos retoques para a campanha eleitoral. - Vão ganhar os socialistas - tinha dito Jaime, que, de tanto conviver com o proletariado no hospital dos pobres, andava alucinado. - Não, filho, vão ganhar os de sempre - respondeu Clara, que vira tudo nos baralhos e o tinha confirmado pelo senso comum. Depois da festa, Esteban Trueba levou o genro à biblioteca e estendeu-lhe um cheque. Era o seu presente de casamento. Tinha tratado de tudo para que o casal fosse para o Norte, onde Jean de Satigny pensava instalar-se comodamente a viver das rendas da mulher, longe dos comentários da gente observadora que não deixaria de reparar no ventre prematuro. Tinha em mente um negócio de cântaros incas e de múmias indígenas. Antes de abandonar a festa, os recém-casados foram despedir-se da mãe. Clara chamou Blanca à parte, que não tinha parado de chorar e falou-lhe em segredo: - Deixa de chorar, filhinha. Tantas lágrimas farão mal à criança e talvez não venha a ser feliz - disse Clara. Blanca respondeu com outro soluço. - Pedro Tercero Garcia está vivo, filha - acrescentou Clara. Blanca engoliu o soluço e assoou o nariz. - Como sabe isso, mamã? - perguntou. - Porque o sonhei - respondeu Clara. Aquilo foi suficiente para tranquilizar Blanca completamente. Enxugou as lágrimas, endireitou a cabeça e não tornou a chorar até ao dia em que morreu a mãe, sete anos mais tarde, apesar de não lhe faltarem dores saudades e outras razões. Separada da filha, a quem tinha estado sempre muito unida, Clara entrou noutro dos seus períodos confusos e depressivos. Continuou a fazer a mesma vida, com a grande casa aberta e sempre cheia de gente, com reuniões de espiritualistas e serões literários, mas perdeu a capacidade de se rir com facilidade e ficava amiúde a olhar fixamente em frente, perdida nos seus pensamentos. Tentou estabelecer com Blanca um sistema de comunicação directa que lhe permitisse superar os atrasos do correio, mas a telepatia nem sempre funcionava, e não havia a certeza de uma boa recepção da mensagem. Pude comprovar que as suas comunicações se embrulhavam em interferências incontroláveis, ouvindo-se coisas bem diferentes do que ela tinha querido transmitir. Além disso, Blanca não era permeável às experiências psíquicas e, apesar de ter estado sempre muito perto da mãe, nunca demonstrou a menor curiosidade pelos fenómenos da mente. Era uma mulher prática, terrena e desconfiada, e a sua natureza moderna e pragmática um grande obstáculo para a telepatia. Clara teve de se resignar a usar métodos convencionais. Mãe e filha escreviam uma à outra quase todos os dias e a sua volumosa correspondência substituiu por vários meses os cadernos de anotar a vida. Dessa maneira Blanca sabia tudo o que sucedia na casa grande da esquina e podia brincar com a ilusão de que ainda estava com a família e que o casamento era só um mau sonho. Nesse ano, os caminhos de Jaime e Nicolau distanciaram-se definitiva-mente, porque as diferenças entre os irmãos eram irreconciliáveis. Nicolau andava por essa altura com a novidade do flamenco, que dizia ter aprendido com os ciganos nas grutas de Granada, ainda que na realidade nunca tivesse saído do pais, mas a sua convicção era tal que até no seio da própria família começaram a duvidar. À menor provocação fazia uma demonstração. Saltava para cima da mesa da sala de jantar, para a mesa de carvalho que tinha servido para fazer o velório de Rosa muitos anos antes e que Clara tinha herdado, e começava a bater palmas como um maluco, a sapatear espasmodi-camente, a dar saltos e gritos agudos, até conseguir atrair todos os habitantes da casa, alguns vizinhos e numa ocasião até os carabineiros, que chegaram com os casse-têtes na mão, enlameando as alcatifas com as botas, mas que acabaram como todos os outros, aplaudindo e gritando olé. A mesa resistiu heroicamente, embora ao fim de uma semana tivesse a aparência de uma banca de talho usada para esquartejar bezerros. A dança flamenca não tinha nenhuma utilidade prática na fechada sociedade da capital da altura, mas Nicolau pôs um discreto anúncio no jornal oferecendo os seus serviços como professor dessa fogosa dança. No dia seguinte tinha uma aluna e numa semana tinha corrido o rumor do seu encanto. As raparigas acudiam em grupos, a princípio envergonhadas e tímidas, mas ele começava a rodopiar à sua volta, a sapatear enlaçando-as pela cintura, a sorrir-lhes com o seu estilo de sedutor e em pouco tempo conseguia entusiasmá-las. As aulas foram um êxito. A mesa da sala de jantar estava quase a desfazer-se em pedaços, Clara começou a queixar-se de enxaquecas e Jaime passava o tempo fechado no quarto tentando estudar com duas bolas de cera nos ouvidos. Quando Esteban Trueba soube o que se passava em casa durante a sua ausência, teve uma justa e terrível cólera e proibiu o filho de usar a casa como academia de dança flamenca ou de qualquer outra coisa. Nicolau teve de desistir das contorções, mas a experiência serviu-lhe para se tornar o jovem mais popular da temporada, o rei das festas e de todos os corações femininos porque, enquanto os outros estudavam, se vestiam com casacos cinzentos assertoados e cofiavam o bigode ao ritmo dos boleros, ele praticava o amor livre, citava Freud, bebia Pernod e dançava flamenco. O êxito social, no entanto, não conseguiu diminuir-lhe o interesse pelas habilidades psíquicas da mãe. Tentava em vão imitá-la. Estudava com veemência, praticava até pôr em perigo a saúde e assistia às reuniões das sextas-feiras com as três irmãs Mora, apesar da proibição expressa da mãe, que insistia na ideia de que aquilo não era assunto de homens. Clara fazia por o consolar dos fracassos: - Isto não se aprende nem se herda, meu filho - dizia, quando o via concentrar-se até ficar vesgo no esforço desproporcionado para mover o saleiro sem lhe tocar. As três irmãs Mora gostavam muito do rapaz. Emprestavam-lhe livros secretos e ajudavam-no a decifrar os códigos dos horóscopos e das cartas de adivinhar. Sentavam-se à volta dele, de mãos dadas, para o trespassar de fluidos benéficos, mas nem isso conseguiu dotar Nicolau de poderes mentais. Ampararam-no nos amores com Amanda. No começo a jovem pareceu fascinada com a mesa de pé-de-galo e com os artistas guedelhudos da casa de Nicolau, mas em breve se cansou de evocar fantasmas e de recitar o Poeta, cujos versos andavam de boca em boca, começando a trabalhar como repórter num jornal. - Isso é uma profissão de palhaço - disse Esteban Trueba ao tomar conhecimento. Trueba não sentia simpatia por ela. Não gostava de a ver em sua casa. Pensava que era uma má influência para o filho e tinha a ideia de que o cabelo comprido, os olhos pintados e as missangas eram sintomas de algum vício oculto, e que a sua tendência para tirar os sapatos e se sentar no chão de pernas cruzadas, como uma indígena, eram maneiras de machona. Amanda tinha uma visão muito pessimista do mundo e para suportar as depressões, fumava haxixe. Nicolau acompanhava-a. Clara notou que o seu filho passava por maus momentos, mas nem sequer a sua prodigiosa intuição lhe permitiu relacionar os cachimbos orientais que Nicolau fumava com os seus desvios delirantes, a suas modorras ocasionais e os ataques de injustificada alegria, porque nunca tinha ouvido falar daquela droga nem de nenhuma outra. «São coisas da idade, há-de passar-lhe», dizia quando o via actuar como um lunático, sem se lembrar que Jaime tinha nascido no mesmo dia e não tinha nenhum desses desvarios. As loucuras de Jaime eram de estilo muito diferente. Tinha vocação para o sacríficio e a austeridade. No seu roupeiro só tinha três camisas e duas calças. Clara passava o Inverno a tecer à pressa prendas de lã grosseira, para o ter agasalhado, mas ele usava-as só até que outro mais necessitado lhe aparecesse pela frente. Todo o dinheiro que lhe dava o pai ia parar aos bolsos dos indigentes que atendia no hospital. Sempre que algum cão esquelético o seguia na rua, asilava-o em casa, e quando sabia da existência de um menino abandonado, de uma mãe solteira ou de uma velhinha sozinha que necessitassem da sua protecção, chegava com eles para a mãe tomar conta do caso. Clara tornou-se uma especialista em assistência social, conhecia todos os serviços do Estado e da Igreja onde se podiam instalar os infelizes e, quando tudo isso faltava, acabava por aceitá-los em casa. As amigas tinham-lhe medo, porque todas as vezes que aparecia de visita era porque tinha alguma coisa a pedir-lhes. Desta maneira se alargou a rede dos protegidos de Clara e Jaime, que já tinham perdido o conto da gente que ajudavam, de tal maneira que era uma surpresa que aparecesse alguém a agradecerlhe um favor que não recordavam ter feito. Jaime começou os seus estudos de medicina com uma vocação religiosa. Parecia-lhe que qualquer diversão que o afastasse dos livros ou lhe roubasse o tempo era uma traição à humanidade que tinha jurado servir. «Este menino devia ter ido para padre», dizia Clara. Para Jaime, a quem os votos de humildade, pobreza e castidade do sacerdote nada diziam, a religião era a causa de metade das desgraças do mundo, por isso quando a mãe manifestava essa opinião punha-se furioso. Dizia que o cristianismo, como quase todas as superstições, tornava o homem mais débil e resignado e que não havia que esperar uma recompensa no céu, mas sim lutar pelos seus direitos na terra. Estas coisas discutia-as a sós com a mãe, porque era impossível fazê-lo com Esteban Trueba, que perdia rapidamente a paciên-cia e acabava aos gritos e a atirar com as portas, porque, como ele dizia, já estava farto de viver entre doidos varridos e a única coisa que queria era um pouco de normalidade, mas tinha tido a má sorte de se casar com uma excêntrica e de engendrar três chanfrados que não serviam para nada e que lhe amarguravam a existência. Jaime não discutia com o pai. Passava pela casa como uma sombra, dava um beijo distraído à mãe quando a via e dirigia-se directamente à cozinha, comia de pé as sobras dos outros e fechava-se logo a seguir no quarto a ler ou a estudar. O quarto era um túnel de livros, todas as paredes estavam cobertas desde o chão até ao tecto, com estantes de madeira cheias de volumes que ninguém limpava, porque ele fechava a porta à chave. Eram ninhos ideais para as aranhas e para os ratos. No meio da divisão estava a cama, uma tarimba de recruta, iluminada por uma lâmpada desco-berta pendurada do tecto sobre a cabeceira. Durante um tremor de terra que Clara não previu por esquecimento, sentiu-se um estrépito de comboio descar-rilado e, quando puderam abrir a porta, viram que a cama estava enterrada debaixo de uma montanha de livros. As estantes tinham tombado, deixando Jaime deitado debaixo delas. Retiraram-no sem uma beliscadura. Enquanto clara tirava os livros, recordava-se do terramoto e pensava que já tinha vivido esse momento. A ocasião serviu para sacudir o pó ao quarto e espantar GS bichos e passarões à vassourada. As únicas vezes que Jaime afinava o olhar para perceber a realidade era quando via passar Amanda pela mão de Nicolau. Muito poucas vezes lhe dirigia a palavra e corava violentamente se ela o fazia. Desconfiava da sua aparência exótica e estava convencido de que, se ela se penteasse como toda a gente e tirasse a pintura dos olhos, ficaria como um rato magro e verdoso. No entanto, não podia deixar de a olhar. A chocalhada das pulseiras que acompa-nhava a jovem distraia-o dos seus estudos e tinha de fazer um grande esforço para não a seguir pela casa como uma galinha hipnotizada. Sozinho, na cama, sem poder concentrar-se na leitura, imaginava Amanda nua, envolta no cabelo preto, com todos os seus adornos ruidosos, como um ídolo. Jaime era um solitário. Foi um menino intratável e mais tarde um homem tímido. Não gostava de si próprio e talvez por isso pensasse que não merecia o amor dos outros. A menor demonstração de solicitude ou agradecimento para com ele envergonhava-o e fazia-o sofrer. Amanda representava a essência de tudo o que era feminino e, por ser a companheira de Nicolau, de tudo o que era proibido. A personalidade livre, afectuosa e aventureira da rapariga fascinava-o e o seu aspecto de rato disfarçado provocava nele uma ânsia tormentada de a proteger. Desejava-a dolorosamente, mas nunca se atreveu a admiti-lo, nem no país secreto dos seus pensamentos. Nessa época, Amanda frequentava muito a casa dos Trueba: No jornal tinha um horário flexível e, sempre que podia, chegava à grande casa da esquina com o seu irmão Miguel, sem que a presença de ambos chamasse a atenção naquela grande casa sempre cheia de gente e actividade. Miguel teria então à roda de cinco anos, era discreto e limpo, não fazia reboliço, passava despercebido, confundindo-se com o desenho do papel das paredes e com os móveis, brincava sozinho no jardim e seguia Clara por toda a casa chamando-lhe mamã. Por isso, e porque chamava papá a Jaime, supuseram que Amanda e Miguel eram órfãos. Amanda andava sempre com o irmão, levava-o para o trabalho, habituou-o a comer de tudo a qualquer hora e a dormir estendido nos lugares mais incómodos. Rodeava-o de uma ternura apaixonada e violenta, coçava-o como se fosse um cãozinho, gritava-lhe quando se zangava e corria depois a abraçá-lo. Não deixava que ninguém repreendesse ou desse uma ordem ao irmão, não aceitava comentários sobre a estranha vida que o fazia levar e defendia-o como uma leoa, ainda que ninguém tivesse intenções de o atacar. A única pessoa a quem permitia dar opiniões sobre a educação de Miguel era a Clara, que a conseguiu convencer de que tinha de o mandar para a escola para não ser um eremita analfabeto. Clara não era especialmente partidária da educação regular, mas pensou que no caso de Miguel era neces-sário dar-lhe algumas horas diárias de disciplina e convivência com crianças da sua idade. Ela própria se encarregou de o matricular, de lhe comprar o material escolar e o uniforme, e acompanhou Amanda quando o foi deixar na escola no primeiro dia de aulas. à porta do infantário, Amanda e Miguel abraçaram-se chorando, sem que a professora conseguisse separar o menino das saias da irmã, a que se agarrou com unhas e dentes, berrando e aos pontapés desesperados a quem se aproximasse. Por fim, ajudada por Clara, a professora conseguiu arrastar o menino para dentro fechando a porta do colégio. Amanda ficou toda a manhã sentada no muro. Clara acompanhou-a porque se sentia culpada de tanta dor e começava a duvidar da sabedoria da sua iniciativa. Ao meio-dia tocou a sineta e o portão abriu-se. Viram sair um rebanho de escolares e entre eles, em ordem, calado e sem lágrimas, com um risco de lápis no nariz e as peúgas metidas pelos sapatos, ia o pequeno Miguel, que nessas poucas horas tinha aprendido a andar na vida sem ser pela mão da irmã. Amanda apertou-o contra o peito freneticamente e numa inspiração de momento disse: «Daria a vida por ti, Miguelito». Não sabia que um dia teria de fazê-lo. Entretanto, Esteban Trueba sentia-se cada vez mais sozinho e furioso. Resignou-se à ideia de que a mulher não voltaria a dirigir-lhe a palavra e, cansado de a perseguir pelos cantos, de lhe suplicar com o olhar e de fazer buracos nas paredes da casa de banho, decidiu dedicar-se à política. Tal como Clara tinha previsto, os mesmos de sempre ganharam as eleições, mas por uma margem tão escassa que todo o país se alertou. Trueba considerou que era o momento de sair em defesa dos interesses da Pátria e do Partido Conservador, já que ninguém melhor do que ele podia encarnar o político honesto e incorruptível, como ele próprio dizia, acrescentando que tinha subido pelo seu próprio esforço, dando trabalho e boas condições de vida aos empregados, dono da única propriedade com casas de tijolo. Respeitava a lei, a Pátria e a tradição e ninguém podia acusá-lo de nenhum delito maior que a fuga aos impostos. Contratou um administrador para substituir Pedro Segundo Garcia, pô-lo em Las Tres Marias encarregado das galinhas poedeiras e das vacas importadas e instalou-se definitivamente na capital. Passou vários meses dedicado à campanha, apoiando o Partido Conservador, que necessi-tava gente para apresentar nas próximas eleições parlamentares e com fortuna própria posta ao serviço da causa. A casa encheu-se de propaganda política e dos seus partidários, que praticamente a tomaram de assalto, misturando-se com os fantasmas dos corredores, os rosa-cruzes e as três irmãs Mora. Pouco a pouco, a corte de Clara foi empurrada para os quartos traseiros da casa. Estabeleceu-se uma fronteira invisível entre o sector ocupado por Esteban Trueba e o da mulher. Por inspiração de Clara e de acordo com as necessida-des do momento, foram brotando na nobre arquitectura senhorial quartinhos, escadas, torrezinhas e açoteias. Sempre que se tinha de alojar um novo hóspede, chegavam os mesmos pedreiros para acrescentar outro quarto. Assim, a grande casa da esquina chegou a parecer um labirinto. - Um dia esta casa vai servir para montar um hotel – dizia Nicolau. - Ou um pequeno hospital - acrescentava Jaime, que começou a alimentar a ideia de levar os seus pobres para o Bairro Alto. A fachada da casa manteve-se sem alterações. À frente viam-se as colunas heróicas e o jardim versalhês, mas para trás o estilo perdia-se. O jardim das traseiras era uma selva emaranhada onde proliferavam as variedades de plantas e flores e onde esvoaçavam os pássaros de Clara, juntamente com várias gerações de cães e gatos. Entre aquela fauna doméstica, o único exemplar que teve alguma relevância na recordação da família foi um coelho que Miguel levou, um pobre coelho vulgar que os cães lambiam constantemente, até que lhe caiu o pêlo, tornando-se o único calvo da sua espécie, coberto por uma pele furtacores que lhe dava a aparência de um réptil orelhudo. À medida que a data das eleições se aproximava, Esteban Trueba punha-se cada vez mais nervoso. Arriscara tudo o que tinha na sua aventura política. Uma noite não aguentou mais, foi bater à porta do quarto de Clara. Ela abriu-a. Estava em camisa de dormir e tinha posto os dentes, porque gostava de mordiscar bolachas enquanto escrevia no caderno de anotar a vida. Pareceu a Esteban tão jovem e formosa como no primeiro dia em que a levou pela mão àquele quarto alcatifado de azul e a pôs sobre a pele de Barrabás. Sorriu com a recordação. - Desculpa, Clara - disse corando como um escolar. - Sinto-me só e angustiado. Quero estar aqui um pouco, se não te importas. Clara sorriu também, mas não disse nada. Apontou-lhe o cadeirão e Esteban sentou-se. Ficaram um bocado de tempo calados, partilhando o prato de bolachas e olhando-se, estranhos, porque havia muito tempo que viviam debaixo do mesmo tecto sem se verem. - Suponho que sabes o que me está a atormentar – disse Esteban Trueba finalmente. Clara disse que sim com a cabeça. - Acreditas que vou ser eleito? Clara voltou a dizer que sim e então Esteban Trueba sentiu-se totalmente aliviado, como se ela lhe houvesse dado uma garantia escrita. Deu uma gargalhada alegre e sonora, pôs-se de pé, agarrou-a pelos ombros e beijou-a na testa. - Era formidável, Clara! Se tu o dizes, serei senador - exclamou. A partir dessa noite diminuiu a hostilidade entre os dois. Clara conti-nuou sem lhe dirigir a palavra, mas ele fazia caso omisso do seu silêncio e falava-lhe normalmente, interpretando os seus menores gestos como respos-tas. Em caso de necessidade, Clara usava os criados ou os filhos para enviar-lhe mensagens. Preocupava-se com o bem-estar do marido, ajudava-o no trabalho e acompanhava-o quando ele lhe pedia. Algumas vezes, sorria-lhe. Dez dias depois, Esteban Trueba foi eleito senador da República tal como Clara tinha previsto. Celebrou o acontecimento com uma festa para os amigos e correligionários, um aumento no salário dos empregados e dos trabalhadores de Las Tres Marias e um colar de esmeraldas, que deixou para Clara sobre a cama ao lado de um ramo de violetas. Clara começou a assistir às recepções sociais e aos actos políticos, onde a sua presença era necessária para que o marido projectasse a imagem do homem simples e familiar que o público e o Partido Conservador desejavam. Nessas ocasiões Clara punha os dentes e algumas jóias que Esteban lhe tinha oferecido. Passava por ser a dama mais elegante, discreta e encantadora do seu circulo social e ninguém chegou a suspeitar que aquele par distinto nunca se falava. Com a nova posição de Esteban Trueba aumentou o número de pessoas para atender na grande casa da esquina. Clara não conseguia contar as bocas que alimentava nem os gastos da casa. As facturas iam directamente para o escritório do senador Trueba, no Congresso, que pagava sem perguntar, porque tinha descoberto que quanto mais gastava mais parecia aumentar a sua fortuna, chegando à conclusão de que não seria Clara, com a sua hospitalidade indiscriminada e as suas obras de caridade, quem conseguiria arruiná-lo. A princípio usou o poder político como um brinquedo novo. Tinha chegado à maturidade transformado no homem rico e respeitado que jurara chegar a ser quando era um adolescente pobre, sem padrinhos e sem outro capital a não ser o orgulho e a ambição. Mas, em pouco tempo, compreendeu que estava tão sozinho como sempre. Os dois filhos evitavam-no e com Blanca não tinha voltado a ter nenhum contacto. Sabia dela pelo que lhe contavam os irmãos e limitava-se a mandar-lhe todos os meses um cheque, fiel ao compromisso que tinha tomado com Jean de Satigny. Estava tão afastado dos filhos que era incapaz de manter um diálogo com eles sem acabar aos gritos. Trueba teve conhecimento das loucuras de Nicolau quando já era demasiado tarde, quer dizer, quando toda a gente as comentava. Também não sabia nada da vida de Jaime. Se tivesse suspeitado que se reunia com Pedro Tercero Garcia, com quem chegou a desenvolver um carinho de irmão, certamente lhe teria dado uma apoplexia, mas Jaime tinha muito cuidado em não falar dessas coisas com o pai. Pedro Tercero Garcia tinha abandonado o campo. Depois do terrivel encontro com o patrão, o padre José Dulce Maria recolheu-o na casa paroquial e curou-lhe a mão. Mas o rapaz estava deprimido e repetia incansavelmente que a vida não tinha nenhum sentido, porque havia perdido Blanca e não podia tocar guitarra, o seu único consolo. O padre José Dulce Maria esperou que a forte compleição do jovem lhe cicatrizasse os dedos, pô-lo numa carroça e levou-o à reserva indígena, onde o apresentou a uma velha centenária que estava cega e tinha as mãos enclavinhadas pelo reumatismo, mas que ainda tinha vontade de fazer cestaria com os pés. «Se ela pode fazer cestos com os pés, tu podes tocar guitarra sem dedos», disse-lhe. E o jesuíta contou-lhe a sua história: - Na tua idade também eu estava apaixonado, filho. A minha noiva era a rapariga mais bonita da aldeia. íamos casar, ela começava a bordar o enxoval e eu a poupar para fazermos uma casinha, quando me mandaram para o serviço militar. Quando voltei, tinha casado com o homem do talho e tornara-se uma senhora gorda. Estive quase a atirar-me ao rio com uma pedra nos pés, mas depois decidi ir para padre. No ano em que tomei o hábito, ela enviuvou e vinha à igreja olhar-me com olhos lânguidos. As francas risadas do gigante jesuíta levantaram o moral a Pedro Tercero e fizeram-no sorrir pela primeira vez em três semanas. - Isto é para que vejas, meu filho - concluiu o padre José Dulce Maria, - que não há motivos para desesperar. Tornarás a ver Blanca um dia, quando menos esperares. Curado do corpo e da alma, Pedro Tercero Garcia foi para a capital com um embrulho de roupa e umas poucas moedas que o padre subtraiu das esmolas de domingo. Também lhe deu a direcção de um dirigente socialista da capital, que o acolheu em casa nos primeiros dias e que depois lhe arranjou trabalho como cantor numa associação recreativa. O jovem foi viver para um bairro operário, numa casa de madeira que lhe pareceu um palácio, sem mais mobiliário que um divã, um colchão, uma cadeira e dois caixotes que serviam de mesa. Dali divulgava o socialismo e ruminava o desgosto de que Blanca tivesse casado com outro, negando-se a aceitar as explicações e as palavras de consolo de Jaime. Em pouco tempo, tinha dominado a mão direita e multipli-cado o uso dos dedos que lhe restavam e continuou compondo canções de galinhas e raposos perseguidores. Um dia convidaram-no para um programa de rádio e esse foi o começo de uma vertiginosa popularidade que nem ele próprio esperava. A sua voz começou a ouvir-se frequentemente na rádio e o seu nome tornou-se conhecido. O senador Trueba, no entanto, nunca o ouviu nomear, porque em sua casa não admitia aparelhos de rádio. Considerava-os instrumentos próprios de gente inculta, portadores de influências nefastas e de ideias vulgares. Ninguém estava mais afastado da música popular que ele, para quem a única música suportável era a ópera durante a temporada lírica e a companhia de zarzuelas que vinha de Espanha todos os Invernos. No dia em que Jaime chegou a casa com a novidade de que queria mudar de apelido porque, desde que o pai era senador do Partido Conservador, os companheiros hostilizavamno na Universidade e desconfiavam dele no Bairro da Misericórdia, Esteban Trueba perdeu a paciência e esteve quase a esbofeteá-lo, mas conteve-se a tempo porque lhe viu no olhar que já não lhe toleraria isso. - Casei-me para ter filhos legítimos que tivessem o meu apelido e não bastardos que tenham apenas nome da mãe! - atirou-lhe lívido de fúria. Duas semanas mais tarde, ouviu comentar nos corredores do Congresso e nos salões do Clube que o seu filho Jaime tinha tirado as calças na Praça Brasil para as dar a um pobre e tinha regressado a casa em cuecas, ao longo de quinze quarteirões, seguido por uma chusma de crianças e curiosos que o vitoriavam. Cansado de defender a honra do ridículo e das chacotas, autorizou o filho a usar o apelido que lhe desse na gana, contanto que não fosse o seu. Nesse dia, fechado no escritório, chorou de decepção e de raiva. Disse a si próprio que semelhantes excentricidades passar-lhe-iam quando amadure-cesse e, mais tarde ou mais cedo, se tornaria num homem equilibrado. Em contrapartida, com o outro filho tinha perdido as esperanças. Nicolau passava de um projecto fantástico para outro. Andava por essa altura com a ilusão de cruzar a cordilheira, tal como muitos anos antes o tinha tentado o seu tio-avô Marcos, num meio de transporte pouco usual. Escolhera subir em balão, convencido de que o espectáculo de um gigantesco globo suspenso nas nuvens seria um irresistível elemento publicitário que qualquer bebida gasosa podia subsidiar. Copiou o modelo de um Zepelin alemão de antes da guerra, que subia por meio de um sistema de ar quente, levando dentro uma ou mais pes-soas de temperamento audaz. O trabalho de armar aquela gigantesca salsicha insuflável, estudar os mecanismos secretos, os ventos, os presságios das cartas e as leis da aerodinâmica mantiveram-no entretido por muito tempo. Esqueceu durante semanas as sessões de espiritismo das sextas-feiras com a mãe e as irmãs Mora, e nem sequer notou que Amanda tinha deixado de ir a casa. Logo que terminou a nave voadora, viu-se perante um obstáculo que não tinha calculado: o gerente das gasosas, um gringo do Arcansas, negou-se a financiar o projecto com o pretexto de que, se Nicolau morresse com o seu aparelho, baixariam as vendas da sua beberagem. Nicolau tratou de procurar outros patrocinadores, mas ninguém se interessou. Isso não foi suficiente para o fazer desistir dos seus propósitos e decidiu subir por todos os meios, mesmo que fosse de graça. No dia fixado, Clara continuou tecendo, imperturbável, sem prestar atenção aos preparativos do filho, apesar de toda a família, os vizinhos e os amigos estarem horrorizados com o plano sem pés nem cabeça de cruzar as montanhas com aquela máquina estrambólica. - Tenho o pressentimento de que não vai subir - disse Clara sem parar de tecer. Assim foi. No último momento, apareceu uma carrinha cheia de polícias no parque público que Nicolau tinha escolhido para subir. Exigiram uma auto-rização municipal que, obviamente, não tinha. Nem a pôde conseguir. Passou quatro dias correndo de uma repartição para outra, em esforços desesperados que esbarravam contra o muro da incompreensão burocrática. Nunca soube que, por trás da carrinha dos policias e das intermináveis papeladas, estava a influência do pai, que não estava disposto a permitir a aventura. Cansado de lutar contra a timidez do gringo das gasosas e contra a burocracia aérea, convenceu-se de que não podia levantar voo a menos que o fizesse clandes-tinamente, o que era impossível dadas as dimensões da nave. Entrou numa crise de ansiedade, da qual o tirou a mãe ao sugerir-lhe que, para não perder o investimento, usasse os materiais do balão para algum fim prático. Então, Nicolau idealizou a fábrica de sanduíches. O seu plano era fazer sanduíches de frango, embalá-las na tela do balão cortada em pedaços e vendê-las aos escriturários. A grande cozinha de sua casa pareceu-lhe ideal para a indústria. Os jardins das traseiras foram-se enchendo de aves com as patas atadas, que aguardavam a sua vez para os dois magarefes especialmente contratados lhes cortarem a cabeça em série. O pátio encheu-se de penas e o sangue salpicou as estátuas do Olimpo, o cheiro a consommé dava náuseas a toda a gente e o monte de tripas começava a encher o bairro de moscas, quando Clara pôs fim à matança com um ataque de nervos que por pouco a fazia voltar aos tempos da mudez. Este novo fracasso comercial não importou tanto a Nicolau, que também estava com o estômago e a consciência revolvidos pela carnificina. Resignou-se a perder o que tinha investido naqueles negócios e fechou-se no quarto a planear novas formas de ganhar dinheiro e de se divertir. - Há muito tempo que não vejo Amanda por aqui - disse Jaime, que já não podia resistir a impaciência do coração. Nesse momento, Nicolau recordou-se de Amanda e reparou que não a via deambular pela casa há umas três semanas e que não tinha assistido à tentativa fracassada de subir em balão nem à inauguração da indústria doméstica de pão com frango. Foi perguntar a Clara, mas a mãe também não sabia nada da jovem e estava começando a esquecê-la porque tivera de habituar a memória ao facto iniludível de que a casa era um passadiço de gente e, como ela dizia, não lhe chegava a alma para lamentar todos os ausentes. Nicolau decidiu então ir buscála, quando viu que lhe estavam a fazer falta a presença de borboleta inquieta de Amanda e os abraços sufocados e silenciosos nos quartos vazios da grande casa da esquina, onde brincavam como cachorros todas as vezes que Clara afrouxava a vigilância e Miguel se distraía a brincar ou cala a dormir nalgum canto. A pensão onde vivia Amanda com o irmãozinho era uma casa que meio século antes tivera provavelmente algum esplendor, alguma ostentação, mas que a tinha perdido à medida que a cidade se foi estendendo pelas encostas da cordilheira. Ocuparam-na primeiro os comerciantes árabes, que lhe aplicaram pretensiosos frisos de gesso rosado e, mais tarde, quando os árabes mudaram os seus negócios para o Bairro dos Turcos, o proprietário transformou-a em pensão, subdividindo-a em quartos mal iluminados, tristes, incómodos, próprios para inquilinos de poucos recursos. Tinha uma geografia impossível de corredores estreitos e húmidos, onde reinava eternamente o vapor da sopa de couve-flor e do guisado de repolho. A dona da pensão veio em pessoa a abrir a porta, uma mulherona imensa, provida de uma majestosa papada tripla e olhinhos orientais sumidos em pregas de gordura fossilizada, com anéis em todos os dedos e gestos afectados de noviça: - Não se aceitam visitantes do sexo oposto - disse a Nicolau. Mas Nicolau abriu o irresistível sorriso de sedutor e beijou-lhe a mão sem recuar frente ao carmesim estalado das suas unhas sujas, extasiou-se com os anéis e fez-se passar por um primo-irmão de Amanda, até que ela, derrotada, retorcendo-se em risinhos coquetes e reviravoltas elefantisíacas, levou-o pelas escadas empoeiradas até ao terceiro piso onde lhe indicou a porta de Amanda. Nicolau encontrou a jovem na cama, embrulhada num xaile desbotado, a jogar às damas com o seu irmão Miguel. Estava tão pálida e fraca que ele teve dificuldade em reconhecê-la. Amanda olhou-o sem sorrir e não lhe fez nem o menor gesto de boas-vindas. Miguel por sua vez, ficou na sua frente com as mãos na cintura: - Até que enfim que vens - disse-lhe o menino. Nicolau aproximou-se da cama e tentou recordar a coleante e morena Amanda, a Amanda frutífera e sinuosa dos seus encontros na escuridão dos quartos fechados, mas dentro da lã compacta do xaile e dos lençóis cinzentos havia uma desconhecida de olhos extraviados, que o observava com inexpli-cável dureza. «Amanda», murmurou pegando-lhe na mão. Aquela mão sem os anéis e as pulseiras de prata parecia tão abandonada como a pata dum pássaro moribundo. Amanda chamou o irmão. Miguel aproximou-se e ela disse-lhe qualquer coisa ao ouvido. O menino foi lentamente até à porta, de lá deu um último olhar furioso a Nicolau e saiu, fechando a porta sem ruído. - Perdoa-me, Amanda - balbuciou Nicolau. - Estive muito ocupado. Porque não me avisaste que estavas doente? - Não estou doente - respondeu ela. - Estou grávida. Esta palavra doeu a Nicolau como uma bofetada. Recuou até sentir o vidro da janela nas costas. Desde o primeiro momento em que despiu Amanda, tacteando no escuro, enredado nos trapos do seu disfarce existencia-lista, tremendo de antecipação pelas protuberâncias e pelos interstícios que muitas vezes tinha imaginado sem os chegar a conhecer na sua esplêndida nudez, supôs que ela teria experiência suficiente para evitar que ele se tornasse pai de família aos vinte e um anos e ela mãe solteira aos vinte e cinco. Amanda tivera amores anteriores e tinha sido a primeira a falar-lhe de amor livre. Mantinha a sua irrevogável determinação de ficarem juntos apenas enquanto tivessem simpatia um pelo outro, sem amarras e promessas para o futuro como Sartre e Beauvoir. Esse acordo, que a principio pareceu a Nicolau uma prova de frieza e despreconceito um pouco chocante, foi depois muito cómodo. Descontraído e alegre como era para todas as coisas da vida, encarou a relação amorosa sem medir as consequências. - Que vamos fazer agora! - exclamou. - Um aborto, evidentemente - respondeu ela. Uma onda de alívio sacudiu Nicolau. Tinha escapado ao abismo uma vez mais. Como sempre que brincava à beira do precipício, outra pessoa mais forte tinha surgido a seu lado para se encarregar das coisas, tal como no tempo do colégio, quando surrava os rapazes no recreio até lhe caírem em cima e então, no último instante, no momento em que o terror o paralisava, chegava Jaime que se punha na sua frente, transformando o seu pânico em euforia e permitindo-lhe ocultar-se entre os pilares do pátio a gritar insultos do refúgio, enquanto o irmão sangrava do nariz e distribuía murros com a silenciosa teimosia de uma máquina. Agora, era Amanda quem assumia a responsabilidade por ele. - Podemos casar, Amanda... se tu quiseres - balbuciou para salvar a honra. - Não! - respondeu ela sem vacilar. - Não gosto de ti o suficiente para isso, Nicolau. Imediatamente os seus sentimentos deram uma viragem brusca, porque essa possibilidade não lhe tinha vindo à ideia. Até então nunca tinha sido repudiado ou abandonado e em cada namorico tivera de recorrer ao seu bom tacto para se escapar sem ferir demasiado a rapariga da ocasião. Pensou na difícil situação em que se encontrava Amanda, pobre, sozinha, esperando um filho. Pensou que uma palavra sua poderia mudar o destino da jovem, tornando- se a respeitável esposa de um Trueba. Esses cálculos passaram-lhe pela cabeça numa fracção de segundo, mas em seguida sentiu-se envergonhado e corou ao surpreender-se mergulhado nesses pensamentos. Amanda pareceu-lhe logo magnífica. Vieram-lhe à memória todos os bons momentos que tinham vivido a dois, as vezes que se deitavam no chão fumando o mesmo cachimbo para se embriagarem um pouco juntos, rindo daquela droga que sabia a bosta seca e tinha efeitos muito pouco alucinógenos, mas que fazia funcionar o poder da sugestão; dos exercícios de ioga e da meditação, os dois sentados frente a frente, em completa descontracção, olhando-se nos olhos e murmurando palavras em sânscrito que poderiam transportá-los ao nirvana, mas que geralmente tinham um efeito contrário e acabavam escapulindo-se dos olhares alheios, agachados entre os matagais do jardim, amando-se como desesperados; dos livros lidos à luz de uma vela afogados em paixão e fumo; das tertúlias eternas discutindo os filósofos pessimistas do pós-guerra, ou concentrando-se para mover a mesa pé-de-galo, duas pancadas para sim, três para não, enquanto Clara gracejava com eles. Caiu de joelhos junto da cama suplicando a Amanda que não o deixasse, que lhe perdoasse, que continua-riam juntos como se nada se tivesse passado, que isso não era mais que um acidente infeliz que não podia alterar a essência intocável da sua relação. Mas ela não parecia ouvi-lo. Acariciava-lhe a cabeça com um gesto maternal e distante. - É inútil, Nicolau. Não vês que tenho a alma muito velha e tu és ainda uma criança. Serás sempre uma criança - disse-lhe. Continuaram a acariciar-se sem desejo e atormentando-se com as súpli-cas e as recordações. Saborearam a amargura de uma despedida que pressen-tiam, mas que ainda podiam confundir com uma reconciliação. Ela saiu da cama para preparar uma chávena de chá para os dois e Nicolau viu que usava um saiote velho como camisa de dormir. Tinha emagrecido e os seus torno-zelos pareciam patéticos. Andava descalça pelo quarto, com o xaile pelos ombros e o cabelo em desalinho, atarefada com o fogareiro a petróleo que havia sobre uma mesa que servia de secretária, mesa de comer e cozinha. Viu a desordem em que vivia Amanda e que até esse momento ignorava quase tudo acerca dela. Supunha que não tinha mais família que o irmão e que vivia com um magro salário, mas tinha sido incapaz de imaginar a sua verdadeira situação. A pobreza parecia-lhe um conceito abstracto e longínquo, aplicável aos caseiros de Las Tres Marias e aos pobres que o seu irmão Jaime socorria, mas com os quais ele nunca tinha estado em contacto. Amanda, a sua Amanda tão próxima e conhecida, era subitamente uma estranha. Olhava os seus vestidos, que pareciam trajes de uma rainha quando ela os punha, pendurados em pregos na parede, como tristes roupas de mendiga. Via a sua escova de dentes num copo sobre o lavatório oxidado, os sapatos de Miguel tantas vezes engraxados e tornados a engraxar que já tinham perdido a forma original, a velha máquina de escrever ao lado do fogareiro, os livros no meio das chávenas, o vidro partido de uma janela tapado com um recorte de revista. Era outro mundo. Um mundo de cuja existência não suspeitava. Até então, dum lado da linha divisória estavam os pobres e do outro as pessoas como ele, onde tinha colocado Amanda. Não sabia nada dessa silenciosa classe média que se debatia entre a pobreza do colarinho e da gravata e o desejo impossível de imitar a canalha dourada a que ele pertencia. Sentiu-se confuso e acabrunhado, pensando nas múltiplas ocasiões passadas em que ela teve provavelmente de aldrabá-los para que não se notasse a sua miséria na casa dos Trueba e ele, em completa inconsciência, não a tinha ajudado. Recordou as histórias do pai, quando lhe falava da sua infância pobre e de que na sua idade trabalhava para sustentar a mãe e a irmã, e pela primeira vez pôde encaixar essas narrativas didácticas numa realidade. Pensou que era assim a vida de Amanda. Partilharam uma chávena de chá sentados sobre a cama, porque só havia uma cadeira. Amanda contou-lhe o seu passado e o da sua família, de um pai alcoólico que era professor numa província do Norte, de uma mãe alquebrada e triste que trabalhava para sustentar seis filhos e como ela, logo que pôde contar consigo, saíra de casa. Tinha chegado à capital com quinze anos, a casa de uma madrinha bondosa que a ajudou por algum tempo. Depois, quando a mãe morreu, foi enterrá-la e buscar Miguel, que era ainda uma criança de fraldas. Desde então tinha-lhe servido de mãe. Do pai e do resto dos irmãos não tinha tornado a saber nada. Nicolau sentia crescer dentro de si o desejo de a proteger e de cuidar dela, de compensar-lhe todas as carências. Nunca a tinha amado tanto. Ao anoitecer viram chegar Miguel com as faces coradas, virando-se em segredo e divertido para esconder o presente que trazia escondido atrás das costas. Era um saco com pão para a irmã. Pôs-lho sobre a cama, beijou-a carinhosamente, alisou-lhe o cabelo com a mão pequenina, aconchegando-lhe as almofadas. Nicolau estremeceu, porque nos gestos do menino havia mais solicitude e ternura que em todas as carícias que ele tinha dado na sua vida a qualquer mulher. Compreendeu então o que Amanda queria dizer-lhe. «Tenho muito que aprender», murmurou. Apoiou a testa no vidro engordurado da janela, perguntando a si próprio se alguma vez seria capaz de dar na mesma medida em que esperava receber. - Como o vamos fazer? - perguntou, sem se atrever a dizer a palavra terrível. - Pede ajuda ao teu irmão Jaime - sugeriu Amanda. Jaime recebeu o irmão no seu túnel de livros, recostado na tarimba de recruta, iluminado pela luz da única lâmpada pendurada no tecto. Estava a ler sonetos de amor do Poeta, que na altura já tinha renome mundial, tal como previra Clara a primeira vez que o ouviu recitar com a sua voz telúrica, no salão literário. Especulava que os sonetos talvez tivessem sido inspirados pela presença de Amanda no jardim dos Trueba, onde o Poeta costumava sentar-se à hora do chá, a falar de canções desesperadas, na época em que era um hóspede habitual da grande casa da esquina. Ficou surpreendido com a visita do irmão porque, desde que tinham saído do colégio, cada dia se distanciavam mais. Nos últimos tempos não tinham nada que falar e saudavam-se com uma inclinação de cabeça as raras vezes que se cruzavam no umbral da porta. Jaime tinha desistido da ideia de atrair Nicolau às coisas transcendentais da existência. Ainda sentia que as frívolas diversões eram um insulto pessoal, porque não podia aceitar que ele gastasse tempo em viagens pelo mundo e massacres de galos, havendo tanto trabalho para fazer no Bairro da Misericórdia. Mas já não tentava arrastá-lo ao hospital, para que visse o sofrimento de perto, na esperança de que a miséria alheia conseguisse comover-lhe o coração de ave de arribação e deixou de o convidar para as reuniões com os socialistas na casa de Pedro Tercero, na última rua do bairro operário, onde se reuniam vigiados pela polícia todas as quintas-feiras. Nicolau ria-se das suas inquietações sociais dizendo que só um tonto com vocação de apóstolo podia sair pelo mundo em busca da desgraça e da fealdade com um coto de vela. Agora Jaime tinha o irmão na frente, olhando-o com a expressão culpada e suplicante que usara tantas vezes para ter o seu afecto. - Amanda está grávida - disse Nicolau sem preâmbulos. Teve de o repetir porque Jaime ficou imóvel, na mesma atitude dura que tinha sempre, sem que um só gesto denunciasse que tinha ouvido. Mas por dentro a frustração tomava conta dele. Em silêncio chamava Amanda pelo seu nome, agarrando-se, para manter o domínio, à doce ressonância dessa palavra. Era tão grande a necessidade de manter viva a ilusão que chegou a convencer-se de que Amanda tinha por Nicolau um amor infantil, uma relação limitada a passeios inocentes de mãos dadas, a discussões à volta de uma garrafa de absinto, aos poucos beijos fugidios que ele tinha surpreendido. Tinha-se negado à verdade dolorosa que agora tinha de enfrentar. - Não me contes. Não tenho nada a ver com isso – respondeu logo que pôde falar. Nicolau deixou-se cair sentado aos pés da cama, com a cara entre as mãos. - Tens de a ajudar, por favor - suplicou. Jaime fechou os olhos e respirou fundo, esforçando-se por controlar sentimentos loucos que lhe davam forças para matar o irmão, para casar ele próprio com Amanda, para chorar de impotência e decepção. Tinha a imagem da jovem na memória, tal como lhe aparecia sempre que a angústia do amor o derrotava. Via-a entrando e saindo da casa, como uma lufada de ar puro, No dia em que Jaime chegou a casa com a novidade de que queria mudar de apelido porque, desde que o pai era senador do Partido Conservador, os com-panheiros hostilizavamno na Universidade e desconfiavam dele no Bairro da Misericórdia, Esteban Trueba perdeu a paciência e esteve quase a esbofeteá-lo, mas conteve-se a tempo porque lhe viu no olhar que já não lhe toleraria isso. - Casei-me para ter filhos legítimos que tivessem o meu apelido e não bastardos que tenham apenas nome da mãe! - atirou-lhe lívido de fúria. Duas semanas mais tarde, ouviu comentar nos corredores do Congresso e nos salões do Clube que o seu filho Jaime tinha tirado as calças na Praça Brasil para as dar a um pobre e tinha regressado a casa em cuecas, ao longo de quinze quarteirões, seguido por uma chusma de crianças e curiosos que o vitoriavam. Cansado de defender a honra do ridículo e das chacotas, autorizou o filho a usar o apelido que lhe desse na gana, contanto que não fosse o seu. Nesse dia, fechado no escritório, chorou de decepção e de raiva. Disse a si próprio que semelhantes excentricidades passar-lhe-iam quando amadure-cesse e, mais tarde ou mais cedo, se tornaria num homem equilibrado. Em contrapartida, com o outro filho tinha perdido as esperanças. Nicolau passava de um projecto fantástico para outro. Andava por essa altura com a ilusão de cruzar a cordilheira, tal como muitos anos antes o tinha tentado o seu tio-avô Marcos, num meio de transporte pouco usual. Escolhera subir em balão, convencido de que o espectáculo de um gigantesco globo suspenso nas nuvens seria um irresistível elemento publicitário que qualquer bebida gasosa podia subsidiar. Copiou o modelo de um Zepelin alemão de antes da guerra, que subia por meio de um sistema de ar quente, levando dentro uma ou mais pessoas de temperamento audaz. O trabalho de armar aquela gigantesca sal-sicha insuflável, estudar os mecanismos secretos, os ventos, os presságios das cartas e as leis da aerodinâmica mantiveram-no entretido por muito tempo. Esqueceu durante semanas as sessões de espiritismo das sextas-feiras com a mãe e as irmãs Mora, e nem sequer notou que Amanda tinha deixado de ir a casa. Logo que terminou a nave voadora, viu-se perante um obstáculo que não tinha calculado: o gerente das gasosas, um gringo do Arcansas, negou-se a financiar o projecto com o pretexto de que, se Nicolau morresse com o seu aparelho, baixariam as vendas da sua beberagem. Nicolau tratou de procurar outros patrocinadores, mas ninguém se interessou. Isso não foi suficiente para o fazer desistir dos seus propósitos e decidiu subir por todos os meios, mesmo que fosse de graça. No dia fixado, Clara continuou tecendo, imperturbável, sem prestar atenção aos preparativos do filho, apesar de toda a família, os vizinhos e os amigos estarem horrorizados com o plano sem pés nem cabeça de cruzar as montanhas com aquela máquina estrambólica. - Tenho o pressentimento de que não vai subir - disse Clara sem parar de tecer. Assim foi. No último momento, apareceu uma carrinha cheia de polícias no parque público que Nicolau tinha escolhido para subir. Exigiram uma autorização municipal que, obviamente, não tinha. Nem a pôde conseguir. Passou quatro dias correndo de uma repartição para outra, em esforços desesperados que esbarravam contra o muro da incompreensão burocrática. Nunca soube que, por trás da carrinha dos policias e das intermináveis papeladas, estava a influência do pai, que não estava disposto a permitir a aventura. Cansado de lutar contra a timidez do gringo das gasosas e contra a burocracia aérea, convenceu-se de que não podia levantar voo a menos que o fizesse clandestinamente, o que era impossível dadas as dimensões da nave. Entrou numa crise de ansiedade, da qual o tirou a mãe ao sugerir-lhe que, para não perder o investimento, usasse os materiais do balão para algum fim prático. Então, Nicolau idealizou a fábrica de sanduíches. O seu plano era fazer sanduíches de frango, embalá-las na tela do balão cortada em pedaços e vendê-las aos escriturários. A grande cozinha de sua casa pareceu-lhe ideal para a indústria. Os jardins das traseiras foram-se enchendo de aves com as patas atadas, que aguardavam a sua vez para os dois magarefes especial-mente contratados lhes cortarem a cabeça em série. O pátio encheu-se de penas e o sangue salpicou as estátuas do Olimpo, o cheiro a consommé dava náuseas a toda a gente e o monte de tripas começava a encher o bairro de moscas, quando Clara pôs fim à matança com um ataque de nervos que por pouco a fazia voltar aos tempos da mudez. Este novo fracasso comercial não importou tanto a Nicolau, que também estava com o estômago e a consciência revolvidos pela carnificina. Resignou-se a perder o que tinha investido naqueles negócios e fechou-se no quarto a planear novas formas de ganhar dinheiro e de se divertir. - Há muito tempo que não vejo Amanda por aqui - disse Jaime, que já não podia resistir a impaciência do coração. Nesse momento, Nicolau recordou-se de Amanda e reparou que não a via deambular pela casa há umas três semanas e que não tinha assistido à tentativa fracassada de subir em balão nem à inauguração da indústria doméstica de pão com frango. Foi perguntar a Clara, mas a mãe também não sabia nada da jovem e estava começando a esquecê-la porque tivera de habituar a memória ao facto iniludível de que a casa era um passadiço de gente e, como ela dizia, não lhe chegava a alma para lamentar todos os ausentes. Nicolau decidiu então ir buscála, quando viu que lhe estavam a fazer falta a presença de borboleta inquieta de Amanda e os abraços sufocados e silenciosos nos quartos vazios da grande casa da esquina, onde brincavam como cachorros todas as vezes que Clara afrouxava a vigilância e Miguel se distraía a brincar ou cala a dormir nalgum canto. A pensão onde vivia Amanda com o irmãozinho era uma casa que meio século antes tivera provavelmente algum esplendor, alguma ostentação, mas que a tinha perdido à medida que a cidade se foi estendendo pelas encostas da cordilheira. Ocuparam-na primeiro os comerciantes árabes, que lhe aplicaram pretensiosos frisos de gesso rosado e, mais tarde, quando os árabes mudaram os seus negócios para o Bairro dos Turcos, o proprietário transformou-a em pensão, subdividindo-a em quartos mal iluminados, tristes, incómodos, próprios para inquilinos de poucos recursos. Tinha uma geografia impossível de corredores estreitos e húmidos, onde reinava eternamente o vapor da sopa de couve-flor e do guisado de repolho. A dona da pensão veio em pessoa a abrir a porta, uma mulherona imensa, provida de uma majestosa papada tripla e olhinhos orientais sumidos em pregas de gordura fossilizada, com anéis em todos os dedos e gestos afectados de noviça: - Não se aceitam visitantes do sexo oposto - disse a Nicolau. Mas Nicolau abriu o irresistível sorriso de sedutor e beijou-lhe a mão sem recuar frente ao carmesim estalado das suas unhas sujas, extasiou-se com os anéis e fez-se passar por um primo-irmão de Amanda, até que ela, derrotada, retorcendo-se em risinhos coquetes e reviravoltas elefantisíacas, levou-o pelas escadas empoeiradas até ao terceiro piso onde lhe indicou a porta de Amanda. Nicolau encontrou a jovem na cama, embrulhada num xaile desbotado, a jogar às damas com o seu irmão Miguel. Estava tão pálida e fraca que ele teve dificuldade em reconhecê-la. Amanda olhou-o sem sorrir e não lhe fez nem o menor gesto de boas-vindas. Miguel por sua vez, ficou na sua frente com as mãos na cintura: - Até que enfim que vens - disse-lhe o menino. Nicolau aproximou-se da cama e tentou recordar a coleante e morena Amanda, a Amanda frutífera e sinuosa dos seus encontros na escuridão dos quartos fechados, mas dentro da lã compacta do xaile e dos lençóis cinzentos havia uma desconhecida de olhos extraviados, que o observava com inexpli-cável dureza. «Amanda», murmurou pegando-lhe na mão. Aquela mão sem os anéis e as pulseiras de prata parecia tão abandonada como a pata dum pássaro moribundo. Amanda chamou o irmão. Miguel aproximou-se e ela disse-lhe qualquer coisa ao ouvido. O menino foi lentamente até à porta, de lá deu um último olhar furioso a Nicolau e saiu, fechando a porta sem ruído. - Perdoa-me, Amanda - balbuciou Nicolau. - Estive muito ocupado. Porque não me avisaste que estavas doente? - Não estou doente - respondeu ela. - Estou grávida. Esta palavra doeu a Nicolau como uma bofetada. Recuou até sentir o vi-dro da janela nas costas. Desde o primeiro momento em que despiu Amanda, tacteando no escuro, enredado nos trapos do seu disfarce existencialista, tremendo de antecipação pelas protuberâncias e pelos interstícios que muitas vezes tinha imaginado sem os chegar a conhecer na sua esplêndida nudez, supôs que ela teria experiência suficiente para evitar que ele se tornasse pai de família aos vinte e um anos e ela mãe solteira aos vinte e cinco. Amanda tivera amores anteriores e tinha sido a primeira a falar-lhe de amor livre. Mantinha a sua irrevogável determinação de ficarem juntos apenas enquanto tivessem simpatia um pelo outro, sem amarras e promessas para o futuro como Sartre e Beauvoir. Esse acordo, que a principio pareceu a Nicolau uma prova de frieza e despreconceito um pouco chocante, foi depois muito cómodo. Descon-traído e alegre como era para todas as coisas da vida, encarou a relação amorosa sem medir as consequências. - Que vamos fazer agora! - exclamou. - Um aborto, evidentemente - respondeu ela. Uma onda de alívio sacudiu Nicolau. Tinha escapado ao abismo uma vez mais. Como sempre que brincava à beira do precipício, outra pessoa mais forte tinha surgido a seu lado para se encarregar das coisas, tal como no tempo do colégio, quando surrava os rapazes no recreio até lhe caírem em cima e então, no último instante, no momento em que o terror o paralisava, chegava Jaime que se punha na sua frente, transformando o seu pânico em euforia e permi-tindo-lhe ocultar-se entre os pilares do pátio a gritar insultos do refúgio, enquanto o irmão sangrava do nariz e distribuía murros com a silenciosa teimosia de uma máquina. Agora, era Amanda quem assumia a responsabilidade por ele. - Podemos casar, Amanda... se tu quiseres - balbuciou para salvar a honra. - Não! - respondeu ela sem vacilar. - Não gosto de ti o suficiente para isso, Nicolau. Imediatamente os seus sentimentos deram uma viragem brusca, porque essa possibilidade não lhe tinha vindo à ideia. Até então nunca tinha sido repudiado ou abandonado e em cada namorico tivera de recorrer ao seu bom tacto para se escapar sem ferir demasiado a rapariga da ocasião. Pensou na difícil situação em que se encontrava Amanda, pobre, sozinha, esperando um filho. Pensou que uma palavra sua poderia mudar o destino da jovem, tornandose a respeitável esposa de um Trueba. Esses cálculos passaram-lhe pela cabeça numa fracção de segundo, mas em seguida sentiu-se envergo-nhado e corou ao surpreender-se mergulhado nesses pensamentos. Amanda pareceu-lhe logo magnífica. Vieram-lhe à memória todos os bons momentos que tinham vivido a dois, as vezes que se deitavam no chão fumando o mesmo cachimbo para se embriagarem um pouco juntos, rindo daquela droga que sabia a bosta seca e tinha efeitos muito pouco alucinógenos, mas que fazia funcionar o poder da sugestão; dos exercícios de ioga e da meditação, os dois sentados frente a frente, em completa descontracção, olhando-se nos olhos e murmurando palavras em sânscrito que poderiam transportá-los ao nirvana, mas que geralmente tinham um efeito contrário e acabavam escapulindo-se dos olhares alheios, agachados entre os matagais do jardim, amando-se como desesperados; dos livros lidos à luz de uma vela afogados em paixão e fumo; das tertúlias eternas discutindo os filósofos pessimistas do pós-guerra, ou concentrando-se para mover a mesa pé-de-galo, duas pancadas para sim, três para não, enquanto Clara gracejava com eles. Caiu de joelhos junto da cama suplicando a Amanda que não o deixasse, que lhe perdoasse, que continua-riam juntos como se nada se tivesse passado, que isso não era mais que um acidente infeliz que não podia alterar a essência intocável da sua relação. Mas ela não parecia ouvi-lo. Acariciava-lhe a cabeça com um gesto maternal e distante. - É inútil, Nicolau. Não vês que tenho a alma muito velha e tu és ainda uma criança. Serás sempre uma criança - disse-lhe. Continuaram a acariciar-se sem desejo e atormentando-se com as súplicas e as recordações. Saborearam a amargura de uma despedida que pressentiam, mas que ainda podiam confundir com uma reconciliação. Ela saiu da cama para preparar uma chávena de chá para os dois e Nicolau viu que usava um saiote velho como camisa de dormir. Tinha emagrecido e os seus tornozelos pareciam patéticos. Andava descalça pelo quarto, com o xaile pelos ombros e o cabelo em desalinho, atarefada com o fogareiro a petróleo que havia sobre uma mesa que servia de secretária, mesa de comer e cozinha. Viu a desordem em que vivia Amanda e que até esse momento ignorava quase tudo acerca dela. Supunha que não tinha mais família que o irmão e que vivia com um magro salário, mas tinha sido incapaz de imaginar a sua verdadeira situação. A pobreza parecia-lhe um conceito abstracto e longínquo, aplicável aos caseiros de Las Tres Marias e aos pobres que o seu irmão Jaime socorria, mas com os quais ele nunca tinha estado em contacto. Amanda, a sua Amanda tão próxima e conhecida, era subitamente uma estranha. Olhava os seus vestidos, que pareciam trajes de uma rainha quando ela os punha, pendurados em pregos na parede, como tristes roupas de mendiga. Via a sua escova de dentes num copo sobre o lavatório oxidado, os sapatos de Miguel tantas vezes engraxados e tornados a engraxar que já tinham perdido a forma original, a velha máquina de escrever ao lado do fogareiro, os livros no meio das chávenas, o vidro partido de uma janela tapado com um recorte de revista. Era outro mundo. Um mundo de cuja existência não suspeitava. Até então, dum lado da linha divisória estavam os pobres e do outro as pessoas como ele, onde tinha colocado Amanda. Não sabia nada dessa silenciosa classe média que se debatia entre a pobreza do colarinho e da gravata e o desejo impossível de imitar a canalha dourada a que ele pertencia. Sentiu-se confuso e acabrunhado, pensando nas múltiplas ocasiões passadas em que ela teve provavelmente de aldrabá-los para que não se notasse a sua miséria na casa dos Trueba e ele, em completa inconsciência, não a tinha ajudado. Recordou as histórias do pai, quando lhe falava da sua infância pobre e de que na sua idade trabalhava para sustentar a mãe e a irmã, e pela primeira vez pôde encaixar essas narrativas didácticas numa realidade. Pensou que era assim a vida de Amanda. Partilharam uma chávena de chá sentados sobre a cama, porque só havia uma cadeira. Amanda contou-lhe o seu passado e o da sua família, de um pai alcoólico que era professor numa província do Norte, de uma mãe alquebrada e triste que trabalhava para sustentar seis filhos e como ela, logo que pôde contar consigo, saíra de casa. Tinha chegado à capital com quinze anos, a casa de uma madrinha bondosa que a ajudou por algum tempo. Depois, quando a mãe morreu, foi enterrá-la e buscar Miguel, que era ainda uma criança de fraldas. Desde então tinha-lhe servido de mãe. Do pai e do resto dos irmãos não tinha tornado a saber nada. Nicolau sentia crescer dentro de si o desejo de a proteger e de cuidar dela, de compensar-lhe todas as carências. Nunca a tinha amado tanto. Ao anoitecer viram chegar Miguel com as faces coradas, virando-se em segredo e divertido para esconder o presente que trazia escondido atrás das costas. Era um saco com pão para a irmã. Pôs-lho sobre a cama, beijou-a carinhosamente, alisou-lhe o cabelo com a mão pequenina, aconchegando-lhe as almofadas. Nicolau estremeceu, porque nos gestos do menino havia mais solicitude e ternura que em todas as carícias que ele tinha dado na sua vida a qualquer mulher. Compreendeu então o que Amanda queria dizer-lhe. «Tenho muito que aprender», murmurou. Apoiou a testa no vidro engordurado da janela, perguntando a si próprio se alguma vez seria capaz de dar na mesma medida em que esperava receber. - Como o vamos fazer? - perguntou, sem se atrever a dizer a palavra terrível. - Pede ajuda ao teu irmão Jaime - sugeriu Amanda. Jaime recebeu o irmão no seu túnel de livros, recostado na tarimba de recruta, iluminado pela luz da única lâmpada pendurada no tecto. Estava a ler sonetos de amor do Poeta, que na altura já tinha renome mundial, tal como previra Clara a primeira vez que o ouviu recitar com a sua voz telúrica, no salão literário. Especulava que os sonetos talvez tivessem sido inspirados pela presença de Amanda no jardim dos Trueba, onde o Poeta costumava sentar-se à hora do chá, a falar de canções desesperadas, na época em que era um hóspede habitual da grande casa da esquina. Ficou surpreendido com a visita do irmão porque, desde que tinham saído do colégio, cada dia se distanciavam mais. Nos últimos tempos não tinham nada que falar e saudavam-se com uma inclinação de cabeça as raras vezes que se cruzavam no umbral da porta. Jaime tinha desistido da ideia de atrair Nicolau às coisas transcendentais da existência. Ainda sentia que as frívolas diversões eram um insulto pessoal, porque não podia aceitar que ele gastasse tempo em viagens pelo mundo e massacres de galos, havendo tanto trabalho para fazer no Bairro da Misericórdia. Mas já não tentava arrastá-lo ao hospital, para que visse o sofrimento de perto, na esperança de que a miséria alheia conseguisse comover-lhe o coração de ave de arribação e deixou de o convidar para as reuniões com os socialistas na casa de Pedro Tercero, na última rua do bairro operário, onde se reuniam vigiados pela polícia todas as quintas-feiras. Nicolau ria-se das suas inquieta-ções sociais dizendo que só um tonto com vocação de apóstolo podia sair pelo mundo em busca da desgraça e da fealdade com um coto de vela. Agora Jaime tinha o irmão na frente, olhando-o com a expressão culpada e suplicante que usara tantas vezes para ter o seu afecto. - Amanda está grávida - disse Nicolau sem preâmbulos. Teve de o repetir porque Jaime ficou imóvel, na mesma atitude dura que tinha sempre, sem que um só gesto denunciasse que tinha ouvido. Mas por dentro a frustração tomava conta dele. Em silêncio chamava Amanda pelo seu nome, agarrando-se, para manter o domínio, à doce ressonância dessa palavra. Era tão grande a necessidade de manter viva a ilusão que chegou a convencer-se de que Amanda tinha por Nicolau um amor infantil, uma relação limitada a passeios inocentes de mãos dadas, a discussões à volta de uma garrafa de absinto, aos poucos beijos fugidios que ele tinha surpreendido. Tinha-se negado à verdade dolorosa que agora tinha de enfrentar. - Não me contes. Não tenho nada a ver com isso – respondeu logo que pôde falar. Nicolau deixou-se cair sentado aos pés da cama, com a cara entre as mãos. - Tens de a ajudar, por favor - suplicou. Jaime fechou os olhos e respirou fundo, esforçando-se por controlar sentimentos loucos que lhe davam forças para matar o irmão, para casar ele próprio com Amanda, para chorar de impotência e decepção. Tinha a imagem da jovem na memória, tal como lhe aparecia sempre que a angústia do amor o derrotava. Via-a entrando e saindo da casa, como uma lufada de ar puro, levando o irmão pela mão, ouvia o seu riso no terraço, cheirava-lhe o imper-ceptível e doce aroma da pele e do cabelo quando passava a seu lado em pleno sol do meio-dia. Via-a tal como a imaginava nas horas ociosas em que sonhava com ela. E, sobretudo, evocava-a nesse momento preciso, único, em que Amanda entrou no seu quarto e estiveram sós na intimidade do seu santuário. Entrou sem bater, quando ele estava deitado no catre a ler, encheu o túnel com as voltas do longo cabelo e dos braços ondulantes, mexeu nos livros sem nenhum respeito e até se atreveu a tirá-los daquelas prateleiras sagradas, soprou-lhes o pó sem o menor respeito e depois atirou-os para cima da cama, falando sem se cansar, enquanto ele tremia de desejo e de surpresa, sem encontrar em todo o seu vasto vocabulário enciclopédico nem uma só palavra para a reter, até que por fim ela se despediu com um beijo que lhe pregou na face, beijo que lhe ficou a arder como uma queimadura, único e terrível beijo, que lhe serviu para construir um labirinto de sonhos em que ambos eram príncipes enamorados. - Tu sabes alguma coisa de medicina, Jaime. Tens de fazer algo - pediu Nicolau. - Sou estudante, falta-me muito para ser médico. Não sei nada disso. Mas já vi muitas mulheres morrerem porque um ignorante fez a intervenção - disse Jaime. - Ela confia em ti. Diz que só tu podes ajudá-la – disse Nicolau. Jaime agarrou o irmão pela roupa e levantou-o no ar, sacudindo-o como um boneco, gritando todos os insultos que lhe passaram pela cabeça, até que os seus próprios soluços o obrigaram a soltá-lo. Nicolau chorou aliviado. Conhecia Jaime e percebeu que, como sempre, aceitava o papel de protector. - Obrigado, irmão! Jaime deu-lhe um murro sem vontade e empurrou-o para fora do quarto. Fechou a porta à chave e atirou-se de bruços para a cama, sacudido por esse pranto rouco e terrível com que os bonecos choram as penas de amor. Esperaram até ao domingo seguinte. Jaime recebeu-os no consultório do Bairro da Misericórdia onde praticava. Tinha a chave porque era o último a sair, de modo que pôde entrar sem dificuldade, mas sentia-se como um ladrão, porque não teria podido explicar a sua presença ali àquela hora tardia. Desde há três dias, estudava cuidadosamente cada passo da intervenção que ia efectuar. Podia repetir, palavra por palavra, o livro por ordem correcta mas nem isso lhe dava mais segurança. Estava a tremer. Procurava não pensar nas mulheres que tinha visto chegar agonizantes à sala de emergência do hospital, as que tinha ajudado a salvar naquele mesmo consultório e as outras, as que tinham morrido, lívidas, naquelas camas, com um rio de sangue correndo entre as pernas, sem que a ciência pudesse fazer nada para evitar que a vida lhes escapasse por essa torneira aberta. Conhecia o drama de muito perto, mas até àquele momento nunca tinha tido de enfrentar o conflito moral de ajudar uma mulher desesperada. E muito menos Amanda. Acendeu as luzes, vestiu a bata do seu oficio, preparou o instrumental passando em voz alta todos os pormenores que tinha decorado. Desejava que acontecesse uma desgraça material, um cataclismo que sacudisse o planeta nos seus alicerces, para não ter de fazer o que ia fazer. Mas nada aconteceu até à hora marcada. Entretanto, Nicolau tinha ido buscar Amanda no velho Covadonga, que só andava aos solavancos com as suas porcas, no meio de uma fumarada negra de óleo queimado, mas que também servia para as emergências. Ela esperava-o sentada na única cadeira do seu quarto, de mão dada a Miguel, mergulhados numa mútua cumplicidade da qual, como sempre, Nicolau se sentiu excluído. A jovem estava pálida e extenuada devido aos nervos e às últimas semanas de más disposições e incertezas que tinha suportado, mas estava mais calma do que Nicolau, que falava aos atropelos, não podia estar quieto e se esforçava por animá-la com uma alegria fingida e com gracejos inúteis. Tinha-lhe levado de presente um anel antigo de granadas e brilhantes que tirara do quarto da mãe, na certeza de que ela nunca daria pela falta e, mesmo que o visse na mão de Amanda, seria incapaz de o reconhecer, porque Clara não levava em conta essas coisas. Amanda devolveu-lho com suavidade: - Estás a ver, Nicolau, és uma criança - disse sem sorrir. No momento de sair, o pequeno Miguel enfiou um poncho e agarrou-se à mão da irmã. Nicolau teve de recorrer primeiro ao seu encanto e depois à força bruta para o deixar entregue à patroa da pensão, que nos últimos dias tinha sido definitivamente seduzida pelo suposto primo da pensionista e, contra as suas próprias normas, aceitara cuidar do menino naquela noite. Fizeram o trajecto sem falar, cada um metido nos seus temores. Nicolau percebia a hostilidade de Amanda como uma pestilência que se tivesse instalado entre os dois. Nos últimos dias ela tinha chegado a amadurecer a ideia da morte e temia-a menos que a dor e a humilhação que nessa noite teria de suportar. Ele guiava o Covadonga por uma zona desconhecida da cidade, por vielas estreitas e fábricas, por um bosque de chaminés que não deixavam passar a cor do céu. Os cães vadios cheiravam a imundície e os mendigos dormiam envoltos em jornais nos vãos das portas. Surpreendeu-o que fosse aquele o cenário quotidiano das actividades do irmão. Jaime estava à espera deles à porta do consultório. A bata branca e a sua própria ansiedade davam-lhe um ar muito grave. Levou-os através de um labirinto de corredores gelados até à sala que tinha preparado, procurando distrair Amanda da fealdade do lugar, para que não visse as toalhas amareladas nos baldes esperando a lavagem de segunda-feira, os palavrões garatujados -nas paredes, os ladrilhos soltos e as canalizações oxidadas que gotejavam sem parar. Amanda parou à porta do pavilhão com uma expressão de terror: tinha visto os instrumentos e a mesa ginecológica e o que até esse momento era uma ideia abstracta e uma brincadeira com a morte, tomou forma nesse instante. Nicolau estava lívido, mas Jaime pegou-lhe pelo braço e obrigou-os a entrar. - Não olhes, Amanda! Vou adormecer-te, para não sentires nada - disse-lhe. Nunca fizera nenhuma anestesia nem nenhuma operação. Como estu-dante limitava-se a trabalhos administrativos, a fazer estatísticas, a preencher fichas e a ajudar curativos, suturas e tarefas menores. Estava mais assustado do que a própria Amanda, mas adoptou a atitude prepotente e descontraída que tinha visto aos médicos, para ela acreditar que todo aquele assunto não era mais do que rotina. Quis evitar-lhe o trabalho de despir-se e evitar ele próprio a perturbação de a observar, por isso ajudou-a a estender-se vestida sobre a mesa. Enquanto se lavava e indicava a Nicolau a maneira de o fazer também, tentava distraí-la com a anedota do fantasma espanhol que tinha aparecido a Clara numa sessão das sextas-feiras, com o conto de que havia um tesouro escondido nas fundações da casa e falou-lhe na família: uma data de loucos extravagantes em várias gerações dos quais até os fantasmas se riam. Mas Amanda não o ouvia, estava pálida como um sudário e batiam-lhe os dentes. - Para que são essas correias? Não quero que me amarres! - Não te vou amarrar. Nicolau vai dar-te o éter. Respira tranquila e não te assustes porque quando acordares já terminámos. - Sorriu Jaime por cima da máscara. Nicolau aproximou da jovem a máscara da anestesia. A última pessoa que ela viu na escuridão foi Jaime a olhá-la, com amor, mas pensou que estava sonhando. Nicolau tirou-lhe a roupa e atou-a à mesa consciente de que aquilo era pior que uma violação, enquanto o irmão aguardava com as mãos enluvadas, tentando ver nela, não a mulher que ocupava todos os seus pensamentos, mas apenas um corpo como tantos que, todos os dias, passavam por essa mesma mesa, com um grito de dor. Começou a trabalhar com lentidão e cuidado, repetindo para si próprio o que tinha de fazer, mastigando o texto do livro que tinha aprendido de memó-ria, com o suor caindo-lhe sobre os olhos, atento à respiração da rapariga, à cor da sua pele, ao ritmo do coração, para dizer ao irmão que lhe pusesse mais éter cada vez que gemesse, rezando para que não acontecesse nenhuma complicação, enquanto esgravatava na sua mais profunda intimidade, sem deixar, em todo esse tempo, de maldizer o irmão em pensamento, porque se aquele filho fosse seu e não de Nicolau teria nascido são e completo, em vez de ir em pedaços pelo cano de esgoto daquele miserável consultório e ele tê-lo-ia embalado e protegido, em vez de o extrair do seu nicho às colheradas. Vinte e cinco minutos depois tinha terminado e ordenou a Nicolau que o ajudasse a acomodá-la enquanto Lhe passava o efeito do éter, mas viu que o irmão cambaleava apoiado contra a parede, tomado de violentos vómitos. - Idiota! - rugiu Jaime. - Vai à casa de banho. Depois de vomitares a culpa, aguarda na sala de espera, porque ainda temos pano para mangas! Nicolau saiu aos tropeções, Jaime tirou as luvas e a máscara e começou a tirar as correias de Amanda, a vestir-lhe delicadamente a roupa, a esconder os vestígios ensanguentados da sua obra e a retirar da vista os instrumentos da sua tortura. Levantou-a em seguida nos braços, saboreando aquele instante em que podia apertá-la contra o peito, e levou-a para uma cama onde tinha posto lençóis limpos, que era mais do que tinham as mulheres que iam ao consultório pedir socorro. Vestiu-a e sentou-se a seu lado. Pela primeira vez na sua vida podia observá-la à vontade. Era mais pequena e doce do que parecia quando andava por todo o lado com o disfarce de pitonisa e a choca-lhada de missangas e, tal como sempre tinha suspeitado, no seu corpo delgado os ossos eram apenas uma sugestão entre as pequenas colinas e os lisos vales da sua feminilidade. Sem a melena escandalosa e os olhos de esfinge, parecia ter quinze anos. A sua vulnerabilidade pareceu a Jaime mais desejável que tudo o que antes nela o tinha seduzido. Sentia-se maior e mais pesado do que ela duas vezes e mil vezes mais forte, mas sentia-se antecipa-damente derrotado pela ternura e pela ânsia de protegê-la. Amaldiçoou o seu invencIvel sentimentalismo e tentou vê-la como a amante do irmão a quem acabava de praticar um aborto, mas logo compreendeu que era uma intenção inútil, e abandonou-se ao prazer e ao sofrimento de a amar. Acariciou-lhe as mãos transparentes, os dedos finos, os lóbulos das orelhas, percorreu-lhe o pescoço ouvindo o rumor imperceptível da vida na suas veias. Aproximou a boca dos seus lábios e aspirou com avidez o odor da anestesia, mas não se atreveu a tocá-los. Amanda regressou do sono lentamente. Sentiu primeiro frio e a seguir deram-lhe vómitos. Jaime consolou-a falando-lhe na mesma linguagem secre-ta que reservava para os animais e para as crianças mais pequenas do hospital dos pobres, até que se foi acalmando. Ela começou a chorar e ele continuou a acariciá-la. Ficaram em silêncio, ela oscilando entre a modorra, as náuseas, a angústia e a dor que começava a arrepanhar-lhe o ventre, ele desejando que essa noite não terminasse nunca. - Crês que eu poderei ter filhos? - perguntou ela por fim. - Suponho que sim - respondeu ele. - Mas procura para eles um pai responsável. Os dois sorriram aliviados. Amanda procurou no rosto moreno de Jaime, inclinado tão próximo do seu, alguma semelhança com o de Nicolau e não a pôde encontrar. Pela primeira vez na sua existência de nómada sentiu-se protegida e segura, suspirou contente e esqueceu a sordidez que a rodeava, as paredes descascadas, os frios armários metálicos, os pavorosos instrumentos, o cheiro a desinfectante e também a dor rouca que se tinha instalado nas suas entranhas. - Por favor, deita-te a meu lado e abraça-me - disse. Ele estendeu-se timidamente na cama estreita rodeando-a com os braços. Procurava manter-se quieto para não a incomodar e não cair. Tinha a ternura desajeitada de quem nunca foi amado e deve improvisar. Amanda fechou os olhos e sorriu. Estiveram assim, respirando juntos em completa calma, como dois irmãos, até que começou a clarear e a luz da janela foi mais forte que a da lâmpada. Então Jaime ajudou-a a pôr-se em pé, vestindo-lhe o casaco e levou-a pelo braço até à antecâmara onde Nicolau tinha adormecido numa cadeira. - Acorda! Vamos levá-la a casa, para que a mãe cuide dela. É melhor não a deixar só por estes dias - disse Jaime. - Sabia que podia contar contigo, irmão - agradeceu Nicolau, emocionado. - Não o fiz por ti, desgraçado, mas por ela - grunhiu Jaime virando-lhe as costas. Na casa grande da esquina Clara recebeu-os sem fazer perguntas, ou talvez as fizesse directamente às cartas ou aos espíritos. Tiveram de acordá-la porque estava a amanhecer e ainda ninguém se tinha levantado. - Mamã, ajuda Amanda - pediu Jaime com a segurança que dava a grande cumplicidade que tinham nesses assuntos. – Está doente. Vai ficar por uns dias. - E o Miguelito?-perguntou Amanda. - Eu irei buscá-lo-disse Nicolau e saiu. Prepararam um dos quartos de hóspedes e Amanda deitou-se. Jaime tirou-lhe a temperatura e disse que devia descansar. Fez menção de se retirar, mas ficou parado no umbral da porta, indeciso. Nesse instante Clara voltou com uma bandeja com café para os três. - Suponho que lhe devemos uma explicação, mam㠖 murmurou Jaime. - Não, filho - respondeu Clara alegremente. - Se é pecado, prefiro que não mo contem. Vamos aproveitar para acarinhar Amanda um pouco, que bem falta lhe faz. Saiu seguida pelo filho. Jaime viu a mãe avançar pelo corredor descalça, com o cabelo solto pelas costas, vestida com o roupão branco e notou que não era alta e forte como a tinha visto na infância. Estendeu a mão e reteve-a por um ombro. Ela voltou a cabeça e sorriu, e Jaime abraçou-a de súbito, estreitando-a contra o peito, raspando-lhe a testa com o queixo onde a barba crescida já reclamava navalha. Era a primeira vez que lhe fazia uma carícia espontânea desde que era uma criança presa por necessidade aos seus seios e Clara surpreendeu-se ao ver como o seu filho era grande, com um tórax de levantador de pesos e braços como martelos que a esmagavam num gesto temeroso. Emocionada e feliz perguntou a si própria como era possível que aquele homenzarrão peludo, com a força de um urso e a candura de uma noviça, tivesse estado alguma vez na sua barriga e além disso na companhia de outro. Nos dias seguintes Amanda teve febre. Jaime, assustado, vigiava-a a todo o momento e administrava-lhe sulfamidas. Clara cuidava dela. Não deixou de observar que Nicolau perguntava por Amanda discretamente, mas não fazia nenhuma tentativa de a visitar, e que por seu lado Jaime fechava-se com ela, emprestava-lhe os seus livros mais queridos e andava como que iluminado, dizendo incoerências e rondando pela casa como nunca o tinha feito, até ao ponto de esquecer a reunião dos socialistas das quintas-feiras. Foi assim que Amanda passou a fazer parte da família durante algum tempo e que Miguelito, por uma circunstância especial, esteve presente, escondido no armário, no dia em que nasceu Alba na casa dos Trueba, nunca mais esquecendo o grandioso e terrível espectáculo da criança vinda ao mundo envolvida nas mucosidades ensanguentadas, entre os gritos da mãe e o alvoroço das mulheres que circulavam à sua volta. Entretanto, Esteban Trueba tinha partido de viagem para a América do Norte. Cansado com a dor dos ossos e com aquela secreta doença que só. ele percebia, tomou a decisão de se fazer examinar pelos médicos estrangeiros, porque tinha chegado à conclusão apressada de que os médicos latinos eram todos uns charlatões mais próximos do bruxo indígena que do cientista. O seu encolhimento era tão subtil, tão lento e disfarçado, que ninguém mais tinha notado. Tinha de comprar os sapatos um númeromais pequeno, tinha de fazer encurtar as calças e de mandar fazer pregas nas mangas das camisas. Um dia pôs o boné que não tinha usado em todo o Verão e viu que lhe cobria comple-tamente as orelhas, donde deduziu horrorizado que estava encolhendo o tamanho do seu cérebro provavelmente também minguavam as suas ideias. Os médicos gringos mediram-lhe o corpo, viram-lhe os dentes um por um, interrogaram-no em inglês, injectaram-lhe líquidos com uma agulha e extraíram-lhos com outra, radiografaram-no, viraram-no do avesso como uma luva e até lhe meteram uma lâmpada no ânus. Por fim, concluíram que eram puras ideias suas, que não pensasse que estava a encolher, que tinha tido sempre o mesmo tamanho e que certamente tinha sonhado que alguma vez medira um metro e oitenta e calçava quarenta e dois. Esteban Trueba acabou por perder a paciência e regressou à pátria disposto a não prestar atenção ao problema da estatura, visto que todos os grandes políticos da história tinham sido pequenos, desde Napoleão até Hitler. Quando chegou a casa, viu Miguel brincando no jardim, Amanda mais magra e olheirenta, sem colares nem pulseiras, sentada com Jaime no terraço. Não fez perguntas, porque estava acostumado a ver gente estranha à família vivendo debaixo do seu próprio tecto. Capítulo VIII O Conde Esse período teria desaparecido na confusão das recordações antigas e apagadas pelo tempo se não fossem as cartas que Clara e Blanca trocaram. Essa vasta correspondência preservou os acontecimentos, salvando-os da nebulosa dos factos improváveis. A partir da primeira carta que recebeu da filha, depois do casamento, Clara pôde adivinhar que a sua separação de Blanca não seria por muito tempo. Sem dizer a ninguém, preparou um dos mais soalheiros e amplos quartos da casa, para a esperar. Instalou ali o berço de bronze onde tinha criado os três filhos. Blanca nunca pôde explicar à mãe as razões pelas quais tinha aceitado casar, porque nem ela própria as sabia. Analisando o passado, quando já era uma mulher madura, chegou à conclusão de que a causa principal foi o medo que sentia pelo pai. Desde criança de peito tinha conhecido a força irracional da sua ira e estava habituada a obedecer-lhe. A gravidez e a noticia de que Pedro Tercero tinha morrido acabaram por fazê-la decidir; no entanto, propôs a si própria, no momento em que aceitou o enlace com Jean de Satigny, que nunca consumaria o casamento. Ia inventar toda a espécie de argumentos para atrasar a união, a princípio sob o pretexto das indisposições próprias do seu estado e depois procuraria outros, certa de que seria muito mais fácil manejar um marido como o conde, que usava calçado de pelica, punha verniz nas unhas e estava disposto a casar com uma mulher grávida de outro, do que opor-se a um pai como Esteban Trueba. De dois males, escolheu o que lhe pareceu menor. Deu conta que entre o pai e o conde francês havia um acordo comercial em que ela não tinha nada a dizer. Em troca de um apelido para o neto, Trueba deu a Jean de Satigny um dote suculento e a promessa de que um dia receberia uma herança. Blanca prestou-se para o negócio, mas não estava disposta a entregar ao marido nem amor nem a intimidade, porque continuava a amar Pedro Tercero Garcia, mais por força do hábito, do que pela esperança de o tornar a ver. Blanca e o seu flamante marido passaram a primeira noite de casados no quarto nupcial do melhor hotel da capital, que Trueba mandou encher de flores para a filha lhe perdoar o rosário de violências com que a tinha casti-gado nos últimos meses. Para sua surpresa, Blanca não teve necessidade de fingir uma enxaqueca, porque logo que ficaram sós, Jean abandonou o papel de noivo que lhe dava beijos no pescoço e escolhia os melhores lagostins para lhos dar na boca, e pareceu esquecer por completo os modos sedutores de galã de cinema mudo, para se transformar no irmão que havia sido para ela nos passeios do campo, quando iam merendar sobre a relva com a máquina foto-gráfica e os livros em francês. Jean entrou na casa de banho, onde se demorou tanto que, quando reapareceu no quarto, Blanca estava meio adormecida. Julgou estar sonhando ao ver que o marido tinha trocado o fato de casamento por um pijama de seda negra e um roupão de veludo estilo Pompeia, tinha posto uma rede para segurar as impecáveis ondas do penteado e cheirava intensamente a colónia inglesa. Não parecia ter nenhuma impaciência erótica. Sentou-se ao seu lado na cama, acariciou-lhe a face com o mesmo gesto um pouco brincalhão que ela tinha visto noutras ocasiões, e começou a explicar no afectado espanhol sem erres que não tinha nenhuma inclinação especial para o casamento, porque era um homem apaixonado só pelas artes, pelas letras e pelas curiosidades cientificas, e que por isso não queria incomodá-la com exigências de marido, de maneira que podiam viver juntos, mas não revoltados, em perfeita harmonia e boa educação. Aliviada estendeu-lhe os braços ao pescoço e beijou-o em ambas as faces. - Obrigado, Jean! - exclamou. - Não tem de quê - respondeu cortesmente. Acomodaram-se na grande cama de falso estilo Império, comentando os pormenores da festa e fazendo planos para a sua vida futura. - Não te interessa saber quem é o pai do meu filho? - perguntou Blanca. - Sou eu - respondeu Jean, beijando-a na testa. Dormiram cada um para seu lado, de costas viradas. Às cinco da manhã Blanca despertou com o estômago às voltas devido ao cheiro adocicado das flores com que Esteban Trueba tinha decorado o quarto nupcial. Jean de Satigny acompanhou-a à casa de banho, segurou-lhe a testa enquanto se dobrava sobre a sanita, ajudou-a a deitar-se e atirou as flores para o corredor. Depois ficou acordado o resto da noite a ler A Filosofia da Alcova, do Marquês de Sade, enquanto Blanca suspirava entre sonhos que era estupendo estar casada com um intelectual. No dia seguinte Jean foi ao Banco levantar um cheque do sogro e passou quase todo o dia percorrendo as lojas do centro para comprar o enxoval de noivo que considerou apropriado para a sua nova posição económica. Entretanto, Blanca, aborrecida de esperar por ele no hall do hotel resolveu ir visitar a mãe. Pôs o melhor chapéu da manhã e partiu num fiacre para a grande casa da esquina, onde o resto da família estava a almoçar em silêncio, ainda rancorosos e cansados pelos sobressaltos do casamento e pela ressaca das últimas lutas. Ao vê-la entrar na sala de jantar, o pai deu um grito de horror: - Que fazes aqui, filha! - rugiu. - Nada... venho vê-los - murmurou Blanca aterrada. - Está louca! Não vê que se alguém a vê vão dizer que o seu marido a devolveu em plena lua-de-mel? Vão dizer que não era virgem! - E não era, papá. Esteban esteve a pontos de lhe estampar um bofetão na cara, mas Jaime meteu-se na frente com tanta determinação que se limitou a insultá-la pela sua estupidez. Clara, sem se impressionar, levou Blanca até uma cadeira e serviu-lhe um prato de peixe frito com molho de alcaparras. Enquanto Esteban continuava a gritar e Nicolau ia buscar o carro para a levar ao marido, as duas cochicharam como nos velhos tempos. Nessa mesma tarde, Blanca e Jean tomaram o comboio que os levou ao porto. Aí embarcaram num transatlântico inglês. Ele vestia calças de linho branco e um casaco azul de corte à marinheira, que combinava na perfeição com a saia azul e o casaco branco do tailleur da mulher. Quatro dias mais tarde, o barco largou-os na mais esquecida província do Norte, onde as elegantes roupas e as malas de crocodilo passaram despercebidas no calor seco da hora da sesta. Jean de Satigny instalou provisoriamente a esposa num hotel e deu-se ao trabalho de procurar um alojamento digno dos seus novos rendimentos. Vinte e quatro horas depois, a pequena sociedade provin-ciana sabia que havia um conde autêntico entre eles. Isso facilitou muito as coisas a Jean. Pôde alugar uma antiga mansão que tinha pertencido a uma das grandes fortunas dos tempos do salitre, antes de se ter inventado o substituto sintético que arruinou toda a região. A casa estava um pouco triste e abandonada como tudo o resto, necessitava de algumas reparações, mas conservava intacta a dignidade de antigamente e o encanto do fim do século. O conde decorou-a com gosto, com um refinamento equívoco e decadente que surpreendeu Blanca, acostumada à vida do campo e à sobriedade clássica do seu pai. Jean colocou suspeitos jarrões de porcelana chinesa que em vez de flores tinham plumas de avestruz coloridas, cortinas de damasco com drape-jados e borlas, almofadões com franjas e pompons, móveis de todos os estilos, bengalas douradas, biombos e uns incríveis candeeiros de pé, sustidos por estátuas de loiça representando negros abissínios em tamanho natural, semi-nus, mas com babuchas e turbantes. A casa estava sempre com as cortinas corridas, numa ténue penumbra que conseguia deter a luz implacável do deserto. Nós cantos, Jean pôs turíbulos onde queimava ervas perfumadas e paus de incenso, que a princípio deram volta ao estômago de Blanca, mas a que ela logo se habituou. Contratou vários índios para o seu serviço, além de uma gorda monumental que fazia o trabalho da cozinha, a quem treinou para preparar os molhos muito apurados como ele gostava, e uma aia coxa e anal-fabeta para cuidar de Blanca. Vestiu a todos vistosos uniformes de opereta, mas não conseguiu pôrlhessapatos, porque estavam habituados a andar descalços e não os aguentavam. Blanca sentia-se incomodada naquela casa e desconfiava dos índios de rosto inalterável, que a serviam sem vontade e pareciam rir-se dela nas suas costas. Circulavam à sua volta como espíritos, deslizando sem ruído pelos quartos, quase sempre sem nada que fazer e aborrecidos. Não respondiam quando ela lhes falava, como se não compreen-dessem o castelhano, e entre si falavam num sussurro ou em dialectos do planalto. Sempre que Blanca comentava com o marido as estranhas coisas que via nos serviçais, ele dizia que eram costumes de índios e que o melhor era não fazer caso. O mesmo respondeu Clara por carta quando ela lhe contou que um dia viu um dos índios equilibrando-se nuns surpreendentes sapatos antigos de tacão torcido e laço de veludo, onde os largos pés calosos do homem se mantinham encolhidos. «O calor do deserto, a gravidez e o teu desejo inconfessado de viver como uma condessa, de acordo com a linhagem do teu marido, fazem-te ter visões, filhinha», escreveu Clara em tom de graça e acrescentou que o melhor remédio contra os sapatos Luís XV era um duche frio e um chá de macela. De outra vez Blanca encontrou no seu prato uma pequena lagartixa morta que esteve quase a levar à boca. Logo que se refez do susto e conseguiu falar, chamou aos gritos a cozinheira e apontou-lhe o prato com o dedo a tremer. A cozinheira aproximou-se bamboleando a imensidão de gordura e as tranças negras, e pegou no prato sem comentários. Mas, no momento de voltar-se, Blanca julgou surpreender um gesto de cumplicidade entre o marido e a índia. Nessa noite ficou acordada até muito tarde, pen-sando no que tinha visto, até que ao amanhecer chegou à conclusão de que tinha imaginado tudo. A mãe tinha razão: o calor e a gravidez estavam a transtorná-la. Os quartos mais afastados da casa foram destinados à mania de Jean pela fotografia. Instalou lá as máquinas. Pediu a Blanca que não entrasse nunca sem autorização naquilo que baptizou de «laboratório», porque, segundo explicou, podiam-se velar as chapas com a luz natural. Pôs fechadura na porta e andava com a chave pendurada de uma corrente de ouro, precaução completamente inútil, porque a mulher não tinha praticamente nenhum interesse pelo que a rodeava e muito menos pela arte da fotografia. À medida que engordava, Blanca ia adquirindo uma placidez oriental contra a qual esbarravam as tentativas do marido para incorporá-la na sociedade, levá-la a festas, passeá-la de carro ou entusiasmá-la pela decoração do seu novo lar. Pesada, sem graça, solitária e com um cansaço permanente, Blanca refugiou-se na tecelagem e no bordado. Passava grande parte do dia a dormir e nas horas de vigília fazia minúsculas peças de roupa para um enxoval corde- rosa, porque estava segura de que daria à luz uma menina. Tal como a mãe fizera com ela, desenvolveu um sistema de comunicação com a criança que estava a gerar, voltando-se para o seu interior num diálogo silencioso e ininterrupto. Nas cartas descrevia a vida retirada e melancólica e referia-se ao marido com cega simpatia, como um homem fino, discreto e considerado. Assim foi-se estabelecendo, sem ser proposta por si, a lenda de que Jean de Satigny era quase um príncipe, sem mencionar o facto de que aspirava cocaína pelo nariz e fumava ópio à tarde, porque tinha a certeza de que os pais não saberiam compreendê-lo. Dispunha de toda uma ala da mansão só para ela. Ali tinha assentado arraiais e ali amontoava tudo o que estava preparando para a chegada da filha. Jean dizia que nem em cinquenta anos conseguiria vestir toda aquela roupa e brincar com aquela quantidade de brinquedos, mas a única diversão de Blanca era sair para percorrer o reduzido comércio da cidade e comprar tudo o que via em cor-de-rosa para o bebé. O dia passava-o a bordar mantinhas, fazer sapatinhos de lã, decorar açafates, ordenar pilhas de camisas, de babeiros, de fraldas, passar a ferro os lençóis bordados. Depois da sesta escrevia à mãe e às vezes ao irmão Jaime e, quando o Sol se punha e refrescava um pouco, caminhava pelos arredores da casa para desentorpecer as pernas. à noite reunia-se com o marido na grande sala de jantar onde os. negros de loiça, postos nos seus cantos, iluminavam o jantar com luz de prostíbulo. Sentavamse um em cada extremo da mesa posta com toalha grande, cristais e baixela completa e ornamentada com flores artificiais, porque naquela região inóspita não as havia naturais. Servia-os sempre o mesmo índio impassível e silencioso, que mantinha na boca girando permanentemente a bola verde de folhas de coca com que se sustentava. Não era um serviçal vulgar e não cumpria nenhuma função específica dentro da organização doméstica. Nem servir à mesa era o seu forte, porque não dominava nem as travessas nem os talheres e acabava por servir-lhes a comida de qualquer maneira. Blanca teve de dizer-lhe certa ocasião que por favor não agarrasse as batatas com a mão para as pôr no prato. Mas Jean de Satigny estimavao por alguma razão e treinava-o para ser o seu ajudante de laboratório. - Se não pode falar como um cristão, menos poderá tirar retratos - observou Blanca quando soube. Foi aquele índio que Blanca julgou ver enfeitado com sapatos Luís XV. Os primeiros meses da sua vida de casada passaram-se tranquilos e aborrecidos. A tendência natural de Blanca para o isolamento e a solidão acentuou-se. Negou-se à vida social e Jean de Satigny acabou por ir sozinho aos numerosos convites que recebiam. Depois, quando chegava a casa, comentava para Blanca o pedantismo daquelas famílias antigas e velhas em que as senhoras andavam com acompanhante e os cavalheiros usavam escapulários. Blanca pôde fazer a vida ociosa para a qual tinha vocação, enquanto o marido se dedicava àqueles pequenos prazeres que só o dinheiro pode pagar e àqueles a que tinha renunciado por tão longo tempo. Sala todas as noites para jogar no casino e a mulher calculou que devia perder grandes somas de dinheiro, porque no fim do mês havia invariavelmente uma fila de credores à porta. Jean tinha uma ideia muito peculiar sobre a economia doméstica. Comprou um automóvel do último modelo, com assentos forrados de pele de leopardo e buzinas douradas, digno de um príncipe árabe, o maior e o mais espaventoso que alguma vez se vira por aqueles lados. Estabeleceu uma rede de contactos misteriosos que lhe permitiam comprar antiguidades, especialmente porcelana francesa de estilo barroco, pela qual tinha um grande fraco. Também meteu no pais caixotes de bebidas finas que passavam pela alfândega sem problemas. Os seus contrabandos entravam em casa pela porta de serviço e saíam intactos pela porta principal rumo a outros sítios, onde Jean os consumia em pandegas secretas ou os vendia por um preço exorbitante. Em casa não recebiam visitas e em poucas semanas as senhoras da localidade deixaram de convidar Blanca. Tinha corrido o rumor de que era orgulhosa, altiva e doente, o que aumentou a simpatia geral pelo conde francês que granjeou fama de marido paciente e sofredor. Blanca dava-se bem com o marido. As únicas ocasiões em que discutiam era quando ela tentava averiguar as finanças familiares. Não conseguia compreender que Jean se desse ao luxo de comprar porcelanas e passear naquele veículo tigrado, se não tinha dinheiro suficiente para pagar a conta do chinês do armazém nem os salários dos numerosos serviçais. Jean negava-se a falar do assunto, com o pretexto de que isso eram responsabilidades propriamente masculinas e que ela não tinha necessidade de encher a cabecinha de pardal com problemas que não tinha capacidade para compreender. Blanca supôs que a conta de Jean de Satigny com Esteban Trueba tinha fundos ilimitados e, ante a impossibilidade de chegar a um acordo com ele, acabou por se desinteressar desse problema. Vegetava como uma flor de outro clima, dentro daquela casa encravada nos areais, rodeada de índios insólitos que pareciam existir noutra dimensão, surpreendendo amiúde pequenos pormenores que a induziam a duvidar do seu próprio juízo. A realidade parecia-lhe indefinida como se aquele sol implacável que apagava as cores também tivesse deformado as coisas que a rodeavam e tivesse convertido os seres humanos em sombras silenciosas. No torpor daqueles meses, Blanca protegida pela criança que crescia dentro de si, esqueceu a grandeza da sua desgraça. Deixou de pensar em Pedro Tercero Garcia com a oprimida urgência com que o fazia antes e refu-giou-se em recordações doces e distantes que podia evocar a todo o momento. A sua sensualidade estava adormecida e, nas raras ocasiões em que meditava sobre o seu destino infeliz, tinha prazer em se imaginar a si mesma flutuando numa nebulosa, sem tristezas e alegrias, alheada das coisas brutais da vida, isolada com a sua filha por única companheira. Chegou a pensar que tinha perdido para sempre a capacidade de amar e que o ardor da sua carne se apagara definitivamente. Passava intermináveis horas contemplando a paisa-gem pálida que se estendia diante da janela. A casa ficava no limite da cidade, rodeada por algumas árvores raquíticas que resistiam ao ataque implacável do deserto. Para o lado norte, o vento destruía toda a espécie de vegetação e podia ver-se a imensa planície de dunas e cerros longínquos tremendo na rever-beração da luz. De dia, o corpo vergava-se-lhe com o sufocar daquele sol de chumbo e de noite tremia de frio entre os lençóis da cama, defendendo-se das geadas com sacos de água quente e xailes de lã. Olhava o céu despido e límpido procurando o vestígio de uma nuvem com a esperança de que alguma vez caísse uma gota de chuva que viesse aliviar a aspereza opressiva daquele vale lunar. Os meses decorriam imutáveis sem mais diversão do que as cartas da mãe, em que lhe contava a campanha política do pai, as loucuras de Nicolau, as extravagancias de Jaime, que vivia como um padre, mas andava com os olhos enamorados. Clara sugeriu-lhe numa das cartas que, para ter as mãos ocupadas, devia voltar a fazer presépios. Ela tentou. Encomendou a argila especial que estava acostumada a usar em Las Tres Marias, montou a oficina na parte posterior da cozinha e pôs dois índios a construir um forno para cozer as figuras de barro. Mas Jean de Satigny ria-se do seu afã artístico, dizendo que se era para manter as mãos ocupadas melhor seria tricotar botinhas e aprender a fazer pastelinhos folhados. Ela terminou por abandonar o trabalho, não tanto pelos sarcasmos do marido, mas porque se lhe tornou impossível competir com a olaria antiga dos índios. Jean tinha organizado o seu negócio com a mesma tenacidade que antes empregara no assunto das chinchilas, mas com mais êxito. A não ser um padre alemão que havia trinta anos percorria a região para desenterrar o passado dos Incas, ninguém mais se preocupava com aquelas relíquias por as considerarem sem valor comercial. O governo proibia o tráfego de antiguidades indígenas e tinha dado uma concessão geral ao padre, que estava autorizado a requisitar peças e levá-las para o museu. Passou dois dias com o alemão, que, feliz por encontrar depois de tantos anos uma pessoa interessada no seu trabalho, não teve reticências em revelar os seus vastos conhecimentos. Assim soube a forma de determinar quanto tempo tinham estado enterradas, aprendeu a diferençar as épocas dos estilos, descobriu o modo de localizar os cemitérios no deserto por meio de sinais invisíveis aos olhos civilizados e chegou finalmente à conclusão de que, se aquelas bilhas não tinham o esplendor dourado dos túmulos egípcios, tinham pelo menos valor histórico. Logo que obteve toda a informação de que necessitava, organizou grupos de índios para desenterrar tudo o que tivesse escapado ao zelo arqueológico do padre. Os magníficos guacos (Objectos cerâmicos procedentes dos antigos túmulos ameríndios. (N. T.)), verdes pela pátina do tempo, começaram a chegar a casa disfarçados em embrulhos de índios e alforges de lamas, enchendo rapidamente os lugares secretos a eles destinados. Blanca via-os amontoarem-se nos quartos e ficava maravilhada pelas suas formas. Seguravaos nas mãos, acariciando-os como que hipnotizada e quando os embalava em palha e papel para os enviar para destinos longínquos e desconhecidos sentia-se angustiada. Aquela olaria parecia-lhe demasiado formosa. Sentia que os monstros dos seus presépios não podiam estar debaixo do mesmo tecto com os guacos e assim, mais por essa do que por outra razão, abandonou a oficina. O negócio das gredas indígenas era secreto porque eram património histórico da nação. Trabalhavam para Jean de Satigny vários grupos de índios que tinham chegado ali deslizando clandestinamente pelas intrincadas passagens da fronteira. Não tinham documentos que os acreditassem como seres humanos, eram silenciosos, rudes e impenetráveis. Todas as vezes que Blanca perguntava de onde saiam aqueles seres que apareciam subitamente no pátio, respondiam-lhe que eram primos do que servia à mesa, e com efeito eram parecidos uns com os outros. Não demoravam muito tempo em casa. A maior parte do tempo estavam no deserto, sem mais bagagem que uma pá para escavar a areia e uma bola de coca na boca para se manterem vivos. Por vezes, tinham a sorte de encontrar ruínas semienterradas numa aldeia inca e em pouco tempo enchiam as caves da casa com o que roubavam nas escavações. A busca, transporte e comercialização dessa mercadoria fazia-se de maneira tão cautelosa que Blanca não teve a menor dúvida de que havia algo ilegal por detrás das actividades do marido. Jean explicou-lhe que o Governo era muito susceptível a respeito daqueles cântaros sujos e dos míseros colares de pedrinhas do deserto e que, para evitar os labirintos eternos da burocracia oficial, preferia negociá-los à sua maneira. Fazia-os sair do país em caixas seladas com etiquetas de maçãs, graças à cumplicidade interessada de alguns inspectores da alfândega. Tudo isso trazia Blanca em cuidados. Só a preocupava o assunto das múmias. Estava familiarizada com os mortos, porque tinha passado toda a vida em estreito contacto com eles através da mesa de pé-de-galo, com que a mãe os chamava. Estava acostumada a ver-lhe as silhuetas transparentes passeando pelos corredores da casa dos pais, fazendo barulho nos roupeiros e aparecendo nos sonhos para prognosticar desgraças ou os prémios da lotaria. Mas as múmias eram diferentes. Aqueles seres encolhidos, envoltos em trapos que se desfaziam em tiras empoeiradas, com as cabeças descarnadas e amarelas, as mãozinhas enrugadas, as pálpebras cosidas, os cabelos ralos na nuca, os eternos e terríveis sorrisos nos lábios, o cheiro a ranço e o ar triste e pobre dos cadáveres antigos revolviam-lhe a alma. Havia poucas. Raras vezes os índios chegavam com alguma. Lentos, impassíveis, apareciam em casa carregando uma grande vasilha de barro cozido selada. Jean abria-a cuidado-samente num quarto com todas as portas e janelas fechadas, para que o primeiro sopro do ar a não transformasse em cinza. No interior da vasilha aparecia a múmia como o caroço de um fruto estranho, encolhida na posição fetal, envolvida em farrapos, acompanhada pelos miseráveis tesouros de cola-res de dentes e bonecos de trapo. Eram muito mais apreciadas que os restantes objectos que tiravam dos túmulos, porque os coleccionadores priva-dos e alguns museus estrangeiros pagavam-nas muito bem. Blanca pergun-tava que tipo de pessoas podia coleccionar mortos e onde os poriam. Não podia imaginar uma múmia fazendo parte da decoração de um salão, mas Jean de Satigny dizia-lhe que dentro de uma urna de cristal podiam ser mais valiosas que qualquer obra de arte para um milionário europeu. As múmias eram difíceis de colocar no mercado, transportar e passar pela alfândega, de maneira que às vezes permaneciam várias semanas nas caves da casa, esperando a sua vez de fazerem a grande viagem ao estrangeiro. Blanca sonhava com elas, tinha alucinações, julgava vê-las andar pelos corredores na ponta dos pés, pequenas como gnomos disfarçados e furtivos. Fechava a porta do quarto, metia a cabeça debaixo dos lençóis e passava horas assim, a tremer, a rezar, a chamar a mãe com a força do pensamento. Contou-o a Clara nas cartas e esta respondeu-lhe que não devia ter medo dos mortos, mas dos vivos, porque apesar da má fama não constava que as múmias atacassem alguém; pelo contrário, eram de natureza bem tímida. Fortalecida pelos conselhos da mãe, Blanca resolveu espiá-las. Esperava-as em silêncio, vigian-do a porta entreaberta do quarto. Teve imediatamente a certeza de que passea-vam pela casa, arrastando os pezinhos infantis pelas alcatifas, cochichando como escolares, empurrando-se, passeando todas as noites em pequenos grupos de duas ou três, sempre em direcção do laboratório fotográfico de Jean de Satigny. Por vezes, julgava ouvir uns gemidos longínquos do outro mundo e sofria arrebatamentos incontroláveis de terror, chamava o marido aos gritos, mas ninguém acudia e ela tinha demasiado medo para atravessar toda a casa para o ir procurar. Com os primeiros raios de Sol, Blanca recuperava a lucidez e o domínio dos nervos atormentados, via que as angústias nocturnas eram fruto da imaginação febril que tinha herdado da mãe e tranquilizava-se até voltarem a cair as sombras da noite e começar de novo o seu ciclo de temor. Um dia não suportou mais a tensão que sentia à medida que se aproximava a noite e decidiu falar com Jean sobre as múmias. Estavam a jantar. Quando ela lhe contou os passeios, os sussurros e os gritos sufocados, Jean de Satigny ficou petrificado, com o garfo na mão e a boca aberta. O índio que ia a entrar na sala com a bandeja escorregou e o frango assado rebolou para debaixo da cadeira. Jean empregou todo o seu encanto, firmeza e sentido de lógica para a convencer de que os nervos lhe estavam a falhar e que nada disso ocorria na realidade, mas que era produto da sua fantasia sobressaltada. Blanca fingiu aceitar o raciocínio, mas pareceu-lhe muito suspeita a veemência do marido, que habitualmente não prestava atenção aos seus problemas, assim como a cara do serviçal, que por um momento perdeu a expressão imutável de ídolo e se lhe desorbitaram os olhos. Considerou intimamente que tinha chegado a hora de investigar a fundo o assunto das múmias transumantes. Nessa noite despediu-se cedo, depois de dizer ao marido que pensava tomar um tranquili-zante para dormir. Em vez disso, bebeu uma chávena grande de café negro e pôs-se junto à porta, disposta a passar muitas horas de vigília. Sentiu os primeiros passinhos por volta da meia-noite. Abriu a porta com muita cautela e assomou a cabeça, no preciso instante em que uma pequena figura agachada passava ao fundo do corredor. Desta vez tinha a certeza de não ter sonhado, mas devido ao peso do ventre, necessitou de quase um minuto para alcançar o corredor. A noite estava fria e soprava a brisa do deserto, que fazia ranger os velhos madeiramentos da casa e enfunava as cortinas como velas negras no alto mar. Desde pequena, quando escutava contos de cucos da Ama na cozinha, temia a escuridão, mas não se atreveu a acender as luzes para não espantar as pequenas múmias nos seus passeios vagabundos. Em breve rompeu o espesso silêncio da noite um grito rouco, amortecido, como se saísse do fundo de um ataúde, pelo menos foi o que Blanca pensou. Começava a ser vítima de uma fascinação mórbida pelas coisas do além-túmulo. Ficou imóvel, com o coração quase a saltarlhe da boca, mas um segundo gemido tirou-a da cisma dando-lhe forças para avançar até à porta do laboratório de Jean de Satigny. Quis abri-la, mas estava fechada à chave. Encostou a cara à porta e então sentiu claramente murmúrios, gritos sufocados e risos e perdeu todas as dúvidas de que alguma coisa se estava a passar com as múmias. Regressou ao quarto, confortada com a convicção de que não eram os nervos que lhe estavam a falhar, mas que algo de atroz acontecia no antro secreto do marido. No dia seguinte, Blanca esperou que Jean de Satigny terminasse o pequeno almoço com a frugalidade do costume, lesse o jornal até à última página e saísse para o passeio de todas as manhãs, sem que nada da plácida indiferença de futura mãe denunciasse a sua feroz determinação. Quando Jean saiu, ela chamou o índio dos saltos altos e pela primeira vez deulhe uma ordem: - Vai à cidade e compra-me papaias cristalizadas. O índio foi com o andar lento dos da sua raça e ela ficou em casa com os outros serviçais, de quem tinha muito menos medo que desse estranho indivíduo de tendências cortesãs. Pensou que dispunha de um par de horas antes dele regressar, de maneira que resolveu não se apressar e actuar com serenidade. Estava decidida a esclarecer o mistério das múmias furtivas. Dirigiu-se ao laboratório, certa de que, com a luz da manhã, as múmias não teriam vontade de fazer passeatas e desejando que a porta não estivesse fechada à chave, mas encontrou-a trancada como sempre. Experimentou todas as chaves que tinha, mas nenhuma serviu. Então pegou na maior faca da cozinha, meteu-a no gonzo da porta e começou a forçar até que a madeira seca da guarnição saltou em pedaços e pôde soltar assim a chapa e abrir a porta. O estrago que fez na porta não se podia disfarçar e compreendeu que, quando o marido o visse, teria de dar alguma explicação razoável, mas contentou-se com o argumento de que como dona de casa tinha o direito de saber o que se estava a passar debaixo do seu tecto. Apesar do seu sentido prático, que tinha resistido inalterável mais de vinte anos ao baile da mesa de pé-de-galo e a ouvir a mãe prever o imprevisível, ao passar a porta do laboratório Blanca estava a tremer. Procurou a tactear o interruptor e acendeu a luz. Encontrou-se num quarto espaçoso, com as paredes pintadas de preto e pesadas cortinas da mesma cor nas janelas, por onde não passava nem o mais pequeno raio de luz. O chão estava coberto de espessas alcatifas escuras e por todos os lados viu os focos, as lâmpadas e os quebra-luzes que tinha visto Jean usar pela primeira vez durante o funeral de Pedro Garcia, o velho, quando lhe deu para tirar retratos aos mortos e aos vivos, até que pôs toda a gente tão irritada que os camponeses acabaram por pisar as chapas no chão. Olhou à sua volta desconcertada: estava dentro de um cenário fantástico. Avançou pelo meio de baús abertos que tinham roupagens emplumadas de todas as épocas, perucas frisadas e chapéus pomposos, deteve-se em frente de um trapézio dourado suspenso do tecto, onde se pendurava um boneco desarticulado de proporções humanas, viu num canto um lama embalsamado, garrafas com licores amba-rinos e no chão peles de animais exóticos. Mas o que mais a surpreendeu foram as fotografias. Ao vê-las parou estupefacta. As paredes do estúdio de Jean de Satigny estavam cobertas de angustiantes cenas eróticas que revelavam a natureza oculta do marido. Blanca era de reacções lentas e por isso demorou um certo tempo a assimilar o que via, até porque não tinha experiência desses assuntos. Conhecia o prazer como uma última e preciosa etapa no longo caminho que tinha percorrido com Pedro Tercero, por onde tinha passado sem pressa, com bom humor no meio dos bosques, dos trigais, do rio, debaixo de um céu imenso, no silêncio do campo. Não teve as inquietações próprias da adolescência. Enquanto as suas companheiras no colégio liam às escondidas novelas proibidas com galãs imaginários apaixonados e virgens ansiosas por deixar de o ser, ela sentava-se à sombra das cerejeiras no pátio das freiras, fechava os olhos e evocava com total precisão a magnifica realidade de Pedro Tercero Garcia abraçando-a, percorrendo-a com carícias e arrancando-lhe do mais profundo os mesmos acordes que podia tirar da guitarra. Os seus instintos viram-se satisfeitos mal despertaram e não lhe tinha passado pela cabeça que a paixão pudesse ter outras formas Aquelas cenas desordenadas e atormentadas eram uma realidade mil vezes mais desconcertante que as múmias escandalosas que esperara encontrar. Reconheceu os rostos dos serviçais da casa. Ali estava toda a corte dos incas nua como Deus a pôs no mundo, ou mal coberta por roupagens de teatro. Viu o abismo insondável entre as coxas da cozinheira, o lama embalsamado montando a aia manca e o índio impávido que servia à mesa, em pêlo como um recém-nascido, sem barba e perna curta, com o rosto de pedra inalterável, e o desproporcionado pénis em erecção. Por um instante interminável, Blanca ficou suspensa na sua própria incerteza, até que o horror a venceu. Procurou pensar com lucidez. Compreen-deu o que Jean de Satigny tinha querido dizer na noite de casamento, quando lhe explicou que não se sentia inclinado para a vida de casado. Vislumbrou também o sinistro poder do índio, a zombaria disfarçada dos serviçais e sentiu-se prisioneira na antecâmara do inferno. Nesse momento, a menina mexeu-se dentro de si e ela estremeceu como se uma campainha de alerta tivesse tocado. - Minha filha! Tenho de a tirar daqui! - exclamou abraçando o ventre. Saiu a correr do laboratório, atravessou a casa como um raio é chegou à rua, onde o calor de chumbo e a luz impiedosa do meio-dia lhe devolveram o sentido da realidade. Compreendeu que não podia chegar muito longe a pé com a barriga de nove meses. Regressou ao quarto, pegou em todo o dinheiro que pôde encontrar, fez um atado com algumas roupas do sumptuoso enxoval que tinha preparado e dirigiu-se para a estação. Sentada na gare, num tosco banco de madeira, com o embrulho no regaço e os olhos espantados, Blanca esperou durante horas a chegada do comboio, rezando entredentes para que o conde, ao voltar a casa e ver os estragos na porta do laboratório, não a procurasse até dar com ela e a obrigasse a regressar ao reino maléfico dos incas, rezou para que o comboio se apressasse e cumprisse o horário uma vez na vida, para poder chegar a casa dos pais antes que a criança que lhe apertava as entranhas e lhe dava pontapés nas costelas anunciasse a sua vinda ao mundo, para ter forças para essa viagem de dois dias sem descanso e para que o desejo de viver fosse mais poderoso que aquela terrível desolação que começava a paralisála. Apertou os dentes e esperou. Capítulo IX A Menina Alba Alba nasceu parada, o que é sinal de boa sorte. A sua avó Clara procurou nas suas costas e encontrou uma mancha em forma de estrela que caracteriza os seres que nascem capacitados para encontrar a felicidade. «Não há que preocupar-se com esta menina. Terá boa sorte e será feliz. Além disso terá boa pele, porque isso herda-se e, na minha idade, não tenho rugas e nunca me rebentou uma borbulha», sentenciou Clara no segundo dia do nascimento. Por essas razões não se preocuparam em prepará-la para a vida, já que os astros se tinham combinado para a dotar de tantos dons. O seu signo era Leão. A sua avó estudou a sua carta astral e anotou o seu destino com tinta branca num álbum de papel negro, onde colou também algumas mechas esverdeadas do seu primeiro cabelo, as unhas que lhe cortou pouco tempo depois de nascer e vários retratos que permitem apreciá-la tal como era: um ser extraordinariamente pequeno, quase calvo, enrugado e pálido, sem outro indício de inteligência humana que os negros olhos reluzentes, com uma sábia expressão de velhice desde o berço. O seu verdadeiro pai era assim que os tinha. A mãe queria chamar-lhe Clara, mas a avó não era partidária de repetir os nomes da família, porque isso cria confusão nos cadernos de anotar a vida. Procuraram um nome num dicionário de sinónimos e descobriram o seu, que é o último de uma cadeia de palavras luminosas que querem dizer o mesmo. Anos depois Alba atormentava-se pensando que, quando ela tivesse uma filha, não haveria outra palavra com o mesmo significado que pudesse servir-lhe de nome, mas Blanca deu-lhe a ideia de usar línguas estrangeiras, o que oferece uma ampla variedade. Alba esteve quase a nascer num comboio de via reduzida, às três da tarde, no meio do deserto. Isso teria sido fatal para a sua carta astrológica. Por sorte, pôde aguentar-se dentro da mãe várias horas mais e conseguiu nascer na casa dos avós, no dia, na hora e no lugar exactos que mais convinham ao seu horóscopo. A mãe chegou à grande casa da esquina sem aviso prévio, desgrenhada, coberta de pó, olheirenta e dobrada em duas pela dor das contracções com que Alba puxava para sair, tocou à porta com desespero e, quando a abriram, passou como um furacão, sem parar, até à sala de costura, onde Clara estava a acabar o último vestido primoroso para a sua futura neta. Foi ali que Blanca se deixou cair, depois da sua longa viagem, sem conseguir dar nenhuma explicação, porque o ventre rebentou-se-lhe com um profundo suspiro e sentiu que toda a água do mundo lhe corria por entre as pernas num gorgolejo furioso. Aos gritos de Clara acudiram os criados e Jaime, que nesses dias estava sempre em casa à volta de Amanda. Levaram-na para o quarto de Clara e, enquanto a instalavam sobre a cama e lhe arrancavam a roupa do corpo aos puxões, Alba começou a mostrar a sua minúscula huma-nidade. O tio Jaime, que tinha assistido a alguns partos no hospital, ajudou-a a nascer, agarrando-a firmemente pelas nádegas com a mão direita, enquanto com os dedos da mão esquerda tacteava na escuridão à procura do pescoço da criança, para separar o cordão umbilical que a estrangulava. Entretanto Amanda, que chegou a correr, atraída pelo alvoroço, apertava o ventre de Blanca com todo o peso do seu corpo e Clara, inclinada sobre o rosto sofredor da filha, aproximava-lhe do nariz um coador de chá coberto com um trapo, onde se destilavam umas gotas de éter. Alba nasceu com rapidez. Jaime tirou-lhe o cordão do pescoço, segurou-a no ar de boca para baixo e com duas sonoras palmadas iniciou-a no sofrimento da vida e na mecânica da respi-ração, mas Amanda, que tinha lido sobre os costumes das tribos africanas e pregava o retorno à natureza, tirou-lhe a recém-nascida das mãos e colocou-a carinhosamente sobre o ventre morno da mãe, onde encontrou algum consolo na tristeza de nascer. Mãe e filha permaneceram descansando, nuas e abra-çadas, enquanto as outras pessoas limpavam os vestígios do parto e se atarefavam com os lençóis novos e as primeiras fraldas. Na emoção desses momentos, ninguém reparou na porta entreaberta do armário, onde o pequeno Miguel observava a cena paralisado de medo, gravando para sempre na sua memória a visão do gigantesco globo atravessado de veias e coroado por um umbigo saliente, donde saiu aquele ser arroxeado, enrolado numa horrenda tripa azul. Registaram Alba no Registo Civil e nos livros da paróquia, com o apelido francês do pai, mas ela não chegou a usá-lo porque o da mãe era mais fácil de soletrar. O avô, Esteban Trueba, nunca esteve de acordo com esse mau hábito, porque, tal como dizia sempre que lhe davam a oportunidade, tinha tido muito trabalho para que a menina tivesse um pai conhecido e um apelido respeitável e não tivesse de usar o da mãe, como se fosse filha da vergonha e do pecado. Também não permitiu que se duvidasse da legitima paternidade do conde e continuou esperando, contra toda a lógica, que mais tarde ou mais cedo se notasse a elegância de modos e o fino encanto do francês na silenciosa e desajeitada neta que deambulava pela sua casa. Clara também não mencionou o assunto até muito tempo depois, numa ocasião em que viu a menina brincando entre as destruídas estátuas do jardim e verificou que não se parecia com ninguém da família e muito menos com Jean de Satigny. - A quem terá ido buscar esses olhos de velho? - perguntou a avó. - Os olhos são do pai - respondeu Blanca distraidamente. - Pedro Tercero Garcia, suponho - disse Clara. - Isso mesmo - concordou Blanca. Foi a única vez que se falou na origem de Alba no seio da família, porque tal como Clara anotou, o assunto não tinha importância nenhuma, já que, de qualquer maneira, Jean de Satigny tinha desaparecido das suas vidas. Não tornaram a saber dele e ninguém se deu ao trabalho de averiguar o seu paradeiro, nem sequer para legalizar a situação de Blanca, a quem faltavam as liberdades de uma solteira e tinha todas as limitações de uma mulher casada, mas que não tinha marido. Alba nunca viu um retrato do conde, porque a sua mãe não deixou nenhum canto da casa por revistar, até os destruir todos, mesmo aqueles em que aparecia pelo seu braço no dia do casamento. Tinha tomado a decisão de esquecer o homem com quem se casou e fazer de conta que nunca existira. Não tornou a falar dele nem deu uma explicação para a sua fuga do domicílio conjugal. Clara, que tinha passado nove anos muda, conhecia as vantagens do silêncio, de modo que não fez perguntas à filha e colaborou na tarefa de apagar Jean de Satigny das suas recordações. Disse-ram a Alba que o pai tinha sido um nobre cavalheiro, inteligente e distinto, que tivera a desgraça de morrer de febre no deserto do Norte. Foi uma das poucas mentiras que teve de suportar na infância, porque em tudo o mais esteve em intimo contacto com as prosaicas verdades da existência. O tio Jaime encarregou-se de destruir o mito dos meninos que nascem nas couves ou são transportados de Paris pelas cegonhas e o tio Nicolau o dos Reis Magos, das fadas e dos papões. Alba tinha pesadelos em que via a morte do seu pai. Sonhava com um homem jovem, formoso e inteiramente vestido de branco, com sapatos de verniz da mesma cor e um chapéu de palhinha, caminhando pelo deserto debaixo de sol. No sonho, o caminhante abrandava o passo, vacilava, ia cada vez mais lento, tropeçava e cala, levantava-se e tornava a cair, abrasado pelo calor, pela febre e pela sede. Arrastava-se de joelhos um bocado sobre as ardentes areias, mas finalmente ficava estendido na imensidão daquelas dunas lívidas, com as aves de rapina voando em círculos sobre o seu corpo inerte. Tantas vezes o sonhou, que foi uma surpresa quando muitos anos depois teve de ir reconhecer o cadáver do que julgava seu pai, num depósito da Morgue Municipal. Nessa altura Alba era uma jovem valorosa, de temperamento audaz e acostumada às adversidades, por isso foi sozinha. Recebeu-a um praticante de avental branco, que à conduziu pelos longos corredores do antigo edifício até uma sala grande e fria, com paredes pintadas de cinzento. O homem do avental branco abriu a porta de uma gigantesca geleira e tirou um tabuleiro onde jazia um corpo inchado, velho e de cor azulada. Alba olhou-o com atenção sem encontrar nenhuma parecença com a imagem que tantas vezes tinha sonhado. Pareceu-lhe um tipo comum e corrente, com aspecto de empregado dos correios. Olhou-lhe as mãos: não eram as de um nobre cavalheiro, fino e inteligente, mas as de um homem que não tinha nada de interessante para contar. Mas os seus documentos eram. uma prova irrefutável de que aquele cadáver azul e triste era Jean de Satigny que não morrera de febre nas dunas douradas de um pesadelo de infância, mas simplesmente de uma apoplexia ao atravessar a rua na sua velhice. Mas tudo isso aconteceu muito depois. Nos tempos em que Clara estava viva, quando Alba era ainda uma criança, a grande casa da esquina era um mundo fechado, onde ela cresceu protegida até dos seus próprios pesadelos. Alba não tinha ainda duas semanas, quando Amanda se foi da grande casa da esquina. Tinha recuperado as forças e não teve dificuldade em adivi-nhar o desejo intenso no coração de Jaime. Pegou no irmãozinho pela mão e partiu como tinha chegado, sem ruído e sem promessas. Perderam-na de vista e o único que a podia procurar não o quis fazê-lo para não ferir o irmão. Só por casualidade Jaime voltou a vê-la muitos anos depois, mas então já era tarde para ambos. Depois que ela se foi, Jaime afogou o desespero nos estudos e no trabalho. Regressou aos seus antigos hábitos de anacoreta e não aparecia quase nunca pela casa. Não tornou a mencionar o nome da jovem e afastou-se para sempre do seu irmão. A presença da neta em casa amaciou o caracter de Esteban Trueba. A mudança foi imperceptível, mas Clara notou-o. Denunciavam-no pequenos sintomas: o brilho do seu olhar quando via a menina, os presentes caros que lhe trazia, a angústia se a ouvia chorar. Isso, no entanto, não o aproximou de Blanca. As relações com a filha nunca foram boas e desde o funesto casamento estavam tão deterioradas que só a cortesia obrigatória imposta por Clara lhes permitia viver debaixo do mesmo tecto. Nessa época a casa dos Trueba tinha quase todos os quartos ocupados e punha-se diariamente a mesa para a família, para os convidados e um lugar a mais para quem chegasse sem se anunciar. A porta principal estava sempre aberta, para que entrassem e saíssem os que se aproveitavam do parentesco e as visitas. Enquanto o senador Trueba procurava emendar os destinos do seu país, a mulher navegava habilmente nas agitadas águas da vida social e nas outras, surpreendentes, do seu caminho espiritual. A idade e a prática acen-tuaram a capacidade de Clara para adivinhar o oculto e mover as coisas à distância. Os estados de animo exaltados conduziam-na com facilidade a transes em que podia deslocar-se sentada na cadeira por todo o quarto, como se houvesse um motor escondido debaixo do assento. Nesses dias, um jovem artista famélico, acolhido na casa por misericórdia, pagou a hospedagem pintando o único retrato que existe de Clara. Muito tempo depois, o misérrimo artista tornouse um mestre e hoje o quadro está num museu de Londres, como tantas outras obras de arte que saíram do pais na época em que se teve de vender a mobília para alimentar os perseguidos. Na tela pode ver-se uma mulher madura, vestida de branco, com o cabelo prateado e uma doce expres-são de trapezista no rosto, descansando numa cadeira de balanço que está suspensa acima do nível do chão, flutuando entre cortinas de flores, uma jarra que voa de pernas para o ar e um gato gordo e negro que observa sentado como um grande senhor. Influência de Chagall, diz o catálogo do museu, mas não é assim. Corresponde exactamente à realidade que o artista viveu na casa de Clara. Essa foi a época em que as forças ocultas da natureza humana e o bom humor divino actuavam com impunidade, provocando um estado de emergência e sobressalto nas leis da física e da lógica. As comunicações de Clara com as almas vagabundas e com os extraterrestres davam-se através da telepatia, dos sonhos e de um pêndulo que ela usava para tal fim, sustendo-o no ar sobre um alfabeto que colocava ordenadamente na mesa. Os movimen-tos autónomos do pêndulo assinalavam as letras e formavam as mensagens em espanhol e esperanto, demonstrando assim que são os únicos idiomas que interessavam aos seres de outras dimensões, e não o inglês, como diria Clara nas suas cartas aos embaixadores das potências anglófonas, sem que eles alguma vez lhe respondessem, assim como também o não fizeram os suces-sivos ministros da Educação aos quais se dirigiu para lhes expor a sua teoria de que em vez de ensinar o inglês e francês nas escolas, línguas de marinhei-ros, negociantes e usurários, devia ser obrigatório as crianças estudarem esperanto. Alba passou a sua infância entre dietas vegetarianas, artes marciais japonesas, danças do Tibete e respiração ioga, relaxamento e concentração com o professor Hausser e muitas outras técnicas interessantes, sem contar as contribuições que deram à sua educação os dois tios e as três encantadoras senhoritas Mora. A sua avó Clara arranjava as coisas de maneira a manter a rodar aquele imenso carromato cheio de alucinados em que se tinha transformado o seu lar, embora ela própria não tivesse nenhuma habilidade doméstica e detestasse as quatro operações até ao ponto de se esquecer de somar, de modo que a organização da casa e as contas caíram de forma natural nas mãos de Blanca, que repartia o seu tempo entre os trabalhos de mordomo daquele reino em miniatura e a sua oficina de cerâmica no fundo do pátio, último refúgio para os seus pesares, onde dava aulas tanto para mongolóides como para meninas, e fabricava os seus incríveis presépios de monstros que, contra toda a lógica, se vendiam como pão saído do forno. Desde muito pequena, Alba teve a responsabilidade de pôr flores frescas nos jarrões. Abria as janelas para que entrassem a jorros a luz e o ar, mas as flores não conseguiam durar até à noite, porque o vozeirão de Esteban Trueba e as suas bengaladas tinham o poder de espantar a natureza. À sua passagem fugiam os animais domésticos e as plantas murchavam. Blanca criava uma árvore da borracha trazida do Brasil, uma mata esquálida e tímida cuja única graça era o seu preço: comprava-se às folhas. Quando ouviam chegar o avô, o que estava mais perto corria a pôr a seringueira a salvo no terraço, porque mal o velho entrava na sala, a planta baixava as folhas e começava a exumar pelo tronco um pranto esbranquiçado como lágrimas de leite. Alba não ia ao colégio porque a sua avó dizia que alguém tão favorecido pelos astros como ela não necessitava mais que saber ler e escrever e isso podia ela aprender em casa. Dedicou-se tanto a alfabetizá-la que aos cinco anos a menina lia o jornal à hora do pequeno almoço para comentar as notícias com o seu avô, aos seis tinha descoberto os livros mágicos dos baús encantados do lendário tio-bisavô Marcos e tinha entrado em cheio no mundo sem regresso da fantasia. Também não se preocuparam com a sua saúde, porque não acreditavam em benefícios de vitaminas e diziam que as vacinas eram para as galinhas. Além disso, a sua avó estudou-lhe as linhas da mão e disse que teria saúde de ferro e uma longa vida. O único cuidado frívolo que lhe prodigalizaram foi penteá-la com Bayrum para mitigar o tom verde-escuro que o seu cabelo tinha ao nascer, apesar do senador Trueba dizer que deviam deixá-lo assim, porque ela era a única que tinha herdado alguma coisa da bela Rosa, embora infelizmente só fosse a cor marítima do cabelo. Para lhe agradar Alba abandonou na adolescência os subterfúgios do Bayrum e enxaguava a cabeça com infusão de salsa, o que permitiu ao verde reaparecer em toda a sua frondosidade. O resto da sua pessoa era pequeno e anódino, ao contrário da maioria das mulheres da sua família que, quase sem excepção, foram esplêndidas. Nos poucos momentos de ócio que Blanca tinha para pensar em si mesma e na sua filha, lamentava que ela fosse uma menina solitária e silenciosa, sem companheiros da sua idade para brincar. Na realidade, Alba não se sentia sozinha, pelo contrário, por vezes teria sido muito feliz se tivesse conseguido iludir a clarividência da avó, a intuição da mãe e o alvoroço das pessoas extravagantes que constantemente apareciam, desapareciam e reapa-reciam na grande casa da esquina. Blanca também se preocupava por a filha não brincar com bonecas, mas Clara apoiava a neta com o argumento de que esses Alba passou a sua infância entre dietas vegetarianas, artes marciais japonesas, danças do Tibete e respiração ioga, relaxamento e concentração com o professor Hausser e muitas outras técnicas interessantes, sem contar as contribuições que deram à sua educação os dois tios e as três encantadoras senhoritas Mora. A sua avó Clara arranjava as coisas de maneira a manter a rodar aquele imenso carromato cheio de alucinados em que se tinha transfor-mado o seu lar, embora ela própria não tivesse nenhuma habilidade doméstica e detestasse as quatro operações até ao ponto de se esquecer de somar, de modo que a organização da casa e as contas caíram de forma natural nas mãos de Blanca, que repartia o seu tempo entre os trabalhos de mordomo daquele reino em miniatura e a sua oficina de cerâmica no fundo do pátio, último refúgio para os seus pesares, onde dava aulas tanto para mongolóides como para meninas, e fabricava os seus incríveis presépios de monstros que, contra toda a lógica, se vendiam como pão saído do forno. Desde muito pequena, Alba teve a responsabilidade de pôr flores frescas nos jarrões. Abria as janelas para que entrassem a jorros a luz e o ar, mas as flores não conseguiam durar até à noite, porque o vozeirão de Esteban Trueba e as suas bengaladas tinham o poder de espantar a natureza. À sua passagem fugiam os animais domésticos e as plantas murchavam. Blanca criava uma árvore da borracha trazida do Brasil, uma mata esquálida e tímida cuja única graça era o seu preço: comprava-se às folhas. Quando ouviam chegar o avô, o que estava mais perto corria a pôr a seringueira a salvo no terraço, porque mal o velho entrava na sala, a planta baixava as folhas e começava a exumar pelo tronco um pranto esbranquiçado como lágrimas de leite. Alba não ia ao colégio porque a sua avó dizia que alguém tão favorecido pelos astros como ela não necessitava mais que saber ler e escrever e isso podia ela aprender em casa. Dedicou-se tanto a alfabetizá-la que aos cinco anos a menina lia o jornal à hora do pequeno almoço para comentar as notícias com o seu avô, aos seis tinha descoberto os livros mágicos dos baús encantados do lendário tio-bisavô Marcos e tinha entrado em cheio no mundo sem regresso da fantasia. Também não se preocuparam com a sua saúde, porque não acreditavam em benefícios de vitaminas e diziam que as vacinas eram para as galinhas. Além disso, a sua avó estudou-lhe as linhas da mão e disse que teria saúde de ferro e uma longa vida. O único cuidado frívolo que lhe prodigalizaram foi penteá-la com Bayrum para mitigar o tom verde-escuro que o seu cabelo tinha ao nascer, apesar do senador Trueba dizer que deviam deixá-lo assim, porque ela era a única que tinha herdado alguma coisa da bela Rosa, embora infelizmente só fosse a cor marítima do cabelo. Para lhe agradar Alba abandonou na adolescência os subterfúgios do Bayrum e enxaguava a cabeça com infusão de salsa, o que permitiu ao verde reaparecer em toda a sua frondosidade. O resto da sua pessoa era pequeno e anódino, ao contrário da maioria das mulheres da sua família que, quase sem excepção, foram esplêndidas. Nos poucos momentos de ócio que Blanca tinha para pensar em si mesma e na sua filha, lamentava que ela fosse uma menina solitária e silen-ciosa, sem companheiros da sua idade para brincar. Na realidade, Alba não se sentia sozinha, pelo contrário, por vezes teria sido muito feliz se tivesse conseguido iludir a clarividência da avó, a intuição da mãe e o alvoroço das pessoas extravagantes que constantemente apareciam, desapareciam e reapa-reciam na grande casa da esquina. Blanca também se preocupava por a filha não brincar com bonecas, mas Clara apoiava a neta com o argumento de que esses pequenos cadáveres de loiça, com os seus olhinhos de abre e fecha e a sua perversa boca franzida, eram repugnantes. Ela própria fabricava uns seres informes com sobras da lã que empregava para tricotar para os pobres. Eram criaturas que não tinham nada de humano e que por isso mesmo era mais fácil embalálas e atirá-las depois para o lixo. A brincadeira predilecta da menina era a cave. Por causa das ratazanas, Esteban Trueba mandou pôr uma tranca na porta, mas Alba deslizava de cabeça por uma clarabóia e aterrava sem ruído naquele paraíso dos objectos esquecidos. Aquele lugar estava sempre na penumbra, preservado do uso do tempo, como uma pirâ-mide selada. Ali se amontoavam os móveis postos de lado, ferramentas de utilidade incompreensível, máquinas desconjuntadas, pedaços do Covadonga, o automóvel pré-histórico que os seus tios desarmaram para transformar em carro de corrida e acabou os seus dias convertido em sucata. Tudo servia a Alba para construir casinhas nos cantos. Havia baús e malas com roupa antiga, que usou para montar os seus solitários espectáculos teatrais e um capacho triste, negro, comido pelas traças, com cabeça de cão, que posto no chão parecia um lamentável animal de patas abertas. Era o último vestígio vergonhoso do fiel Barrabás. Uma noite de Natal, Clara deu à sua neta um fabuloso presente que chegou a substituir em certas ocasiões a fascinante atracção da cave: uma caixa com frascos de tinta, pincéis, um escadote e autorização para usar à vontade a maior parede do seu quarto. - Isto vai servir-lhe para se desoprimir - disse Clara quando viu Alba equilibrando-se no escadote para pintar junto ao tecto um comboio cheio de animais. Ao longo dos anos, Alba foi enchendo essa e as outras paredes do quarto com um imenso fresco, onde, no meio de uma flora venusiana e de uma fauna impossível de animais inventados, como os que Rosa bordava na sua toalha e Blanca cozia no seu forno de cerâmica, apareceram os desejos, as recordações, as tristezas e as alegrias da sua meninice. Os dois tios eram muito chegados a ela. Jaime era o seu preferido. Era um homenzarrão peludo que tinha de se barbear duas vezes por dia e, mesmo assim, parecia ter sempre uma barba de terça-feira, tinha sobrancelhas negras e malévolas que penteava para cima para fazer crer à sobrinha que era aparentado com o diabo, e o cabelo duro como uma escova, inutilmente bezuntado e sempre húmido. Entrava e sala com os seus livros debaixo do braço e uma maleta de soldador na mão. Tinha dito a Alba que trabalhava como ladrão de jóias e que dentro da horrível maleta levava gazuas e luvas. A menina fingia espantar-se, mas sabia que o seu tio era médico e que a maleta tinha os instrumentos do seu ofício. Tinham inventado jogos de ilusão para se entreterem nas tardes de chuva. - Traz o elefante! - ordenava o tio Jaime. Alba saía e regressava arrastando com uma corda invisível um paqui-derme imaginário. Podiam passar uma boa meia hora dando-lhe a comer ervas próprias da sua espécie, banhando-o com terra para lhe preservar a pele das inclemências do tempo e a dar-lhe brilho ao marfim dos dentes, enquanto discutiam acaloradamente sobre as vantagens e os inconvenientes de viver na selva. - Esta menina vai acabar doida varrida! - dizia o senador Trueba, quando via a pequena Alba sentada na varanda a ler os tratados de medicina que o tio Jaime lhe emprestava. Era a única pessoa de toda a casa que tinha chave para entrar no túnel de livros do tio e autorização para pegar neles e ler. Blanca achava que se devia dosear a leitura, porque havia coisas não apropriadas para a sua idade, mas o tio Jaime era da opinião que a gente só lê o que lhe interessa e se lhe interessa é porque já tem maturidade para o fazer. Tinha a mesma teoria para o banho e para a comida. Dizia que se a menina não tinha vontade de tomar banho era porque não necessitava e que deviam dar-lhe de comer o que ela quisesse às horas em que tivesse fome, porque o organismo conhece melhor que ninguém as suas próprias necessidades. Nesse ponto Blanca era inflexível e obrigava a filha a cumprir horários rígidos e normas de higiene. O resultado era que além das comidas e dos banhos normais Alba comia as guloseimas que o tio lhe oferecia e tomava banho de mangueira sempre que tinha calor, sem que nenhuma destas coisas alterasse a sua saudável natureza. Alba teria gostado que o tio Jaime casasse com a mãe, porque era mais seguro tê-lo como pai do que como tio, mas explicaram-lhe que dessas uniões incestuosas nascem meninos mongolóides. Ficou com a ideia de que os alunos de quinta-feira na oficina da sua mãe eram filhos dos seus tios. Nicolau também estava perto do coração da menina, mas tinha qualquer coisa de efémero, de volátil, apressado, sempre de passagem, como se saltasse de uma ideia para a outra, o que criava inquietação em Alba. Tinha cinco anos quando o tio Nicolau regressou da índia. Cansado de invocar Deus na mesa de pé-de-galo e no fumo do haxixe, decidiu ir procurá-lo a uma região menos rude que a sua terra natal. Passou dois meses a incomodar Clara, perseguindo- a pelos cantos e sussurrando-lhe ao ouvido quando estava a dormir, até que a convenceu a vender um anel de brilhantes para lhe pagar a passagem até à terra do Mahatma Gandhi. Dessa vez Esteban Trueba não se opôs, porque pensou que um passeio por aquela longínqua nação de famintos e vacas transumantes faria muito bem ao seu filho. - Se não morrer picado por uma cobra ou de alguma peste estrangeira, espero que venha transformado num homem, porque já estou farto das suas extravagâncias - disse-lhe o pai ao despedir-se no cais. Nicolau passou um ano como mendigo, percorrendo a pé os caminhos dos iogas, a pé pelo Himalaia, a pé por Katmandu, a pé pelo Ganges e a pé por Benares. No fim dessa peregrinação tinha a certeza da existência de Deus e tinha aprendido a atravessar alfinetes de chapéu nas faces e na pele do peito e a viver quase sem comer. Viram-no um dia qualquer, chegar a casa, sem prévio aviso com uma fralda de criança cobrindo-lhe as partes pudendas, a pele pegada aos ossos e esse ar extraviado que se nota nas pessoas que se alimentam só de verduras. Chegou acompanhado por dois carabineiros incrédulos, dispostos a levá-lo preso a não ser que pudesse demonstrar que era na realidade o filho do senador Trueba e por uma comitiva de crianças que o seguiam atirando-lhe lixo e fazendo pouco dele. Clara foi a única que não teve dificuldade em reconhecê-lo. O pai tranquilizou os carabineiros e deu ordem a Nicolau para tomar banho e vestir roupa de cristão se queria viver em sua casa, mas Nicolau olhou-o como se não o visse e não lhe respondeu. Tinha-se tornado vegetariano. Não provava carne nem ovos ou leite, a sua dieta era a de um coelho e pouco a pouco o seu rosto ansioso foi-se parecendo com o desse animal. Mastigava cada bocado dos seus escassos alimentos cinquenta vezes. As refeições converteram-se num ritual eterno no qual Alba ficava adormecida sobre o prato vazio e os criados sobre as bandejas na cozinha, enquanto ele ruminava cerimoniosamente, por isso Esteban Trueba deixou de ir a casa e fazia todas as suas refeições no Clube. Nicolau garantia que podia caminhar descalço sobre brasas, mas cada vez que se dispôs a demonstrá-lo, foi obrigado a desistir, porque Clara tinha um ataque de asma. Falava por parábolas asiáticas nem sempre compreensíveis. Os seus únicos interesses eram de ordem espiritual. O materialismo da vida doméstica enfadava-o tanto como os excessivos cuidados da sua mãe e da sua irmã, que insistiam em alimentá-lo e vesti-lo, e a perseguição fascinada de Alba, que o seguia por toda a casa como um cachorro, pedindo-lhe que a ensinasse a dominar a mente e a atravessar-se com alfinetes. Permaneceu assim mesmo quando o Inverno chegou com todo o seu rigor. Podia manter-se quase três minutos sem respirar e estava disposto a realizar essa façanha sempre que alguém lhe pedia, o que sucedia com frequência. Jaime dizia que era uma pena que o ar fosse grátis, porque tirou a prova de que Nicolau respirava metade do de uma pessoa normal, ainda que isso não parecesse afectá-lo de todo. Passou o Inverno a comer cenouras, sem se queixar do frio, fechado no quarto, enchendo páginas e páginas com a sua minúscula letra em tinta preta. Ao surgirem os primeiros sintomas da Primavera, anunciou que o seu livro estava pronto. Tinha mil e quinhentas páginas e conseguiu convencer o pai e o irmão que o financiassem, por conta dos lucros que se obtivessem com a venda. Depois de corrigidas e impressas, as mil e tantas laudas manuscritas reduziram-se a seiscentas páginas de um volumoso tratado sobre os noventa e nove nomes de Deus e a forma de chegar ao nirvana através de exercícios respiratórios. Não teve o êxito esperado e os caixotes com a edição acabaram os seus dias na cave, onde Alba os usava como tijolos para construir trinchei-ras, até que muitos anos depois serviram para alimentar uma fogueira ignóbil. Mal o livro saiu da tipografia, Nicolau segurou-o carinhosamente nas mãos, recuperou o seu perdido sorriso de hiena, vestiu roupa decente e anunciou que tinha chegado o momento de entregar a Verdade aos seus contemporâneos que permaneciam nas trevas da ignorância. Esteban Trueba recordou-lhe a sua proibição de usar a casa como academia e avisou-o de que não ia tolerar que metesse ideias pagas na cabeça de Alba e muito menos que lhe ensinasse truques de faquir. Nicolau foi pregar para o bar da universidade, onde conseguiu um impressionante número de adeptos para os seus cursos de exercícios espirituais e respiratórios. Nos momentos livres passeava de mato e ensinava a sobrinh4 a vencer a dor e outras fraquezas da carne. O seu método consistia em identificar as coisas que lhe causavam temor. A menina, que tinha certa inclinação para o macabro, concentrava-se de acordo com as instruções do tio e conseguia visualizar, como se a estivesse a viver, a morte da mãe. Via-a lívida, fria, com os seus formosos olhos mouros fechados, estendida num caixão. Ouvia o pranto da familia. Via a procissão de amigos que entravam em silêncio, deixavam os cartões de visita numa bandeja e saíam cabisbaixos. Sentia o cheiro das flores, o relincho dos cavalos empluma-dos da carreta funerária. Sofria a dor com os pés dentro dos seus sapatos novos de luto. Imaginava a sua solidão, o seu abandono, a sua orfandade. O tio ajudava-a a pensar em tudo isso sem chorar, relaxando-se sem opor resistência à dor, para que esta a atravessasse sem permanecer nela. Outras vezes Alba entalava um dedo na porta e aprendia a suportar a dor sem se queixar. Se conseguia passar toda a semana sem chorar, superando as provas a que Nicolau a obrigava, ganhava um prémio, que consistia quase sempre num passeio a toda a velocidade na moto, o que era uma experiência ines-quecível. Numa ocasião meteram-se no meio de uma manada de vacas que ia para o estábulo, num caminho dos arredores da cidade onde levou a sobrinha para lhe pagar o prémio. Ela recordaria sempre os corpos pesados dos animais, a sua lentidão, as caudas enlameadas golpeando-lhe a cara, o cheiro a bosta, os cornos que a roçavam e a sua própria sensação de vazio no estômago, de vertigem maravilhosa, de incrível excitação, mistura de apaixo-nada curiosidade e de terror, que só voltou a sentir em instantes fugazes da sua vida. Esteban Trueba, que tivera sempre dificuldade em exprimir a sua necessidade de afecto e que desde que se deterioraram as suas relações matri-moniais com Clara não tinha acesso à ternura, derramou em Alba os seus melhores sentimentos. Importava-se mais com a menina do que alguma vez se tinha importado com os seus próprios filhos. Todas as manhãs ela ia em pijama ao quarto do avô, entrava sem bater e metia-se na sua cama. Ele fingia despertar sobressaltado, ainda que na realidade estivesse à espera dela e resmungava que não o incomodasse, que fosse para o seu quarto e o deixasse dormir. Alba fazia-lhe cócegas até que, aparentemente vencido, ele a autori-zava a ir buscar o chocolate que escondia para ela. Alba conhecia todos os esconderijos e o seu avô usava-os sempre pela mesma ordem, mas para não o decepcionar procurava durante um bom bocado, e dava gritos de alegria ao encontrá-lo. Esteban nunca soube que a sua neta odiava o chocolate e que o comia por amor a ele. Com essas brincadeiras matinais, o Senador satisfazia a sua necessidade de contacto humano. O resto do dia estava ocupado no Congresso, no Clube, no golfe, nos negócios e nos conciliábulos políticos. Duas vezes por ano ia a Las Tres Marias com a neta por duas ou três semanas. Ambos regressavam bronzeados, mais gordos e felizes. Ali destilavam uma aguardente caseira que servia para beber, para acender o fogão, para desin-fectar feridas e matar baratas e a que eles chamavam pomposamente «vodka». No final da sua vida, quando os noventa anos o tinham transformado numa velha árvore retorcida e frágil, Esteban Trueba recordaria esses momentos com a neta como os melhores da sua existência, e ela também guardou sempre na memória a cumplicidade dessas viagens ao campo pela mão do seu avô, os passeios na garupa do seu cavalo, os entardeceres na imensidão dos prados, as longas noites junto à chaminé do salão contando histórias de aparições e desenhando. As relações do senador Trueba com o resto da sua família não fizeram mais que piorar com o tempo. Uma vez por semana, aos sábados, reuniam-se para jantar à volta da grande mesa de carvalho que tinha estado sempre na família e que antes pertencera aos del Valle, quer dizer, vinha da mais remota antiguidade e tinha servido para velar os mortos, para danças flamencas e outros ofícios impensados. Sentavam Alba entre a sua mãe e a sua avó, com um almofadão na cadeira para que o nariz chegasse à altura do prato. A menina observava os adultos com fascínio, a avó radiante, com os dentes postos para a ocasião, dirigindo mensagens cruzadas ao marido através dos filhos ou dos criados, Jaime fazendo alarde de má educação, arrotando depois de cada prato e escarafunchando os dentes com o dedo mínimo para chatear o pai, Nicolau com os olhos semicerrados mastigando cinquenta vezes cada bocado e Blanca falando de qualquer coisa para criar a ficção de um jantar normal. Trueba mantinha-se relativamente silencioso até que o mau carácter o atraiçoava e começava a discutir com o filho Jaime por causa dos pobres, dos votos, dos socialistas e dos princípios, ou a insultar Nicolau pelas iniciativas de se elevar em balão e praticar acupunctura com Alba, ou castigar Blanca com as suas réplicas brutais, a sua indiferença e as suas advertências inúteis de que tinha arruinado a sua vida e não herdaria dele nem um peso. A única a que não fazia frente era Clara, mas com ela quase não falava. Certas ocasiões Alba surpreendia os olhos do avô presos em Clara, ele ficava a olhar para ela pondo-se branco e doce até parecer um ancião desconhecido. Mas isso não ocorria com frequência, o normal era que os esposos se ignorassem. Algumas vezes o senador Trueba perdia o controlo e gritava tanto que se punha vermelho e tinham de atirar-lhe um jarro de água fria à cara, para que a cólera lhe passasse e recuperasse o ritmo da respiração. Nessa época, Blanca havia chegado ao apogeu da sua beleza. Tinha um ar mourisco, lânguido e planturoso, que convidava ao repouso e à confidência. Era alta e opulenta, de temperamento desamparado e piegas, que despertava nos homens o ancestral instinto de protecção. O pai não simpatizava com ela. Não lhe perdoava os amores com Pedro Tercero Garcia e procurava que ela não esquecesse que vivia da sua caridade. Trueba não podia perceber que a filha tivesse tantos apaixonados, porque Blanca não tinha nada da inquietante alegria e da jovialidade que o atraíam nas mulheres e além disso pensava que nenhum homem normal podia sentir desejos de casar com uma mulher doente, de estado civil incerto e que carregava com uma filha. Por seu lado, Blanca não parecia surpreendida com o assédio dos homens. Estava cons-ciente da sua beleza. No entanto, com os cavalheiros que a visitavam adoptava uma atitude contraditória, animando-os com o pestanejar dos seus olhos muçulmanos, mas mantendo-os a prudente distância. Logo que via que as intenções eram sérias, cortava a relação com uma negativa feroz. Alguns, de melhor posição económica, tentaram chegar até ao coração de Blanca sedu-zindo a filha. Enchiam Alba de presentes caros, de bonecas dotadas de mecanismos para caminhar, chorar, comer e executar outras habilidades humanas, empanturravam-na de pastéis de nata e levavam-na a passear ao Jardim Zoológico, onde a menina chorava com pena dos pobres animais prisioneiros, especialmente a foca, que acordava na sua alma funestos presságios. Essas visitas ao Jardim Zoológico pela mão de algum pretendente vaidoso e mãos largas, deixaram-lhe para o resto da vida o horror à clausura, aos muros, às grades e ao isolamento. Entre todos os apaixonados, o que avançou mais no caminho de conquistar Blanca foi o Rei das Panelas de Pressão. Apesar da sua imensa fortuna e do seu caracter tranquilo e reflectido, Esteban Trueba detestava-o porque era circuncidado, tinha nariz sefardim e o cabelo crespo. Com a sua atitude trocista e hostil, Trueba conseguiu espantar esse homem que tinha sobrevivido num campo de concentração, havia vencido a miséria e o exílio e triunfara na impiedosa luta comercial. Enquanto durou o romance, o Rei das Panelas de Pressão passava a buscar Blanca para levá-la a jantar aos lugares mais requintados, num automóvel minúsculo, apenas com dois assentos, com rodas de tractor e um ruído de turbina no motor, único na sua espécie, que provocava tumultos de curiosidade à sua passagem e remoques depreciativos da família Trueba. Sem dar-se por achada com o mal-estar do pai e com a bisbilhotice dos vizinhos, Blanca subia para o veiculo com a majestade de um primeiro-ministro, vestida com o seu único saia e casaco preto e a sua blusa de seda branca que usava em todas as ocasiões especiais. Alba despedia-se dela com um beijo e ficava parada à porta, com o subtil perfume de jasmim da sua mãe colado às narinas e um nó de ansiedade apertando-lhe o peito. Só os treinos do seu tio Nicolau lhe permitiam suportar as saídas da mãe sem desatar a chorar, porque temia que um dia o galã do momento conseguisse convencer Blanca a ir com ele e ela ficaria para sempre sem mãe. Tinha decidido havia muito tempo que não precisava de um pai, e muito menos de um padrasto, mas que se chegasse a faltar-lhe a mãe enfiaria a cabeça num balde com água até morrer afogada, tal como fazia a cozinheira com os gatinhos que a gata paria todos os quatro meses. Alba perdeu o medo de que sua mãe a abandonasse quando conheceu Pedro Tercero e a sua intuição a advertiu de que enquanto esse homem existisse não haveria ninguém capaz de ocupar o amor de Blanca. Foi num domingo de Verão. Blanca penteou-a com canudos, feitos com um ferro quente que lhe chamuscou as orelhas, pôs-lhe luvas brancas e sapatos de verniz preto e um chapéu de palha com cerejas artificiais. Ao vê-la, a avó Clara deu uma gargalhada, mas a mãe consolou-a com duas gotas do seu perfume que lhe pôs no pescoço. - Vais conhecer uma pessoa famosa - disse Blanca misteriosamente ao sair. Levou a menina ao Parque Japonês, onde lhe comprou chupa-chupas de açúcar queimado e um saquinho de milho. Sentaram-se num banco à sombra, de mãos dadas, rodeadas de pombas que debicavam o milho. Viu-o aproximar-se antes que a mãe lho indicasse. Trazia um fato-macaco, uma enorme barba negra que lhe chegava a meio do peito, o cabelo revolto, sandálias de franciscano sem meias e um largo, brilhante e maravilhoso sorriso que o colocou imediatamente na categoria dos seres que mereciam ser pintados no fresco gigantesco do seu quarto. O homem e a menina olharam-se e ambos se reconheceram nos olhos um do outro. - Este é Pedro Tercero, o cantor. Já o ouviste na rádio - disse-lhe a mãe. Alba estendeu-lhe a mão e ele apertou-lha com a esquerda. Então ela notou que lhe faltavam vários dedos da mão direita, mas ele explicou-lhe que apesar disso podia tocar guitarra, porque há sempre uma forma de se fazer o que se quer fazer. Passearam os três pelo Parque Japonês. A meio da tarde foram, numa das últimas tranvias que ainda existiam na cidade a comer peixe numa casa de fritos do mercado, e quando anoiteceu acompanhou-as até à rua da sua casa. Ao despedirem-se Blanca e Pedro Tercero beijaram-se na boca. Foi a primeira vez que Alba viu isso na vida, porque à sua volta não havia gente apaixonada. A partir desse dia, Blanca começou a sair sozinha ao fim-de-semana. Dizia que ia visitar umas primas afastadas. Esteban Trueba entrava em cólera e ameaçava-a de a expulsar de casa, mas Blanca mantinha-se inflexível na sua decisão. Deixava a filha com Clara e partia de autocarro com uma malinha de palhaço com flores pintadas. - Prometo-te que não me vou casar e que regresso amanhã à noite - dizia ao despedir-se da filha. Alba gostava de se sentar com a cozinheira à hora da sesta, a ouvir na rádio canções populares, especialmente as do homem que tinha conhecido no Parque Japonês. Um dia o senador Trueba entrou na copa e ao ouvir a voz da rádio atirou-se contra o aparelho dando-lhe bengaladas até o deixar convertido num monte de fios retorcidos e botões soltos, ante os olhos espantados da sua neta, que não podia compreender o súbito arrebatamento do avô. No dia seguinte, Clara comprou outro rádio para que Alba escutasse Pedro Tercero quando lhe apetecesse e o velho Trueba fingiu não saber de nada. Essa foi a época do Rei das Panelas de Pressão. Pedro Tercero soube da sua existência e teve um ataque de ciúmes injustificado, se compararmos o ascendente que ele tinha sobre Blanca com o tímido cerco do comerciante judeu. Como tantas outras vezes, suplicou a Blanca que abandonasse a casa dos Trueba, a tutela feroz do seu pai e a solidão da sua oficina cheia de mongolóides e de meninas ociosas e partisse com ele, de uma vez para sempre, para viver aquele amor desenfreado que tinham escondido desde a meninice. Mas Blanca não se decidia. Sabia que se fosse com Pedro Tercero ficaria excluída do seu circulo social e da posição que sempre tinha tido e apercebia-se que ela própria não tinha a menor oportunidade de ser bem aceite pelos amigos de Pedro Tercero ou de se adaptar à modesta existência numa povoação operária. Anos depois, quando Alba teve idade para analisar esse aspecto da vida da mãe, chegou à conclusão de que não foi com Pedro Tercero simplesmente porque não o amava o suficiente, já que em casa dos pais não tinha nada que ele não lhe pudesse dar. Blanca era uma mulher muito pobre, que só dispunha de algum dinheiro quando Clara lho dava ou quando vendia algum presépio. (Ganhava um salário miserável que gastava quase todo em remédios, porque a sua capacidade para sofrer doenças imagi-nárias não tinha diminuído com o trabalho e a necessidade, pelo contrário, não fazia senão aumentar de ano para ano. Procurava não pedir nada ao pai, para não lhe dar ocasião de a humilhar. De vez em quando, Clara e Jaime compravam-lhe roupa ou davam-lhe algum dinheiro para as suas necessida-des, mas o normal era não ter nem para um par de meias. A sua pobreza contrastava com os vestidos bordados e o calçado feito por medida com que o senador Trueba vestia a neta Alba. A sua vida era dura. Levantava-se às seis da manhã, no Inverno ou no Verão. A essa hora acendia o forno da oficina, vestida com um avental de oleado e socos de madeira, preparava as mesas de trabalho e amassava a argila para as aulas, com os braços mergulhados até aos cotovelos no barro áspero e frio. Por isso tinha sempre as unhas partidas e a pele gretada e com o tempo foramse- lhe deformando os dedos. A essa hora sentia-se inspirada e ninguém a interrompia, de modo que podia começar o dia fabricando os seus monstruosos animais para os presépios. Depois tinha de ocupar-se da casa, dos criados e das compras, até à hora em que começavam as aulas. Os alunos eram meninas de boas famílias que não tinham nada que fazer e haviam adoptado a moda do artesanato, que era mais elegante do que fazer malha para os pobres, como faziam as avós. A ideia de dar aulas para mongolóides foi obra do acaso. Um dia chegou a casa do senador Trueba uma velha amiga de Clara que trazia o neto com ela. Era um adolescente gordo e mole, com uma redonda cara de lua cheia e uma expressão de ternura imperturbável nos olhinhos orientais. Tinha quinze anos, mas Alba notou que era como um bebé. Clara pediu à neta que fosse brincar com o rapaz para o jardim e tivesse cuidado para que ele não se sujasse, não se afogasse na fonte, não comesse terra e não mexesse na braguilha. Alba aborreceu-se logo de o vigiar e não podendo comunicar com ele em nenhuma linguagem coerente, levou-o à oficina de cerâmica onde Blanca para o manter quieto, lhe pôs um avental que o protegia das manchas e da água e lhe meteu uma bola de argila nas mãos. O rapaz esteve entretido mais de três horas, sem se babar, sem se urinar e sem dar cabeçadas nas paredes, modelando umas toscas figuras de barro que depois levou de presente à avó. A senhora, que tinha chegado a esquecer que estava com ele, ficou encantada e assim nasceu a ideia de que a cerâmica era boa para os mongolóides. Blanca acabou dando aulas para um grupo de crianças que iam à oficina às quintas-feiras à tarde. Chegavam numa camioneta, acompanhadas por duas freiras de toucas engomadas que se sentavam no terraço do jardim a tomar chocolate com Clara e a discutir as virtudes do ponto de cruz e as hierarquias dos pecados, enquanto Blanca e a filha ensinavam as crianças a fazer lagartas, bolinhas, cães espalmados e vasos disformes. No fim do ano as freiras organizavam uma exposição e uma verbena e aquelas espantosas obras de arte vendiam-se por caridade. Blanca e Alba depressa viram que os meninos trabalhavam muito melhor quando se sentiam amados e que o afecto era a única maneira de comunicar com eles. Aprenderam a abraçá-los, a beijá-los e a fazer-lhes mimos, até que ambas acabaram por amá-los de verdade. Alba esperava toda a semana a chegada da camioneta com os deficientes e saltava de alegria quando eles corriam a abraçá-la. Mas as quintas-feiras eram esgotantes. Alba deitava-se arrasada, davam-lhe voltas na cabeça os doces rostos asiáticos das crianças da oficina e Blanca sofria invariavelmente uma enxaqueca. Depois das freiras se irem embora com o seu esvoaçar de trapos brancos e a sua leva de deficientes de mãos dada, Blanca abraçava furiosamente a sua filha, cobria-a de beijos e dizia-lhe que tinha de agradecer a Deus ela ser normal. Por isso, Alba cresceu com a ideia de que a normalidade era um dom divino. Discutiu isso com a sua avó. - Em quase todas as familias há um tonto ou um louco, filhinha – asse-gurou Clara enquanto trabalhava no seu tear, porque em todos esses anos não tinha aprendido a tecer sem olhar. - Por vezes não se vêem, porque os escon-dem como se fosse uma vergonha. Fechamnos nos quartos mais isolados, para que as visitas os não vejam! Mas na realidade não há de que ter vergonha, eles também são obra de Deus. - Mas na nossa família não há nenhum, avó - replicou Alba. - Não. Aqui a loucura distribuiu-se por todos e não sobrou nada para termos o nosso louco varrido. Assim eram as suas conversas com Clara. Por isso, para Alba a pessoa mais importante da casa e a presença mais forte da sua vida era a avó. Ela era o motor que punha em marcha e fazia funcionar aquele universo mágico que eram as traseiras da grande casa da esquina, onde se passaram os seus primeiros sete anos em completa liberdade. Habituou-se às extravagancias da avó. Não se surpreendia ao vê-la deslocar-se em estado de transe por todo o salão, sentada na sua poltrona com as pernas encolhidas, arrastada por uma força invisível. Seguia-a em todas as suas peregrinações aos hospitais e casas de beneficência onde procurava seguir a pista da sua caterva de necessitados e até aprendeu a fazer com lã de quatro fios e agulhas grossas os coletes que o tio Jaime oferecia depois de os usar uma vez, só para ver o sorriso sem dentes da avó quando ela ficava vesga perseguindo as malhas. Amiúde Clara usava-a para levar mensagens a Esteban, por isso a alcunharam de Pomba Mensa-geira. A menina participava nas sessões das sextas-feiras, onde a mesa de pé-de-galo dava saltos em plena luz do dia, sem que interferisse nenhum truque, energia conhecida ou alavanca, e nos serões literários onde alternava com os mestres consagrados e com um número variável de tímidos artistas desconhe-cidos que Clara amparava. Nessa época na grande casa da esquina comeram e beberam muitos hóspedes. Revezaram-se para viver lá, ou pelo menos para assistir às reuniões espirituais, às cavaqueiras culturais e às tertúlias sociais, quase toda a gente importante do pais, inclusive o Poeta, que anos mais tarde foi considerado o maior do século e traduzido em todos os idiomas conhecidos da terra, em cujos joelhos Alba se sentou muitas vezes, sem suspeitar que um dia caminharia atrás do seu féretro com um ramo de cravos sangrentos na mão, entre duas filas de metralhadoras. Clara era ainda jovem, mas à sua neta parecia-lhe muito velha porque não tinha dentes. Ainda não tinha rugas e quando estava com a boca fechada dava a ilusão de extrema juventude devido à expressão inocente do rosto. Vestia-se com túnicas de linho cru que pareciam batas de louco e no Inverno punha meias altas de lã e luvas sem dedos. Achava graça aos assuntos menos engraçados e, em contrapartida, era incapaz de compreender uma piada, ria-se a destempo, quando ninguém mais o fazia, e podia ficar muito triste se via outra pessoa ser ridícula. Algumas vezes sofria ataques de asma. Então cha-mava a neta com um sininho de prata que trazia sempre consigo e Alba acudia a correr, abraçava-a e cuidava dela com sussurros de consolo, pois ambas sabiam, por experiência, que a única coisa que tira a asma é o abraço prolon-gado de um ser querido. Tinha olhos risonhos cor de avelã e o cabelo encanecido e brilhante apanhado num carrapito desordenado do qual se escapa-vam mechas rebeldes, as mãos finas e brancas, de unhas amendoadas e longos dedos sem anéis, que só serviam para fazer gestos de ternura, distri-buir as cartas de adivinhar e pôr a dentadura postiça à hora de comer. Alba passava o dia perseguindo a avó, metendo-se-lhe entre as saias, provocando-a para que contasse histórias ou movesse os jarrões com a força do seu pensamento. Nela encontrava um refúgio seguro quando a assediavam os pesadelos ou quando os treinos do tio Nicolau se tornavam insuportáveis. Clara ensinou-lhe a cuidar dos pássaros e a falar a cada um no seu idioma, a conhecer os signos premonitórios da natureza e a fazer cachecóis com ponto corrido para os pobres. Alba sabia que a avó era a alma da grande casa da esquina. Os outros souberam-no mais tarde, quando Clara morreu e a casa perdeu as flores, os amigos que iam e vinham e os espíritos brincalhões e entrou em pleno na época da desordem. Alba tinha seis anos quando viu Esteban Garcia pela primeira vez, mas nunca o esqueceu. Provavelmente tinha-o visto antes, em Las Tres Marias, em qualquer das suas viagens de Verão com o avô, quando a levava a percorrer a propriedade e com um gesto amplo lhe mostrava tudo o que a vista alcançava, desde as alamedas até ao vulcão, incluindo as casinhas de tijolo, e dizia-lhe que aprendesse a amar a terra porque um dia seria sua. - Os meus filhos são todos uns mandriões. Se herdassem Las Tres Marias, em menos de um ano isto voltaria a ser a ruína que era nos tempos do meu pai - dizia à neta. - Tudo isto é teu, avô? - Tudo, desde a estrada pan-americana até à ponta daqueles cerros. Estás a vê-los? - Porquê, avô? - Como porquê! Porque sou o dono, claro! - Sim, mas porque és o dono? - Porque era da minha família. - Porquê? - Porque a compraram aos índios. - E os caseiros, que também viveram sempre aqui, por que não são eles os donos? - O teu tio Jaime anda a meter-te ideias bolchevistas na cabeça! - gritava o senador Trueba congestionado pela fúria. - Sabes o que se passava se aqui não houvesse um patrão? - Não. - Ia tudo para o caralho! Não haveria ninguém que desse as ordens, que vendesse as colheitas, que se responsabilizasse pelas coisas, entendes? Tam-bém não haveria ninguém que cuidasse das pessoas. Se alguém adoecesse, por exemplo, ou se morresse e deixasse uma viúva e muitos filhos morreriam de fome. Cada um teria um pedacinho miserável de terreno e não conseguiria nem para comer em sua casa. Necessita-se de alguém que pense por eles, que tome as decisões, que os ajude. Eu tenho sido o melhor patrão da região, Alba. Tenho mau caracter, mas sou justo. Os meus caseiros vivem melhor do que muita gente na cidade, não lhes falta nada e, mesmo que o ano seja de seca, de inundações ou de terramoto, eu preocupome por que aqui ninguém passe miséria. Tu terás de fazer isso quando tiveres a idade necessária, por isso trago-te sempre a Las Tres Marias para que conheças cada pedra e cada animal e, sobretudo, cada pessoa pelo seu nome e apelido. Compreendeste-me? Mas na realidade ela tinha pouco contacto com os camponeses e estava muito longe de conhecer cada um pelo seu nome e apelido. Por isso não reconheceu o jovem moreno, acanhado e rude, com pequenos olhos cruéis de roedor, que uma tarde tocou à porta da grande casa da esquina na capital. Vestia um fato escuro muito estreito para o seu tamanho. Nos joelhos, nos cotovelos e nos fundilhos, o tecido estava gasto, reduzido a uma película brilhante. Disse que queria falar com o senador Trueba e apresentou-se como o filho de um dos seus caseiros de Las Tres Marias. Embora em tempos normais a gente da sua condição entrasse pela porta de serviço e aguardasse na copa, conduziram-no à biblioteca, porque nesse dia havia uma festa na casa à qual assistiriam os membros mais importantes do Partido Conservador. A cozinha estava invadida por um exército de cozinheiros e ajudantes que Trueba tinha trazido do Clube, e havia tal confusão e pressa, que um visitante só teria vindo incomodar. Era uma tarde de Inverno e a biblioteca estava escura e silenciosa, iluminada somente pelo fogo que crepitava na chaminé. Cheirava a polimento para madeira e a couro. - Espera aqui, mas não toques em nada. O Senador já vem - disse a criada com maus modos, deixando-o sozinho. O jovem percorreu a sala com os olhos, sem se atrever a fazer nenhum movimento, ruminando o rancor de que tudo aquilo poderia ter sido seu, se tivesse nascido de origem legítima, como tantas vezes lhe explicou a sua avó, Pancha Garcia, antes de morrer de lipéria convulsa e deixá-lo definitivamente órfão na multidão de irmãos e primos onde ele não era ninguém. Só a sua avó o distinguiu no montão e não lhe permitiu esquecer que era diferente dos outros, porque pelas suas veias corria o sangue do patrão. Olhou a biblioteca sentindo-se sufocado. Todas as paredes estavam cobertas por estantes de acaju encerado, excepto em ambos os lados da chaminé, onde havia duas vitrinas abarrotadas de marfins e pedras duras do Oriente. A divisão tinha o dobro do pé-direito, único capricho do arquitecto que o seu avô consentiu. Um balcão, a que se tinha acesso por uma escada de caracol de ferro forjado, fazia as vezes de segundo piso das estantes. Os melhores quadros da casa estavam ali, porque Esteban Trueba tinha transformado essa divisão no seu santuário no seu escritório, no seu refúgio, e gostava de ter à sua volta os objectos que mais apreciava. As prateleiras estavam cheias de livros e de objectos de arte desde o chão até ao tecto. Havia uma pesada secretária de estilo espanhol, grandes poltronas de couro negro de costas para a janela, quatro tapetes persas cobrindo o chão de carvalho e vários candeeiros de leitura com quebra-luz de pergaminho distribuídos estrategicamente, de modo que onde alguém se sentasse havia boa luz para ler. Nesse lugar preferia o Senador celebrar os seus conciliábulos, tecer as suas intrigas, forjar os seus negócios e, na horas mais solitárias, fechar-se para desafogar a raiva, o desejo frustrado ou a tristeza. Mas nada disso podia saber o camponês que estava de pé sobre o tapete, sem saber onde pôr as mãos, suando de timidez. Aquela biblioteca senhorial, pesada e esmagadora, correspondia exactamente à imagem que tinha do patrão. Estremeceu de ódio e medo. Nunca tinha estado num lugar assim, e até esse momento pensava que o mais luxuoso que podia existir em todo o universo era o cinema de San Lucas, onde uma vez a professora da escola levara toda a classe para ver um filme do Tarzan. Tinha-lhe custado muito tomar a sua decisão, convencer a sua família e fazer a grande viagem até à capital, só e sem dinheiro, para falar com o patrão. Não podia esperar até ao Verão para lhe dizer o que lhe entupia o peito. De súbito sentiu-se observado. Voltou-se e viu-se em frente de uma menina com tranças e meias bordadas que o olhava da porta. - Como te chamas? - perguntou a menina. - Esteban Garcia - disse ele. - Eu chamo-me Alba Trueba. Não esqueças o meu nome. - Não esquecerei. Olharam-se bastante tempo, até que ela entrou confiante e se atreveu a aproximar-se. Explicou-lhe que teria de esperar porque o seu avô ainda não tinha regressado do Congresso e contou-lhe que na cozinha ia um pé de vento por causa da festa, prometendo-lhe que mais tarde conseguiria uns doces para lhe trazer. Esteban Garcia sentiu-se melhor. Sentou-se numa das poltro-nas de couro negro e pouco a pouco atraiu a si a menina e sentou-a nos seus joelhos. Alba cheirava a Bayrum, uma fragrância fresca e doce que se mistu-rava com o seu odor natural de rapariguinha transpirada. O rapaz chegou o nariz ao seu pescoço e aspirou aquele perfume desconhecido de limpeza e bem-estar e, sem saber porquê, encheram-se-lhe os olhos de lágrimas. Sentiu que odiava aquela criança tanto como odiava o velho Trueba. Ela encarnava o que nunca teria, o que ele nunca seria. Desejava fazer-lhe mal, destrui-la, mas também queria continuar cheirando-a, escutando-lhe a vozita de bebé e tendo ao alcance da mão a sua pele suave. Acariciou-lhe os joelhos, mesmo acima do bordo das peúgas, eram mornos e tinham covinhas. Alba continuou a falar sobre a cozinheira que metia nozes pelo cu dos frangos para o jantar da noite. Ele fechou os olhos, estava a tremer Com uma mão rodeou o pescoço da menina, sentiu as suas tranças fazendo-lhe cócegas no pulso e apertou suavemente, consciente de que era tão pequena, que com um esforço mínimo podia estrangulá-la. Desejou fazê-lo, quis senti-la remexendo-se e esperne-ando nos seus joelhos, agitando-se à procura de ar. Desejou ouvi-la gemer e morrer nos seus braços, desejou despi-la e sentiu-se violentamente excitado. Com a outra mão avançou debaixo do vestido engomado, percorreu as pernas infantis, encontrou a renda das anáguas de baptista e as bombachas de lã com elás-tico. Ofegava. Num canto do seu cérebro restava-lhe suficiente cordura para dar-se conta de que estava parado à beira de um abismo. A menina tinha deixado de falar e estava quieta, olhandoo com os seus grandes olhos negros. Esteban Garcia pegou na mão da criança e apoiou-a sobre o seu sexo endurecido. - Sabes o que é isto? - perguntou roucamente. - É o teu pénis - respondeu ela, que o tinha visto nas ilustrações dos livros de medicina do tio Jaime e no tio Nicolau, quando passeava nu fazendo os seus exercícios asiáticos. Ele sobressaltou-se. Pôs-se bruscamente de pé e ela caiu sobre o tapete. Estava surpreendido e assustado, tremiam-lhe as mãos, sentia os joelhos fracos e as orelhas quentes. Nesse momento ouviu os passos do senador Trueba no corredor e um instante depois, antes que conseguisse recuperar a respiração, o velho entrou na biblioteca. - Isto está tão escuro porquê? - rugiu com o seu vozeirão de terramoto. Trueba acendeu as luzes e não reconheceu o jovem que o olhava com olhos desorbitados. Estendeu os braços à sua neta e ela refugiou-se neles por um breve instante, como um cão batido, mas em seguida desprendeu-se e saiu fechando a porta. - Quem és tu, homem? - pespegou a quem era também seu neto. - Esteban Garcia. Não se recorda de mim, patrão? – conseguiu balbuciar o outro. Então Trueba reconheceu o menino velhaco que tinha denunciado Pedro Tercero anos atrás e tinha apanhado do chão os dedos amputados. Compreendeu que não lhe seria fácil despedi-lo sem o ouvir, apesar de ter por norma que os assuntos dos caseiros quem os devia resolver era o administrador de Las Tres Marias. - O que é que tu queres? - perguntou-lhe. Esteban Garcia vacilou, não conseguia encontrar as palavras que tinha preparado tão minuciosamente durante meses, antes de se atrever a tocar à porta da casa do patrão. - Fala depressa, não tenho muito tempo - disse Trueba. A gaguejar Garcia conseguiu expor a sua petição: tinha conseguido terminar o liceu em San Lucas e queria uma recomendação para a Escola de Carabineiros e uma bolsa do Estado para pagar os seus estudos. - Porque não ficas no campo, como o teu pai e o teu avô? - perguntou-lhe o patrão. - Desculpe, senhor, mas quero ser carabineiro – pediu Esteban Garcia. Trueba recordou que ainda lhe devia a recompensa por denunciar Pedro Tercero Garcia e achou que aquela era uma boa ocasião para saldar a divida e de caminho, ter um servidor na policia. «Nunca se sabe, de repente posso precisar dele», pensou. Sentou-se à sua pesada secretária, pegou numa folha de papel com timbre do Senado, redigiu a recomendação nos termos habituais e deu-a ao jovem que aguardava de pé. - Toma, filho. Alegro-me por teres escolhido essa profissão. Se o que queres é andar armado, entre ser delinquente ou ser polícia, é melhor ser polícia, porque tens impunidade. Vou telefonar ao comandante Hurtado, é meu amigo, para te darem a bolsa. Se necessitares de alguma coisa, avisa-me. - Muito obrigado, patrão. - Não me agradeças, filho. Gosto de ajudar a minha gente. Despediu-o com uma palmadinha amistosa no ombro. - Porque te puseram Esteban? - perguntou-lhe à porta. - Por sua causa, senhor - respondeu o outro corando. Trueba não pensou mais no assunto. Os caseiros usavam frequente-mente os nomes dos patrões para baptizar os filhos, como sinal de respeito. Clara morreu no mesmo dia em que Alba fez sete anos. O primeiro anún-cio da sua morte foi perceptível só para ela. Então começou a fazer secretas disposições para partir. Com grande discrição distribuiu a sua roupa pelas criadas e pela chusma de protegidos que sempre tivera, deixando para si o indispensável. Ordenou os seus papéis, retirando dos cantos perdidos os seus cadernos de anotar a vida. Atou-os com fitas de cores, separando-os por acontecimentos e não por ordem cronológica, porque a única coisa de que se tinha esquecido de pôr neles eram as datas e na pressa da sua última hora concluiu que não podia perder tempo a averiguá-las. Ao procurar os cadernos foram aparecendo as jóias em caixas de sapatos, em sacos de meias e no fundo dos armários onde as havia posto desde a época em que o marido lhas tinha dado pensando que com isso podia alcançar o seu amor. Colocou-as numa velha meia de lã, fechou-a com um alfinete de ama e entregou-as a Blanca. - Guarda isso, filhinha. Um dia podem servir-te para alguma coisa mais do que mascarares-te - disse. Blanca comentou o caso com Jaime e este começou a vigiá-la. Notou que a mãe fazia uma vida aparentemente normal, mas quase não comia. Alimen-tava-se de leite e algumas colheradas de mel. Também não dormia muito, pas-sava a noite a escrever ou vagueando pela casa. Parecia ir-se desprendendo do mundo, cada vez mais ligeira, mais transparente, mais alada. - Um dia destes vai começar voar - disse Jaime, preocupado. Pouco tempo depois começou a asfixiar. Sentia no peito o galope de um cavalo enlouquecido e a ansiedade de um ginete que vai a toda a pressa contra o vento. Disse que era a asma, mas Alba notou que já não a chamava com o sininho de prata para que a curasse com abraços prolongados. Uma manhã viu a avó abrir as gaiolas dos pássaros com inexplicável alegria. Clara escreveu pequenos cartões para os entes queridos, que eram muitos, e pô-los em segredo numa caixa debaixo da cama. Na manhã seguinte não se levantou e quando chegou a criada com o pequeno almoço não a deixou abrir as cortinas. Tinha começado a despedir-se também da luz, para entrar lentamente nas sombras. Avisado, Jaime foi vê-la e não se foi embora até ela se deixar examinar. Não lhe encontrou nada de anormal no aspecto, mas soube sem lugar para dúvidas, que ia morrer. Saiu do quarto com um sorriso rasgado e hipócrita, mas uma vez fora da vista da sua mãe teve de apoiar-se à parede, porque as pernas fraquejaram-lhe. Não disse nada a ninguém em casa. Chamou um especialista que tinha sido seu professor na Faculdade de Medicina e que nesse mesmo dia se apresentou em casa dos Trueba. Depois de ver Clara, confirmou o diagnóstico de Jaime. Reuniram a família no salão e sem muitos preâmbulos anunciaram-lhe que não viveria mais de duas ou três semanas e que a única coisa que se podia fazer era acompanhá-la, para morrer contente. - Creio que decidiu morrer, e a ciência não tem remédio nenhum contra esse mal - disse Jaime. Esteban Trueba agarrou o filho pelo pescoço e esteve quase a estrangulá-lo, correu com o especialista aos empurrões e depois partiu às bengaladas os candeeiros e as porcelanas do salão. Finalmente caiu de joelhos no chão gemendo como uma criança. Alba entrou nesse momento e viu o seu avô colo-cado à sua altura, aproximou-se, ficou a olhá-lo surpreendida e, quando viu as suas lágrimas, abraçou-o. Pelo pranto do velho a menina soube da noticia. A única pessoa na casa que não perdeu a calma foi ela, devido aos treinos para suportar a dor e o facto da avó lhe ter explicado tantas vezes as circunstancias e os afãs da morte. - Tal como no momento de vir ao mundo, ao morrer temos medo do desconhecido. Mas o medo é algo interior que não tem nada que ver com a realidade. Morrer é como nascer: uma mudança apenas - tinha dito Clara. Acrescentou que se ela podia comunicar sem dificuldade com as almas do Mais-Além, estava totalmente segura de que depois poderia fazê-lo com as almas do Mais-Aqui, de modo que em vez de choramingar quando esse momento chegasse, queria que estivesse tranquila, porque no seu caso a morte não seria uma separação, mas uma forma de estar mais unidas. Alba compreendeu-o perfeitamente. Pouco depois Clara pareceu entrar num doce sono e só o visível esforço para introduzir ar nos seus pulmões, dava sinal de que ainda estava viva. No entanto, a asfixia não parecia angustiá-la, já que não estava a lotar pela vida. A neta permaneceu a seu lado todo o tempo. Tiveram de improvisar-lhe uma cama no chão, porque se negou a sair do quarto e, quando quiseram tirá-la à força, teve o seu primeira chilique. Insistia em que a sua avó dava conta de tudo e que precisava dela. Assim era, com efeito. Pouco antes do fim, Clara recuperou a consciência e pôde falar com tranquilidade. A primeira coisa que notou foi a mão de Alba entre as suas. - Vou morrer, não é verdade, filhinha? - perguntou. - Sim, avó, mas não importa, porque eu estou contigo - respondeu a menina. - Está bem. Tira uma caixa com cartões que está debaixo da cama e distribui-os, porque não vou conseguir despedir-me de todos. Clara fechou os olhos, deu um suspiro satisfeito e foi para o outro mundo sem olhar para trás. À sua volta estava toda a família, Jaime e Blanca, desfi-gurados pelas noites de vigília, Nicolau murmurando orações em sânscrito, Esteban com a boca e os punhos apertados, infinitamente furioso e desolado, e a pequena Alba, que era a única que se mantinha serena. Também estavam os criados, as irmãs Mora, um par de artistas paupérrimos que tinha sobrevi-vido na casa nos últimos meses e um sacerdote que chegou chamado pela cozinheira, mas não teve nada que fazer, porque Trueba não permitiu que incomodasse a moribunda com confissões de última hora nem aspersões de água benta. Jaime inclinou-se sobre o corpo à procura de algum imperceptível bater do seu coração, mas não o encontrou. - A mamã já partiu - disse num soluço. Capítulo X A Época da Decadência Não posso falar disso. Mas tentarei escrevê-lo. Passaram vinte anos e durante muito tempo senti uma dor constante. Julguei que nunca poderia consolar-me, mas agora, perto dos noventa anos, compreendo o que ela quis dizer quando nos assegurou que não teria dificuldade em comunicar connos-co, porque tinha muita prática nesses assuntos. Antes eu andava como perdido, procurando-a por todo o lado. Todas as noites, ao deitar-me, imagi-nava-a comigo, tal como acontecia quando tinha todos os dentes e me amava. Apagava a luz, fechava os olhos e no silêncio do meu quarto procurava imaginá-la, chamava-a acordado e dizem que também a chamava quando dormia. Na noite em que morreu fechei-me com ela. Depois de tantos anos sem nos falarmos, partilhámos aquelas últimas horas repousando no veleiro de água mansa da seda azul, como ela gostava de chamar à sua cama, e aproveitei para lhe dizer tudo o que não pudera dizer-lhe antes, tudo o que eu tinha calado desde a noite terrível em que lhe bati. Tirei-lhe a camisa de dormir e revistei-a com cuidado procurando algum sinal de doença que justificasse a sua morte e, não o encontrando, soube que simplesmente tinha cumprido a sua missão nesta terra e voara para outra dimensão onde o seu espirito, livre por fim dos lastros materiais, se sentiria mais a seu gosto. Não havia nenhuma deformidade nem nada terrível na sua morte. Examinei-a demoradamente, porque fazia muitos anos que não tinha ocasião de a observar à vontade e nesse tempo a minha mulher tinha mudado, como nos acontece a todos com o avançar da idade. Pareceu-me tão formosa como sempre. Tinha adelgaçado e julguei que tinha crescido, que estava mais alta, mas logo compreendi que era um efeito ilusório, resultado do meu próprio mirrar. Antes sentia-me como um gigante a seu lado, mas ao deitar-me com ela na cama, notei que éramos quase do mesmo tamanho. Tinha a sua mata de cabelo encaracolado e rebelde que me encantava quando casámos suavizada por mechas brancas que lhe iluminavam o rosto adormecido. Estava muito pálida, com sombras nos olhos e notei pela primeira vez que tinha pequenas rugas muito finas na comissura dos lábios e na testa. Parecia uma menina. Estava fria, mas era a mulher doce de sempre e pude falar-lhe tranquilamente, acariciá-la, dormir um pouco quando o sono venceu a dor, sem que o facto irremediável da sua morte alterasse o nosso encontro. Reconciliámo-nos por fim. Ao amanhecer, comecei a vesti-la para que todos a vissem bem apresentada. Pus-lhe uma túnica branca que havia no seu armário e estranhei que tivesse tão pouca roupa, porque eu tinha a ideia de que era uma mulher elegante. Encontrei umas peúgas de lã e calcei-lhas para que os pés não se lhe gelassem, porque era muito friorenta. Penteei-a com a ideia de armar o carrapito que usava, mas ao passar a escova alvoroçaram-se-lhe os caracóis, formando uma moldura à volta da sua cara e pareceu-me que assim ficava mais bonita. Procurei as suas jóias, para lhe pôr alguma, mas não as pude encontrar, assim, conformei-me em pôr-lhe apenas no dedo a aliança que eu trazia desde o noivado, para substituir a que ela tirou quando rompeu comigo. Compus as almofadas, endireitei a cama, pus-lhe algumas gotas de água-de-colónia no pescoço e abri a janela, para entrar a manhã. Logo que tudo ficou pronto, abri a porta e permiti que os meus filhos e a minha neta se despedissem dela. Encontraram Clara sorridente, limpa e formosa como sempre estivera. Eu tinha diminuído dez centímetros, os pés nadavamme nos sapatos, tinha o cabelo definitivamente branco, mas já não chorava. - Podem enterrá-la - disse. - Aproveitem para enterrar também a cabeça da minha sogra, que anda perdida na cave desde há algum tempo – acrescen-tei e sai a arrastar os pés para não me caírem os sapatos. Foi assim que a minha neta soube que o que estava na chapeleira de pele de porco e que lhe servia para brincar às missas negras e ornamentar as suas casinhas da cave, era a cabeça da sua bisavó Nívea, que permaneceu por sepultar durante muito tempo, primeiro para evitar o escândalo e depois porque, na desordem desta casa, nos esquecemos dela. Fizemo-lo com o maior sigilo, para não dar motivo para falatórios. Depois que os empregados da funerária acabaram de colocar Clara no seu ataúde e de arranjar o salão como câmara ardente, com cortinados e crepes negros, círios gotejantes e um altar improvisado sobre o piano, Jaime e Nicolau meteram no caixão a cabeça da avó, que já não era mais que um brinquedo amarelo com expressão espavorida, para que descansasse junto da sua filha preferida. O funeral de Clara foi um acontecimento. Nem eu mesmo pude explicar-me donde saiu tanta gente dorida com a morte da minha mulher. Não sabia que conhecia toda a gente. Desfilaram procissões intermináveis estreitando-me a mão, uma fila de automóveis fechou todos os acessos ao cemitério e chegaram umas insólitas delegações de indigentes, estudantes, sindicatos operários, freiras, crianças mongolóides, boémios e espirituados. Quase todos os caseiros de Las Tres Marias viajaram, alguns pela primeira vez nas suas vidas, em camiões e de comboio para se despedirem dela. Na multidão vi Pedro Segundo Garcia, a quem não tinha voltado a ver durante muitos anos. Aproximei-me para o cumprimentar mas não respondeu ao meu gesto. Aproximou-se cabisbaixo do túmulo aberto e atirou sobre o ataúde de Clara um ramo meio murcho de flores silvestres com aspecto de ter sido roubado num jardim alheio. Estava a chorar. Alba, pela minha mão, assistiu aos serviços fúnebres. Viu descer o ataúde à terra, no lugar provisório que lhe tínhamos conseguido, ouviu os intermináveis discursos exaltando as únicas virtudes que a avó não teve e, quando regressou a casa, correu a fechar-se na cave à espera que o espírito de Clara comunicasse com ela, tal como ela lhe tinha prometido. Ali a encontrei sorrindo adormecida, sobre os restos roídos de Barrabás. Nessa noite não pude dormir. Na minha mente confundiam-se os dois amores da minha vida, Rosa, a do cabelo verde, e Clara a clarividente, as duas irmãs que tanto amei. Ao amanhecer decidi que, se não as tinha tido em vida, pelo menos acompanhar-me-iam na morte, de modo que tirei da secretária algumas folhas de papel e pus-me a desenhar o mais digno e luxuoso mausoléu, de mármore italiano cor de salmão, com estátuas do mesmo material que representariam Rosa e Clara com asas de anjos, porque anjos tinham sido e continuariam sendo. Ali, entre as duas, serei enterrado um dia. Queria morrer o mais rapidamente possível, porque a vida sem a minha mulher não tinha sentido para mim. Não sabia que ainda tinha muito que fazer neste mundo. Felizmente Clara regressou, ou talvez nunca se tivesse ido de todo. Por vezes penso que a velhice me transtornou o cérebro e que não se pode passar por alto o facto de que a enterrei há vinte anos. Suspeito que ando a ter visões, como um velho lunático. Mas essas dúvidas dissipam-se quando a vejo passar a meu lado e oiço o seu riso no terraço, sei que me acompanha, que me perdoou todas as minhas violências do passado e que está mais perto de mim do que nunca esteve antes. Continua viva e está comigo, Clara claríssima... A morte de Clara transtornou por completo a vida da grande casa da esquina. Os tempos mudaram. Com ela foram-se os espíritos, os hóspedes e aquela luminosa alegria que estava sempre presente porque ela não acreditava que o mundo fosse um Vale de Lágrimas, mas, pelo contrário, um gracejo de Deus, e por isso seria uma estupidez tomá-lo a sério, se Ele próprio o não fazia. Alba notou a deterioração desde os primeiros dias. Viu-a avançar lenta, mas inexorável. Percebeu-o antes que ninguém pelas flores que murcharam nos jarrões, impregnando o ar com um cheiro adocicado e nauseabundo, onde permaneceram até secarem, desfolhando-se, caindo e ficando apenas uns talos tristes que ninguém retirou senão muito tempo depois. Alba não voltou a cortar flores para adornar a casa. Depois morreram as plantas porque nin-guém se lembrou de as regar nem de lhes falar, como fazia Clara. Os gatos foram-se silenciosamente, tal como tinham chegado ou nascido nos buracos do telhado. Esteban Trueba vestiu-se de preto e passou, numa noite, da sua vigorosa maturidade de varão saudável, a uma incipiente velhice encolhida e gaguejante, que não teve contudo a virtude de lhe acalmar a ira. Vestiu luto rigoroso pelo resto da vida, mesmo quando isso passou de moda e ninguém o punha, excepto os pobres, que atavam uma fita preta na manga em sinal de nojo. Pendurou ao pescoço uma bolsinha de camurça suspensa de um fio de ouro, debaixo da camisa, junto ao peito. Eram os dentes postiços da mulher, que para ele significavam ao mesmo tempo boa sorte e expiação. Todos na família sentiram que sem Clara se perdia a razão de estar juntos: não tinham quase nada a dizer entre si. Trueba sentiu que a única coisa que o retinha em casa era a presença da neta. No decurso dos anos seguintes a casa converteu-se numa ruína. Nin-guém tornou a ocupar-se do jardim, para o regar ou limpar, até que pareceu tragado pelo esquecimento, pelos pássaros ou pelas ervas daninhas. Aquele parque geométrico que Trueba mandou plantar, seguindo os desenhos dos jardins dos palácios franceses, e a zona encantada onde reinava Clara na desordem e na abundância, a luxúria das flores e o caos dos filodendros, foram secando, apodrecendo, enchendo-se de ervas. As estátuas cegas e as fontes cantantes taparamse de folhas secas, excremento de pássaro e musgo. As pérgolas, partidas e sujas, serviram de refúgio aos bichos e de lixeira aos vizinhos. O parque converteu-se num espesso matagal de aldeia abandonada, onde mal se podia andar sem abrir passagem à machetada. O caramanchão que antes podavam com pretensões barrocas, acabou destroçado, caído, ata-cado por caracóis e pestes vegetais. Nos salões, a pouco e pouco, as cortinas desprenderam-se dos seus ganchos e penderam como combinações de velha, empoeiradas e destingidas. Os móveis pisados por Alba que brincava às casinhas e às trincheiras com eles, transformaram-se em cadáveres com as molas ao ar e o grande gobelim do salão perdeu a sua pulquérrima impavidez de cena bucólica de Versalhes e foi usado como alvo das flechas de Nicolau e da sobrinha. O fogão cobriu-se de gordura e de fuligem, encheu-se de boiões vazios e pilhas de jornais e deixou de produzir as grandes travessas de leite creme e os guisados perfumados de outros tempos. Os habitantes da casa resignaram-se a comer quase todos os dias grãos e arroz com leite, porque ninguém se atrevia a fazer frente ao desfile de cozinheiras aborrecidas, agastadas e despóticas que reinaram por turnos entre as caçarolas enegrecidas pelo mau uso. Os tremores de terra, o bater das portas e a bengala de Esteban Trueba abriram fendas nas paredes e estilhaçaram as portas, as persianas saltaram dos gonzos e ninguém tomou a iniciativa de as reparar. Começaram a gotejar as torneiras, a filtrar as canalizações, as telhas a partirem-se, a aparecer manchas esverdeadas de humidade nas paredes. Só o quarto forrado de seda azul de Clara permaneceu intacto. No seu interior ficaram os móveis de madeira ruiva, dois vestidos de algodão branco, a gaiola vazia do canário, a cesta com malhas inacabadas, os baralhos mágicos, a mesa de pé-de-galo, e as resmas de cadernos onde anotou a vida durante cinquenta anos e que, muito tempo depois, na solidão da casa vazia e no silêncio dos mortos e dos desaparecidos, eu ordenei e li com recolhimento para reconstituir esta história. Jaime e Nicolau perderam o pouco interesse que tinham pela família e não tiveram compaixão pelo pai, que na sua solidão procurou inutilmente construir com eles uma amizade que enchesse o vazio deixado por uma vida de más relações. Viviam na casa porque não tinham um lugar mais conveniente onde comer e dormir, mas passavam como sombras indiferentes, sem se deterem para ver a decadência. Jaime exercia o seu ofício com vocação de apóstolo, com a mesma tenacidade com que o pai tirou Las Tres Marias do abandono e juntou uma fortuna, ele esgotava as suas forças trabalhando no hospital e atendendo os pobres gratuitamente nas horas livres. - Você é um falhado sem remédio, filho - suspirava Trueba. - Não tem sentido da realidade. Ainda não viu como é o mundo. Aposta em valores utópicos que não existem. - Ajudar o próximo é um valor que existe, pai. - Não. A caridade, tal como o seu socialismo, é uma invenção dos fracos para vergar e utilizar os fortes. - Não acredito na sua teoria dos fortes e dos fracos - respondia Jaime. - Sempre assim foi na natureza. Vivemos numa selva. - Sim, porque os que fazem as leis são os que pensam como o senhor, mas não será sempre assim. - Sê-lo-á, porque somos triunfadores. Sabemos mover-nos no mundo e exercer o poder. Tenha juízo, filho, assente cabeça e monte uma clinica privada, eu ajudo-o. Mas corte com os seus extravios socialistas! – pregava Esteban Trueba sem nenhum resultado. Depois que Amanda desaparecera da sua vida, Nicolau pareceu estabi-lizar-se emocionalmente. As suas experiências na índia deixaram-lhe o gosto pelas empresas espirituais. Abandonou as fantásticas aventuras comerciais que lhe atormentaram a imaginação nos primeiros anos da sua juventude, assim como o seu desejo de possuir todas as mulheres que lhe passavam pela frente, e voltou-lhe a ânsia que sempre tivera de encontrar Deus por caminhos pouco convencionais. O mesmo encanto que antes empregara para conseguir alunas para suas danças flamencas, serviu-lhe para reunir à sua volta um número crescente de adeptos. Eram na sua maioria jovens enfastiados da boa vida, que deambulavam como ele em busca de um filosofia que lhos permitisse existir sem participar nas agitações terrenas. Formou-se um grupo disposto a receber os milenários conhecimentos que Nicolau tinha adquirido no Oriente. A seu tempo, reuniram-se nos quartos traseiros da parte abandonada da casa, onde Alba lhes distribuía nozes e lhes servia infusões de ervas, enquanto eles meditavam com as pernas cruzadas. Quando Esteban Trueba descobriu que nas suas costas circulavam os coetâneos e os epónimos respirando pelo umbigo e tirando a roupa ao menor convite, perdeu a paciência e correu com eles ameaçando-os com a bengala e com a polícia. Então Nicolau compreendeu que sem dinheiro não poderia continuar a ensinar a Verdade, de maneira que começou a cobrar modestos honorários pelos seus ensinamentos. Com isso pôde alugar uma casa onde montou a sua academia de iluminados. Devido às exigências legais e à necessidade de ter um nome jurídico, chamou-lhe Instituto de União com o Nada, IDUN. Mas o pai não estava disposto a deixá-lo em paz, porque os seguidores de Nicolau começaram a aparecer fotografados nos jornais, com a cabeça tosquiada, com tangas indecentes e expressão beatífica, metendo a ridículo o nome dos Trueba. Mal se soube que o profeta do IDUN era filho do senador Trueba, a oposição explorou o assunto para o ridicularizar, usando a procura espiritual do filho como uma arma política contra o pai. Trueba suportou tudo estoicamente até ao dia em que encontrou a neta Alba com a cabeça rapada como uma bola de bilhar repetindo incansavelmente a palavra sagrada Om. Teve um dos seus mais terríveis ataques de raiva. Apareceu de surpresa no Instituto do filho, com dois rufias contratados para tal fim, que partiram à cacetada o escasso mobiliário e estiveram quase a fazer o mesmo com os pacíficos coetâneos, até que o velho compreendendo que uma vez mais se tinha excedido, mandou-lhes parar com a destruição e que o esperassem lá fora. A sós com o filho, conseguiu dominar o tremor furibundo que se tinha apoderado dele, para lhe resmungar com voz contida que já estava farto das suas palhaçadas. - Não quero voltar a vê-lo até crescer o cabelo à minha neta! - acrescentou antes de sair atirando com a porta. No dia seguinte Nicolau reagiu. Começou por deitar fora os escombros deixados pelos rufias do pai e limpar o local, enquanto respirava ritmicamente para esvaziar do seu interior todo o rasto de cólera e purificar o seu espírito. Depois, com os discípulos vestidos de tanga e levando cartazes em que exi-giam liberdade de culto e respeito pelos seus direitos de cidadãos, marcharam até ao gradeamento do Congresso. Ali puxaram de apitos de madeira, de sine-tas e de pequenos gongos improvisados, com os quais armaram uma chinfri-neira que fez parar o transito. Logo que se juntou bastante público, Nicolau começou a tirar toda a roupa e, completamente nu como um bebé, deitou-se no meio da rua com os braços abertos em cruz. Produziu-se tal confusão de travagens, buzinas, chiadeiras e assobiadelas, que o alarme chegou ao interior do edifício. No Senado interrompeu-se a sessão em que se discutia o direito dos latifundiários a cercar com arame farpado os caminhos vicinais, e os congressistas vieram à varanda gozar o inusitado espectáculo de um filho do senador Trueba cantando salmos asiáticos totalmente em pelota. Esteban Trueba desceu a correr a larga escadaria do Congresso e lançou-se à rua disposto a matar o seu filho, mas não chegou a passar do gradeamento, porque sentiu que o coração lhe explodia de ira no peito e um véu vermelho lhe turvava a vista. Caiu ao chão. Levaram Nicolau na ramona dos carabineiros e o Senador numa ambu-lância da Cruz Vermelha. O fanico de Trueba durou três semanas e por pouco despachava-o para o outro mundo. Quando pôde sair da cama agarrou o filho Nicolau pelo pescoço, meteu-o num avião e mandou-o para o estrangeiro, com ordem de não voltar a aparecer-lhe à frente pelo resto da vida. Deu-lhe, apesar de tudo, dinheiro suficiente para poder instalar-se e sobreviver por largo tempo, porque, tal como lhe explicou Jaime, essa era uma maneira de evitar que fizesse mais loucuras que pudessem desprestigiá-lo também no estran-geiro. Nos anos seguintes Esteban Trueba soube da ovelha ronhosa da sua família pela esporádica correspondência que Blanca mantinha com ele. Assim se inteirou de que Nicolau formara na América do Norte outra academia para se unir com o nada, com tanto êxito que chegou a ter a riqueza que não conseguiu subindo de balão ou fabricando sanduíches. Acabou remolhando-se com os seus discípulos na sua própria piscina de porcelana rosada, respeitado pelos cidadãos, combinando, sem fazer por isso, a procura de Deus com a boa sorte nos negócios. Esteban Trueba naturalmente nunca acreditou nisso. O Senador esperou que crescesse um pouco o cabelo da neta, para que não pensassem que apanhara tinha, e foi pessoalmente matriculá-la num colégio inglês para meninas, porque continuava a pensar que essa era a melhor educação, apesar dos resultados contraditórios que obteve com os seus dois filhos. Blanca concordou, por compreender que não bastava uma boa conjunção de planetas na sua carta astral para Alba ir para a frente na vida. No colégio, Alba aprendeu a comer verduras cozidas e arroz queimado, a suportar o frio do pátio, a cantar hinos e a abjurar de todas as vaidades do mundo, excepto as de ordem desportiva. Ensinaram-lhe a ler a Bíblia, a jogar ténis e a escrever à máquina. Esta última foi a única coisa útil que lhe deixaram aqueles longos anos em idioma estrangeiro. Para Alba, que tinha vivido até então sem ouvir falar de pecados nem de modos de senhora, desconhecendo o limite entre o humano e o divino, o possível e o impossível, vendo passar um tio nu pelos corredores aos saltos de karateca e outro enterrado debaixo de uma montanha de livros, o avô partindo à bengalada os telefones e as floreiras do terraço, a mãe escapulindo-se com a maleta de palhaço e a avó movendo a mesa de pé-de-galo e tocando Chopin sem abrir o piano, a rotina do colégio pareceu-lhe insuportável. Aborrecia-se nas aulas. Nos recreios sentava-se no canto mais afastado e discreto do pátio, para não ser vista, tremendo de desejo de que a convidassem para brincar e pedindo ao mesmo tempo que ninguém reparasse nela. A mãe advertiu-a de que não tentasse explicar às companheiras o que vira sobre a natureza humana nos livros de medicina do seu tio Jaime, nem falasse às professoras das vantagens do esperanto sobre a língua inglesa. Apesar destas precauções, a directora do estabelecimento não teve dificuldade em detectar, desde os primeiros dias, as extravagâncias da sua nova aluna. Observou-a durante umas duas semanas e quando ficou segura do diagnóstico, chamou Blanca Trueba ao escritório e explicou-lhe da forma mais cortês que pôde, que a menina fugia por completo aos limites habituais da formação britânica e sugeriu-lhe que a metesse num colégio de freiras espanholas, onde talvez lhe pudessem dominar a imaginação lunática e corrigir-lhe o péssimo civismo. Mas o senador Trueba não estava disposto a deixar-se esmagar por uma Miss Saint John qualquer, e fez valer todo o peso da sua influência para que não expulsassem a neta. Queria a todo o custo que ela aprendesse inglês. Estava convencido da superioridade do inglês sobre o espanhol, que considerava um idioma de segunda categoria, próprio para assuntos domésticos e para a magia, para as paixões incontro-láveis e empreendimentos inúteis, mas inadequado para o mundo da ciência e da técnica, onde esperava ver Alba triunfar. Tinha acabado por aceitar - vencido pela vaga dos novos tempos - que algumas mulheres não eram de todo idiotas e pensava que Alba, demasiado insignificante para atrair um marido de boa situação, podia ter uma profissão e acabar por ganhar a vida como um homem. Nesse ponto Blanca apoiou o seu pai, porque tinha sentido na própria carne os resultados de uma má preparação académica para enfrentar a vida. - Não quero que sejas pobre como eu, nem que tenhas de depender de um homem que te sustente - dizia à filha sempre que a via a chorar por não querer ir para as aulas. Não a tiraram do colégio e teve de suportá-lo durante dez anos ininterruptos. Para Alba, a única pessoa estável naquele barco à deriva em que se converteu a grande casa da esquina depois da morte de Clara, era a mãe. Blanca lutava contra o desastre e a decadência com a ferocidade de uma leoa, mas era evidente que perderia a batalha contra o avanço da deterioração. Só ela tentava dar ao casarão uma aparência de lar. O senador Trueba continuou vivendo ali, mas deixou de convidar os seus amigos e relações políticas, fechou os salões e ocupou só a biblioteca e o quarto. Estava cego e surdo às necessidades da casa. Muito atarefado com a política e os negócios, viajava constantemente, pagava novas campanhas eleitorais, comprava terras e tractores, criava cavalos de corrida, especulava com o preço do ouro, do açúcar e do papel. Não via que as paredes de casa estavam ávidas de uma camada de pintura, os móveis desengonçados e a cozinha transformada numa esterqueira. Nem via os coletes de lã apertados da sua neta, nem a roupa antiquada da filha ou as suas mãos destruidas pelo trabalho doméstico e pela argila. Não agia assim por avareza: a família tinha deixado simplesmente de Ihe interessar. Sala algumas vezes da distracção e chegava com algum pre-sente desproporcionado e maravilhoso para a neta, que não fazia mais que aumentar o contraste entre a riqueza invisível das contas nos bancos e a austeridade da casa. Entregava a Blanca somas variáveis, mas nunca sufici-entes, destinadas a manter em andamento aquele casarão destrambelhado e escuro, quase vazio e cruzado pelas correntes de ar, em que tinha degenerado a mansão de outros tempos. A Blanca o dinheiro nunca chegava para as des-pesas, vivia pedindo emprestado a Jaime e por mais que cortasse o orçamento por aqui e o remendasse ali, ao fim do mês tinha uma quantidade de contas por pagar que se iam acumulando, até que decidia ir ao bairro dos joalheiros judeus vender algumas das jóias que um quarto de século antes tinham sido compradas ali mesmo e que Clara Ihe dera dentro de uma meia de lã. Em casa, Blanca andava de avental e alpergatas, confundindo-se com a escassa criadagem que restava, e para sair usava o mesmo fato preto engo-mado e tornado a engomar, com a blusa de seda branca. Depois que o avô enviuvou e deixou de preocupar-se com ela, Alba vestia-se com o que herdava de algumas primas afastadas, que eram maiores ou mais pequenas do que ela, de modo que em geral os casacos ficavam-lhe como capotes militares e os vestidos curtos e apertados. Jaime teria querido fazer alguma coisa por elas, mas a sua consciência indicava-lhe que era melhor gastar as suas receitas dando comida aos famintos, do que luxos à sua irmã e à sua sobrinha. Depois da morte da avó, Alba começou a sofrer pesadelos que a faziam despertar gritando e afogueada. Sonhava que morriam todos os membros da família e ela ficava vagueando sozinha pela grande casa, sem outra companhia que os ténues fantasmas desluzidos que deambulavam pelos corredores. Jaime sugeriu que a mudassem para o quarto de Blanca para ficar mais tranquila. Desde que começou a compartilhar o quarto com a mãe, esperava com secreta impaciência o momento de se deitar. Encolhida entre os lençóis, seguia-a com os olhos na rotina de acabar o dia e meter-se na cama. Blanca limpava a cara com creme do harém, uma gordura rosada com perfume de rosas, que tinha fama de fazer milagres na pele feminina, e escovava cem vezes o seu longo cabelo castanho que começava a tingir-se com algumas cãs invisíveis para todos, menos para ela. Era propensa ao resfriado, por isso no Inverno e no Verão dormia com saiotes de lã que ela mesma fazia nos momentos livres. Quando chovia cobria as mãos com luvas, para mitigar o frio polar que lhe tinha entrado nos ossos devido à humidade da argila e que todas as injecções de Jaime e a acupunctura chinesa de Nicolau foram inúteis para curar. Alba observava-a no ir e vir pelo quarto, com a camisa de noviça flutuando em redor do corpo, o cabelo liberto do carrapito, envolta na suave fragrância da roupa limpa e do creme do harém, perdida num monólogo incoerente no qual se misturavam as queixas pelo preço das hortaliças, o inventário dos seus múltiplos achaques, o cansaço de trazer às costas o peso da casa, e as suas fantasias poéticas com Pedro Tercero Garcia, a quem imaginava entre as nuvens do entardecer ou recordava entre os dourados trigais de Las Tres Marias. Acabado o ritual, Blanca enfiava-se no leito e apagava a luz. Através do estreito espaço que as separava, pegava na mão da filha e contava-lhe as histórias dos livros mágicos dos baús encantados do bisavô Marcos, mas que a sua má memória transformava em contos novos. Foi assim que Alba soube de um príncipe que dormiu cem anos, de donzelas que lotavam corpo a corpo com os dragões, de um lobo perdido no bosque a quem uma menina destripou sem razão alguma. Quando Alba queria voltar a ouvir essas truculências, Blanca não podia repeti-las, porque as tinha esquecido, pelo que a pequena tomou o hábito de as escrever. Depois anotava também as coisas que lhe pareciam importantes, como fazia a avó Clara. Os trabalhos do mausoléu começaram pouco tempo depois da morte de Clara, mas demoraram quase dois anos, porque fui acrescentando novos e dispendiosos pormenores: lápides com letras góticas douradas, uma cúpula de cristal para entrar o sol e um engenhoso mecanismo copiado das fontes romanas, que permitia irrigar de forma constante e regrada um minúsculo jardim interior, onde mandei plantar rosas e camélias, as flores preferidas das irmãs que tinham ocupado o meu coração. As estátuas foram um problema. Rejeitei vários desenhos, porque não queria anjos cretinos, mas sim os retratos de Rosa e Clara, com os seus rostos, as suas mãos, o seu tamanho real. Um escultor uruguaio acertou com o meu gosto e as estátuas ficaram por fim como eu as queria. Depois de pronto, encontrei-me face a um obstáculo inesperado: não pude trasladar Rosa para o novo mausoléu, porque a família del Valle se opôs. Tentei convencê-los com toda a espécie de argumentos, com presentes e pressões, fazendo valer até o poder político, mas tudo foi inútil. Os meus cunhados mantiveram-se inflexíveis. Julgo que souberam do assunto da cabeça de Nívea e estavam ofendidos comigo por tê-la tido na cave todo esse tempo. Face à sua casmurrice, chamei Jaime e disse-lhe que se preparasse para me acompanhar ao cemitério para irmos roubar o cadáver de Rosa. Não demonstrou nenhuma surpresa. - Se isto não vai a bem, vai a mal - expliquei a meu filho. Como é habitual nestes casos, fomos de noite e subornámos o guarda, tal como fiz muito tempo atrás, para ficar com Rosa na primeira noite que ela passou ali. Entrámos com as nossas ferramentas pela avenida dos ciprestes, procuramos a tumba da família del Valle e demo-nos ao lúgubre trabalho de a abrir. Tirámos cuidadosamente a lápide que guardava o repouso de Rosa e sacamos do nicho o ataúde branco, que era muito mais pesado do que supu-nhamos, de modo que tivemos de pedir ao guarda que nos ajudasse. Traba-lhámos dificilmente no estreito recinto, estorvando-nos mutuamente com as ferramentas, mal iluminados por uma lanterna de carboneto. Depois voltámos a colocar a lápide no nicho, para que ninguém suspeitasse que estava vazio. Terminámos a suar. Jaime tivera a precaução de levar um cantil com aguar-dente e pudemos beber um trago para nos dar animo. Apesar de nenhum de nós ser supersticioso aquela necrópole de cruzes, cúpulas e lápides punha-nos nervosos. Sentei-me nos degraus do jazigo a recuperar o alento e pensei que já não estava nada jovem, se mover um caixão me fazia perder o ritmo do coração e ver pontinhos brilhantes na escuridão. Fechei os olhos e recordei-me de Rosa, do seu rosto perfeito, da sua pele de leite, do seu cabelo de sereia oceânica, dos seus olhos de mel provocadores de tumultos, das suas mãos entrelaçadas com o rosário de nácar, da sua coroa de noiva. Suspirei evocando essa virgem formosa que se me tinha escapado das mãos e que esteve ali, esperando durante todos esses anos, que eu fosse buscá-la e a levasse para o sítio onde devia estar. - Filho, vamos abrir isto. Quero ver Rosa - disse a Jaime. Não tentou dissuadir-me, porque conhecia o meu tom quando a decisão era irrevogável. Ajeitámos a luz da lanterna, ele desapertou com paciência os parafusos de bronze que o tempo tinha escurecido e pudemos levantar a tampa, que pesava como se fosse de chumbo. À luz branca do carboneto vi, Rosa, a bela, com as suas flores de laranjeira de noiva, o seu cabelo verde, a sua imperturbável beleza, tal como a vira muitos anos antes, deitada no féretro branco sobre a mesa da sala de jantar dos meus sogros. Fiquei a olhá-la fascinado, sem estranhar que o tempo a não tivesse alterado, porque era a mesma dos meus sonhos. Inclinei-me e dei-lhe através do vidro que cobria o rosto, um beijo nos lábios pálidos da amada infinita. Nesse momento uma brisa levantou-se por entre os ciprestes, entrou à traição por alguma frincha do caixão que até então tinha permanecido hermético e num instante a noiva imutável desfez-se como por encanto, desintegrou-se em pó ténue e cinzento. Quando levantei a cabeça e abri os olhos, com o beijo frio ainda nos lábios, já não estava Rosa, a bela. No seu lugar havia uma caveira com as órbitas vazias, umas tiras de pele cor de marfim pegadas aos malares e umas mechas de crina bolorenta na nuca. Jaime e o guarda fecharam a tampa precipitadamente, colocaram Rosa numa carreta e levaram-na ao sitio que lhe estava reservado junto de Clara no mausoléu cor de salmão. Fiquei sentado sobre uma campa na avenida dos ciprestes, olhando a Lua. - Férula tinha razão - pensei. - Fiquei sozinho e o corpo e a alma estão a mirrar-se-me. Só me falta morrer como um cão. O senador Trueba lutava contra os seus inimigos políticos, que cada dia avançavam mais e mais na conquista do poder. Enquanto outros dirigentes do Partido Conservador engordavam, envelheciam e perdiam o tempo em intermi-náveis discussões bizantinas, ele dedicava-se a trabalhar, a estudar e a per-correr o pais de norte a sul, numa campanha pessoal que nunca cessava, sem ter em conta os anos nem o surdo ranger dos ossos. Reelegiam-no senador em cada eleição parlamentar. Mas não estava interessado no poder, na riqueza ou no prestigio. A sua obsessão era destruir o que ele chamava «o cancro marxista», que se infiltrava pouco a pouco no povo. - Levanta-se uma pedra e aparece um comunista! - dizia. Ninguém acreditava nisso. Nem os próprios comunistas. Gozavam com ele, pelos seus repentes de mau humor, o ar de corvo enlutado, a bengala anacrónica e os seus prognósticos apocalípticos. Quando lhes brandia diante do nariz as estatísticas e os resultados reais das últimas votações, os seus correligionários temiam que fossem coisas de velho. - No dia em que não pudermos deitar a luva às urnas antes de contarem os votos, vamos todos para o caralho! – sustentava Trueba. - Em nenhum lado os marxistas ganharam por votação popular. É necessário pelo menos uma revolução e neste pais não se passam coisas dessas - replicavam-lhe. - Até passarem! - alegava Trueba frenético. - Acalma-te, homem. Não vamos permitir que isso se passe - consolavam-no. - O marxismo não tem a mais pequena oportunidade na América Latina. Não vês que nãocontempla o lado mágico das coisas? É uma doutrina ateia, prática e funcional. Aqui não pode ter êxito! Nem o próprio coronel Hurtado, que via inimigos da pátria por todos os lados. O senador Trueba lutava contra os seus inimigos políticos, que cada dia avançavam mais e mais na conquista do poder. Enquanto outros dirigentes do Partido Conservador engordavam, envelheciam e perdiam o tempo em intermináveis discussões bizantinas, ele dedicava-se a trabalhar, a estudar e a percorrer o pais de norte a sul, numa campanha pessoal que nunca cessava, sem ter em conta os anos nem o surdo ranger dos ossos. Reelegiam-no senador em cada eleição parlamentar. Mas não estava interessado no poder, na riqueza ou no prestígio. A sua obsessão era destruir o que ele chamava «o cancro marxista», que se infiltrava pouco a pouco no povo. - Levanta-se uma pedra e aparece um comunista! - dizia. Ninguém acreditava nisso. Nem os próprios comunistas. Gozavam com ele, pelos seus repentes de mau humor, o ar de corvo enlutado, a bengala anacrónica e os seus prognósticos apocalípticos. Quando lhes brandia diante do nariz as estatísticas e os resultados reais das últimas votações, os seus correligionários temiam que fossem coisas de velho. - No dia em que não pudermos deitar a luva às urnas antes de contarem os votos, vamos todos para o caralho! – sustentava Trueba. - Em nenhum lado os marxistas ganharam por votação popular. É necessário pelo menos uma revolução e neste pais não se passam coisas dessas - replicavam-lhe. - Até passarem! - alegava Trueba frenético. - Acalma-te, homem. Não vamos permitir que isso se passe - consolavam-no. - O marxismo não tem a mais pequena oportunidade na América Latina. Não vês que não contempla o lado mágico das coisas? É uma doutrina ateia, Prática e funcional. Aqui não pode ter êxito! Nem o próprio coronel Hurtado, que via inimigos da pátria por todos os lados, considerava os comunistas como um perigo. Fez-lhe ver mais de uma vez, que o Partido Comunista era composto por quatro pobres diabos que não significavam nada estatisticamente e que se regiam pelas ordens de Moscovo com uma beatice digna de melhor causa. - Moscovo fica onde o diabo perdeu o capote, Esteban. Não têm ideia do que se passa neste pais - dizia-lhe o coronel Hurtado. - Não lhes interessam para nada as condições do nosso pais, a prova é que andam mais perdidos que o Capuchinho Vermelho. Há pouco tempo publicaram um manifesto cha-mando os camponeses, os marinheiros e os indígenas a fazer parte do primeiro soviete nacional, o que sob todos os pontos de vista é uma palhaçada. Os camponeses sabem lá o que é um soviete! E os marinheiros estão sempre no alto mar e andam mais interessados nos bordéis de outros portos que na política. E os índios! Restam-nos uns duzentos ao todo. Não creio que tenham sobrevivido mais aos massacres do século passado, mas se querem formar um soviete nas suas reservas, é lá com eles - gracejava o coronel. - Sim, mas além dos comunistas estão os socialistas, os radicais e outros grupelhos! São todos mais ou menos o mesmo - respondia Trueba. Para o senador Trueba, todos os partidos políticos, excepto o seu, eram potencialmente marxistas e não podia distinguir claramente a ideologia de uns e de outros. Não hesitava em expor a sua posição em público sempre que surgia a oportunidade, por isso para todos menos para os seus partidários o senador Trueba passou a ser uma espécie de louco reaccionário e oligarca, muito pitoresco. O Partido Conservador tinha de o travar, para que não desse à língua e não os pusesse a todos em xeque. Era o paladino furioso, disposto a dar luta nos tribunais, nas conferências de imprensa, nas universidades, onde ninguém mais se atrevia a dar a cara, lá estava ele sem se perturbar, no seu fato negro, com a sua melena de leão e a sua bengala de prata. Era o alvo dos caricaturistas, que de tanto o porem a ridículo conseguiram torná-lo popular, e em todas as eleições fazia encher a votação conservadora. Era fanático, violento e antiquado, mas representava melhor que ninguém os valores da família, da tradição, da propriedade e da ordem. Toda a gente o reconhecia na rua, inventavam piadas à sua custa e corriam de boca em boca as anedotas que se lhe atribuíam. Diziam que, na ocasião do seu ataque de coração, quando o seu filho se despiu às portas do Congresso, o Presidente da Repú-blica chamou-o ao seu gabinete para lhe oferecer a Embaixada da Suíça, onde poderia ter um cargo apropriado para a sua idade, que lhe permitisse restabe-lecer a sua saúde. Diziam que o senador Trueba respondeu com um murro na secretária do primeiro mandatário, deitando abaixo a bandeira nacional e o busto do Pai da Pátria. - Daqui não saio nem morto, Excelência! - rugiu. – Porque basta eu descuidar-me, os marxistas tiram-no dessa cadeira onde está sentado. Teve a habilidade de ser o primeiro que chamou à esquerda «inimiga da democracia», sem suspeitar que anos depois esse seria o lema da ditadura. Na luta política ocupava quase todo o seu tempo e uma boa parte da sua fortuna. Notou que, apesar de estar sempre a tramar novos negócios, esta parecia ir minguando desde a morte de Clara, mas não se alarmou, porque supôs que na ordem natural das coisas estava o facto irrefutável de que na sua vida ela tinha sido um sopro de boa sorte, mas que não podia continuar beneficiando dele depois da sua morte. Além disso, calculou que com o que tinha podia manter-se como um homem rico, pelo tempo que lhe restava neste mundo. Sentia-se velho, tinha a ideia de que nenhum dos seus três filhos merecia herdá-lo e que à sua neta deixá-la-ia assegurada com Las Tres Marias, apesar de que o campo já não era tão próspero como dantes. Graças às novas estradas e aos automóveis, o que antes era uma expedição de comboio, tinha-se reduzido a seis horas apenas desde a capital a Las Tres Marias, mas ele estava sempre ocupado e não encontrava ocasião para fazer a viagem. Chamava o administrador de vez em quando, para que lhe prestasse contas, mas essas visitas deixavam-no com a ressaca do mau humor por vários dias. O administrador era um homem derrotado pelo seu próprio pessimismo. As noticias eram uma série de circunstancias infelizes: as geadas tinham queimado os morangos, as galinhas apanharam gosma, a uva secara com a peste. Assim o campo, que tinha sido a fonte da sua riqueza, chegou a ser uma carga e amiúde o senador Trueba teve de tirar dinheiro de outros negócios para sustentar essa terra insaciável que parecia ter ganas de voltar aos tempos do abandono, antes de ele a resgatar da miséria. - Tenho de ir pôr ordem naquilo. Faz lá falta o olho do dono - murmurava. - As coisas estão muito agitadas no campo, patrão - avisou-o muitas vezes o administrador. - Os camponeses estão levantados. Todos os dias fazem novas exigências. Parece que querem viver como os patrões. O melhor é vender a propriedade. Mas Trueba não queria ouvir falar em vender. « A terra é a única coisa que fica quando tudo o resto se acaba», repetia ele tal como o fazia quando tinha vinte e cinco anos e a mãe e a irmã o pressionavam nesse sentido. Mas, com o peso da idade e do trabalho político, Las Tres Marias, como muitas outras coisas que antes lhe pareciam fundamentais, tinha deixado de lhe interessar. Só tinha um valor simbólico para ele. O administrador tinha razão: as coisas estavam muito agitadas naqueles anos. Assim o apregoava a voz de veludo de Pedro Tercero Garcia, que graças ao milagre da rádio chegava aos cantos mais afastados do pais. Aos trinta e tantos anos continuava a ter o aspecto de um rude camponês, por uma ques-tão de estilo, já que o conhecimento da vida e o êxito lhe tinham suavizado as asperezas e afinado as ideias. Usava uma barba de montanhês e uma melena de profeta que ele mesmo aparava sem espelho com uma navalha que fora do pai, adiantando-se em vários anos à moda que mais tarde fez furor entre os cantores de protesto. Vestia-se com calças de pano grosseiro, alpergatas artesanais e no Inverno cobria-se com um poncho de tecido de lã crua. Era a sua pose de batalha. Assim se apresentava nos palcos e assim aparecia retratado nas capas dos discos. Desiludido das organizações políticas, acabou por destilar três ou quatro ideias primárias com as quais armou a sua filoso-fia. Era um anarquista. Das galinhas e raposos evoluiu para cantar a vida, a amizade, o amor e também a revolução. A sua música era muito popular e só alguém tão casmurro como o senador Trueba pôde ignorar a sua existência. O velho tinha proibido a rádio em casa, para evitar que a neta ouvisse as comé-dias e folhetins em que as mães perdem os filhos e os recuperam anos depois, assim como para evitar a possibilidade de que as canções subversivas do seu inimigo lhe fizessem parar a digestão. Ele tinha um rádio moderno no quarto, mas só ouvia as noticias. Não suspeitava que Pedro Tercero Garcia era o melhor amigo do seu filho Jaime, nem que se encontrava com Blanca sempre que ela sala com a sua maleta de palhaço, gaguejando pretextos. Nem sabia que em alguns domingos de sol, ele subia aos cerros com Alba, se sentava com ela lá em cima a ver a cidade e a comer pão com queijo antes de se deixarem cair a rebolar pelas ladeiras, rebentados de riso como cachorros felizes, falava-lhe dos pobres, dos oprimidos, dos desesperados e de outros assuntos que Trueba preferia que a neta ignorasse. Pedro Tercero via crescer Alba e procurou estar perto dela, mas não chegou a considerála realmente sua filha, porque nesse ponto Blanca foi inflexível. Dizia que Alba tivera que suportar muitos sobres altos e que só por milagre era uma criança relativamente normal, por isso não havia necessidade de lhe dar outro motivo de confusão a respeito da sua origem. Era melhor que continuasse a acreditar na versão oficial e, por outro lado, não queria correr o risco de ela falar do assunto com o avô, provocando uma catástrofe. De qualquer maneira, o espírito livre e contestatário da menina agradava a Pedro Tercero. - Se não é minha filha, merece sê-lo - dizia, orgulhoso. Em todos esses anos, Pedro Tercero nunca chegou a habituar-se à sua vida de solteiro, apesar do seu êxito com as mulheres, especialmente as adolescentes esplendorosas a quem os queixumes da sua guitarra incendia-vam de amor. Algumas introduziam-se à viva força na sua vida. Ele necessitava da frescura desses amores. Procurava fazê-las felizes um tempo brevíssimo, mas desde o primeiro instante de ilusão começava a despedir-se, até que por último as abandonava com delicadeza. Amiúde, quando tinha uma delas na cama suspirando adormecida a seu lado, fechava os olhos e pensava em Blanca, no seu amplo corpo maduro, nos seus seios abundantes e mornos, nas finas rugas da sua boca, nas sombras dos seus olhos árabes e sentia um grito oprimindo-lhe o peito. Tentou permanecer junto de outras mulheres, percorreu muitos caminhos e muitos corpos para se afastar dela, mas no momento mais íntimo, no ponto preciso da solidão e do presságio da morte, Blanca era sempre a única. Na manhã seguinte começava o suave processo de se desprender da nova enamorada e, mal se encontrava livre, regressava para Blanca, mais magro, mais olheirento, mais culpado, com uma nova canção na guitarra e outras inesgotáveis carícias para ela. Blanca, por seu lado, tinha-se acostumado a viver só. Acabou por encontrar paz nos afazeres da grande casa, na sua oficina de cerâmica e nos seus presépios de animais inventados, onde a única coisa que correspondia às leis da biologia era a Sagrada Família perdida numa multidão de monstros. O único homem da sua vida era Pedro Tercero, porque tinha vocação para um só amor. A força desse imutável sentimento salvou-a da mediocridade e da tristeza do seu destino. Permanecia fiel mesmo nos momentos em que ele se perdia atrás de algumas ninfas de cabelo escorrido e osso. grandes, sem o amar menos por isso. A principio julgava morrer cada vez que se afastava, mas logo se deu conta que as suas ausências duravam o tempo de um suspiro e que invariavelmente regressava mais enamorado e mais doce. Blanca preferia esses encontros furtivos com o seu amante em hotéis de passagem, à rotina de uma vida em comum, ao cansaço de um casamento e ao pesadume de envelhecerem juntos compartilhando as penúrias do fim do mês, o mau cheiro da boca ao acordar, o tédio dos domingos e os achaques da idade. Era uma romântica incurável. Algumas vezes teve a tentação de pegar na sua maleta de palhaço e o que restava das jóias da peúga, e abalar com a sua filha para viver com ele, mas acobardava-se sempre. Talvez temesse que aquele grandioso amor, que tinha resistido a tantas provações, não pudesse sobreviver à mais terrível de todas: a convivência. Alba estava a crescer muito rapidamente e compreendia que não ia durar muito o bom pretexto de velar pela filha para retardar as exigências do amante, mas preferia sempre deixar a decisão para mais tarde. Na realidade, tanto como temia a rotina, horrorizava-a o estilo de vida de Pedro Tercero, o seu modesto casebre de tábuas e folhas de zinco numa povoação operária, entre centenas de outras tão pobres como a sua, com piso de terra batida, sem água e com uma só lâmpada pendurada do tecto. Por causa dela, ele saiu da povoação e mudou-se para um apartamento no centro, ascendendo assim, sem querer, a uma classe média a que nunca teve aspirações de pertencer. Mas nem isso foi suficiente para Blanca. O apartamento pareceu-lhe sórdido, escuro, estreito e o edifício promiscuo. Dizia que não podia permitir que Alba crescesse ali, brincando com outros meninos na rua e nas escadas, educando-se na escola pública. Assim passou a sua juventude e entrou na idade madura, resignada a que os únicos momentos de prazer eram quando sala dissimuladamente com a sua melhor roupa, o seu perfume e as anáguas de adolescente que cativavam Pedro Tercero e que ela escondia, corada de vergonha, no mais secreto do roupeiro, pensando nas explicações que teria de dar se alguém as descobrisse. Aquela mulher prática e terrena em todos os aspectos da existência, sublimou a sua paixão de infância, vivendo-a tragicamente. Alimentou-a de fantasias, idealizou-a, defen-deu-a com fereza, depurou-a das verdades prosaicas e pôde convertê-la num amor de novela. Por seu lado, Alba aprendeu a não mencionar Pedro Tercero Garcia, porque conhecia o efeito que esse nome causava na família. Intuía que algo de grave se tinha passado entre o homem dos dedos cortados que beijava a mãe na boca e o avô, mas todos, até o próprio Pedro Tercero, respondiam às suas perguntas com evasivas. Na intimidade do quarto, Blanca contava-lhe histó-rias dele e ensinava-lhe as suas canções com a recomendação de que não fosse trauteá-las em casa. Mas não lhe contou que era seu pai e ela mesma parecia tê-lo esquecido. Recordava o passado como uma sucessão de violên-cias, abandonos e tristezas e não estava segura de que as coisas tivessem sido como pensava. Tinha apagado da memória o episódio das múmias, os retratos e o índio imberbe com sapatos Luís XV, que provocaram a sua fuga da casa do seu marido. Tantas vezes repetiu a história de que o conde morrera de febre no deserto que chegou a acreditar nela. Anos depois, no dia em que a filha chegou a anunciar-lhe que o cadáver de Jean de Satigny jazia na geleira da morgue, não se alegrou, porque havia muito tempo se sentia viúva. Nem tentou justificar a sua mentira. Tirou do armário o seu antigo fato de saia e casaco preto, ajeitou os ganchos do cabelo e acompanhou Alba a sepultar o francês no Cemitério Geral, numa sepultura do Município, onde iam parar os indigentes, porque o senador Trueba negou-se a ceder-lhe um lugar no seu mausoléu cor de salmão. Mãe e filha caminharam sós atrás do caixão negro que puderam comprar graças à generosidade de Jaime. Sentiam-se um pouco ridículas naquele abafado meio-dia estival com um ramo de flores murchas na mão e nenhuma lágrima para o cadáver solitário que iam enterrar. - Vejo que o meu pai nem sequer tinha amigos – comentou Alba. Nem nessa ocasião Blanca disse a verdade à filha. Depois que tive Clara e Rosa instaladas no meu mausoléu, senti-me um pouco mais tranquilo, porque sabia que mais tarde ou mais cedo estaríamos os três reunidos ali, junto a outros seres queridos como a minha mãe, a Ama e a própria Férula, que espero me tenha perdoado. Não imaginei na altura que ia viver tanto como tenho vivido e que teriam de esperar por mim tanto tempo. O quarto de Clara permaneceu fechado à chave. Não queria que ninguém lá entrasse, para que não mexessem em nada e eu pudesse encontrar o seu espirito ali presente sempre que o desejasse. Comecei a ter insónias, o mal de todos os velhos. De noite, deambulava pela casa sem poder pegar no sono, arrastando as sapatilhas que me ficavam grandes, embrulhado na antiga túnica episcopal, que ainda guardo por razões sentimentais, resmungando contra o destino como um velho acabado. No entanto, com a luz do Sol, recu-perava o desejo de viver. Aparecia à hora do pequeno almoço com a camisa engomada e o meu fato de luto, barbeado e tranquilo, lia o jornal com a minha neta, punha em dia os meus negócios, e a correspondência e depois sala pelo resto do dia. Deixei de comer em casa, mesmo aos sábados e domingos, porque sem a presença catalisadora de Clara, não havia nenhuma razão para suportar as discussões com os meus filhos. Os meus únicos dois amigos procuravam tirar-me o luto da alma. Almoçavam comigo, jogávamos golfe, desafiavam-me para o dominó. Com eles discutia os meus negócios, falava de política e por vezes da família. Uma tarde em que me viram mais animado, convidaram-me para ir ao Cristóbal Colón, com a esperança de que uma mulher complacente me fizesse recuperar o bom humor. Nenhum dos três tinha idade para essas aventuras, mas bebemos uns copos e partimos. Tinha estado no Cristóbal Colón fazia alguns anos, mas quase o tinha esquecido. Nos últimos tempos, o bordel tinha adquirido prestigio turístico e os provincianos viajavam até à capital só para o visitar e depois contar aos amigos. Chegámos ao antiquado casarão, que por fora se mantinha igual desde há muitíssimos anos. Recebeu-nos um porteiro que nos levou ao salão principal, onde recordava ter estado antes, na época da matrona francesa ou, melhor dito, com sotaque francês. Uma rapariguita, vestida como uma estu-dante, ofereceu-nos um copo de vinho por conta da casa. Um dos meus amigos tentou agarrá-la pela cintura, mas ela avisou-o de que pertencia ao pessoal de serviço e que devíamos esperar pelas profissionais. Momentos depois abriu-se uma cortina e apareceu uma visão das antigas cortes árabes: um negro enorme, tão negro que parecia azul, com os músculos oleados, vestido com umas bombachas de seda cor de cenoura, um colete sem mangas, turbante de lamé roxo, babuchas de turco e um anel de ouro atravessado no nariz. Ao sorrir, vimos que tinha todos os dentes de chumbo. Apresentou-se como Mustafá e passou-nos um álbum de retratos, para escolhermos a mercadoria. Pela primeira vez em muito tempo ri com vontade, porque a ideia de um catálogo de prostitutas pareceu-me muito divertida. Folheámos o álbum, onde havia mulheres gordas, magras, de cabelo comprido, de cabelo curto, vestidas como ninfas, como amazonas, como noviças, como cortesãs, sem que fosse possível para mim escolher uma, porque todas tinham a expressão pisada das flores de banquete. As últimas três páginas do álbum eram destinadas a rapazes com túnicas gregas, com coroas de louro, brincando entre falsas ruínas helénicas, com as nádegas gorduchas e as pálpebras pestanudas, repugnantes. Eu não tinha visto de perto nenhum maricas confesso, excepto Carmelo, o que se vestia de japonesa no Farolito Rojo, por isso surpreendeu-me que um dos meus amigos, pai de família e corretor da Bolsa do Comércio, escolhesse um daqueles adolescentes rabudos dos retratos. O rapaz surgiu como por arte de magia detrás das cortinas e levou o meu amigo pela mão, entre risinhos e saracoteios femininos. O meu outro amigo preferiu uma gordíssima odalisca, com quem duvido que tenha podido realizar alguma proeza, devido à sua idade avançada e ao seu frágil esqueleto, mas, em todo o caso, saiu com ela, também engolidos pela cortina. - Vejo que o senhor custa a decidir-se - disse Mustafá cordialmente. - Permita-me oferecer-lhe o melhor da casa. Vou-lhe apresentar Afrodite. E entrou Afrodite no salão, com três andares de caracóis na cabeça, mal coberta por tules drapejados e gotejando uvas artificiais desde o ombro até aos joelhos. Era Tránsito Soto, que tinha adquirido um definitivo aspecto mitológico, apesar das uvas de mau gosto e dos tules de circo. - Alegra-me vê-lo, patrão - saudou. Levou-me através da cortina e desembocámos num pequeno pátio interior, o coração daquela labiríntica construção. O Cristóbal Colón era formado por duas ou três casas antigas, unidas estrategicamente por pátios traseiros, corredores e pontes feitos para tal fim. Tránsito Soto levou-me para um quarto anódino, mas limpo, cuja única extravagância eram uns frescos eróticos mal copiados dos de Pompeia, que um pintor medíocre tinha reproduzido nas paredes, e uma banheira grande, antiga, um pouco oxidada, com água corrente. Assobiei de admiração. - Fizemos algumas mudanças na decoração - disse ela. Tránsito tirou as uvas e os tules e voltou a ser a mulher que eu recor-dava, só que mais apetecível e menos vulnerável, mas com a mesma expressão ambiciosa dos olhos que me cativara quando a conheci. Contou-me da coope-rativa de prostitutas e maricas, que tinha resultado formidável. Entre todos levantaram o Cristóbal Colón da ruína em que o deixou a falsa madame francesa de antigamente, e trabalharam para o transformar num aconteci-mento social e num monumento histórico, que andava na boca de marinheiros pelos mais remotos mares. Os disfarces eram a maior contribuição para o êxito, porque remexiam a fantasia erótica dos clientes, assim como o catálogo de putas, que tinham podido reproduzir e distribuir por algumas províncias, para despertar nos homens o desejo de chegar a conhecer um dia o famoso bordel. - É uma chatice andar com estes trapos e estas uvas fingidas, patrão, mas os homens gostam. Vão contar lá para fora e isso atrai outros. Vamos muito bem, é um bom negócio e ninguém aqui se sente explorado. Todos somos sócios. Esta é a única casa de putas do país que tem o seu próprio negro autêntico. Outros que você vê por ai são pintados, ao passo que Mustafá, mesmo que o esfregue com lixa, fica sempre negro. Aqui até pode beber água na retrete porque deitamos lixívia até onde você não imagina e estamos todos controlados pela Sanidade. Não há doenças venéreas. Tránsito tirou o último véu e a sua magnifica nudez esmagou-me tanto que senti logo um mortal cansaço. Tinha o coração oprimido pela tristeza e o sexo flácido como uma flor murcha e sem destino entre as pernas. - Ai, Tránsito! Creio que já estou muito velho para isto-balbuciei. Mas Tránsito Soto começou a ondular a serpente tatuada à volta do umbigo, hipnotizandome com o suave contorcionar do ventre, enquanto me arrulhava com a sua voz de pássaro rouco, falando dos benefícios da cooperativa e das vantagens do catálogo. Tive de rir-me, apesar de tudo, e pouco a pouco senti que o meu próprio riso era como um bálsamo. Com o dedo tentei seguir o contorno da serpente, mas deslizou-me ziguezagueando. Maravilhei-me de que aquela mulher, que não estava na sua primeira nem na sua segunda juventude, tivesse a pele tão firme e os músculos tão duros, capazes de mover aquele réptil como se tivesse vida própria. Inclinei-me para beijar a tatuagem e comprovei, satisfeito, que não estava perfumada. O odor cálido e seguro do seu ventre entrou-me pelas narinas e invadiu-me por completo, alertando-me no sangue um fervor que julgava esfriado. Sem deixar de falar, Tránsito abriu as pernas, separando as suaves colunas das suas coxas, num gesto casual, como se acomodasse a posição. Comecei a percorrê-la com os lábios, aspirando, explorando, lambendo, até que esqueci o luto e o peso dos anos e o desejo voltou-me com a força de outros tempos e sem deixar de acariciá-la e de beijá-la fui tirando-lhe a roupa aos sacões, com desespero, comprovando feliz a firmeza da minha masculinidade, ao mesmo tempo que me afundava no animal morno e misericordioso que se me oferecia, arrulhado pela voz de pássaro rouco, enlaçado pelos braços da deusa, cirandado pela força daquelas ancas, até perder a noção das coisas e rebentar em gozo. Depois demorámo-nos os dois na banheira com água morna, até que a alma me voltou ao corpo e me senti quase curado. Por um instante brinquei imaginando que Tránsito Soto era a mulher de que sempre tinha necessitado e que a seu lado poderia voltar à época em que era capaz de levantar em peso uma robusta camponesa, pô-la na garupa do cavalo e levá-la para os matagais contra a sua vontade. - Clara... - murmurei sem pensar, e então senti que cala uma lágrima pela minha face e depois outra e outra mais, até que foi uma torrente de pranto, um tumulto de soluços, uma sufocação de nostalgias e de tristezas, que Tránsito Soto reconheceu sem dificuldade, porque tinha uma grande experiência com as penas dos homens. Deixou-me chorar todas as misérias e as solidões dos últimos anos e depois tirou-me da banheira com cuidados de mãe, secou-me, fez-me massagens até deixar-me mole como um pão demolhado e tapou-me quando fechei os olhos na cama. Beijou-me na testa e saiu em bicos de pés. - Quem será Clara? - ouvi-a murmurar ao sair. Capítulo XI O Despertar Por volta dos dezoito anos, Alba abandonou definitivamente a infância. No momento preciso em que se sentiu mulher, fechou-se no seu antigo quarto, onde ainda estava o mural que tinha começado muitos anos antes. Procurou nos velhos boiões de tinta até que encontrou um pouco de vermelho e de branco que ainda estavam frescos, misturou-os com cuidado e começou a pintar um grande coração rosado no último espaço livre das paredes. Estava apaixonada. Depois atirou para o lixo os boiões e os pincéis e sentou-se um bom bocado a contemplar os desenhos, para rever a história das suas tristezas e alegrias. Concluiu que tinha sido feliz e, com um suspiro, despediu-se da meninice. Nesse ano mudaram muitas coisas na sua vida. Acabou o colégio e decidiu estudar filosofia, por gosto pessoal, e música, para ir contra o avô, que considerava a arte como uma forma de perder tempo e pregava incansavel-mente as vantagens das profissões liberais ou cientificas. Também a prevenia contra o amor e o casamento com as mesmas tolices com que insistia para que Jaime procurasse uma noiva decente e se casasse, porque estava a ficar solteirão. Dizia que para os homens é bom ter uma esposa, mas, em troca, as mulheres como Alba ficavam sempre a perder com o casamento. As prédicas do avô volatilizaram-se quando Alba viu pela primeira vez Miguel, numa tarde memorável de chuviscos e frio, na cafetaria da Universidade. Miguel era um estudante pálido, de olhos febris, calças desbotadas e botas de mineiro, no último ano de Direito. Era dirigente esquerdista. Estava inflamado pela mais incontrolável paixão: procurar a justiça. Isso não o impe-diu de notar que Alba o observava. Levantou a vista e os seus olhos encon-traram-se. Olharam-se deslumbrados e desde esse momento procuraram todas as ocasiões para se juntarem nas alamedas do parque, por onde passea-vam carregados de livros ou arrastando o pesado violoncelo de Alba. Desde o primeiro encontro ela notou que ele trazia uma pequena insígnia na manga: uma mão levantada com o punho cerrado. Decidiu não lhe dizer que era neta de Esteban Trueba e, pela primeira vez na sua vida, usou o apelido que tinha no seu bilhete de identidade: Satigny. Cedo se deu conta que era melhor não o dizer aos outros companheiros. Pelo contrário, pôde gabar-se de ser amiga de Pedro Tercero Garcia, que era muito popular entre os estudantes, e do Poeta, em cujos joelhos se sentava em menina e que na altura era conhecido em todos os idiomas e cujos versos andavam na boca dos jovens e nos graffiti das paredes. Miguel falava da revolução. Dizia que à violência do sistema havia que opor a violência da revolução. Alba, no entanto, não tinha nenhum interesse pela política e só queria falar de amor. Estava farta de ouvir os discursos do avô, de assistir às suas discussões com o tio Jaime, de viver as campanhas eleitorais. A única participação política da sua vida tinha sido sair com outros estudantes para apedrejar a Embaixada dos Estados Unidos, sem ter motivos muito claros para isso, devido ao que a suspenderam do colégio por uma semana e ao seu avô quase lhe deu outro enfarte. Mas na Universidade a política era iniludível. Como todos os jovens que entraram nesse ano, descobriu o atractivo das noites insones num café, falando das mudanças que o mundo necessitava e contagiando-se uns aos outros com a paixão das ideias. Voltava a casa já tarde na noite, com a boca amarga e a roupa impregnada de cheiro a tabaco rançoso, com a cabeça quente de heroísmos, segura de que, chegado o momento, poderia dar a sua vida por uma causa justa. Por amor a Miguel, e não por convicção ideológica, Alba entrincheirou-se na Universidade ao lado dos estudantes que ocuparam o edifício em apoio a uma greve de trabalhadores. Foram dias de acampamento, de discursos infla-mados, de gritar insultos à polícia das janelas até ficarem afónicos. Fizeram barricadas com sacos de terra e paralelipípedos que arrancaram do pátio prin-cipal, taparam as portas e janelas com intenções de tornar o edifício uma fortaleza e o resultado foi uma masmorra da qual era muito mais difícil para os estudantes sair, que para a polícia entrar. Foi a primeira vez que Alba passou a noite fora de casa, aconchegada nos braços de Miguel, entre montões de jornais e garrafas vazias de cerveja, na morna promiscuidade dos compa-nheiros, todos jovens, suados, com os olhos avermelhados pelo sono atrasado e pelo fumo, um pouco esfomeados e sem nenhum medo, porque aquilo se parecia mais com uma brincadeira do que com uma guerra. O primeiro dia passaram-no tão ocupados fazendo barricadas e mobilizando as suas cândidas defesas, pintando cartazes e falando pelo telefone, que não tiveram tempo para se preocupar quando a polícia lhes cortou a água e a electricidade. Desde o primeiro instante, Miguel converteu-se na alma da ocupação, secundado pelo professor Sebastián Gómez, o qual apesar das suas pernas paralíticas os acompanhou até ao fim. Nessa noite cantaram para se anima-rem e, quando se cansaram dos discursos, das discussões e dos cantos, aco-modaram-se em grupos para passar a noite o melhor possível. O último a des-cansar foi Miguel, que parecia ser o único que sabia como actuar. Encarregou-se da distribuição da água, juntando em recipientes até a que estava armazenada nos autoclismos, improvisou uma cozinha e trouxe, ninguém sabe de onde, café instantâneo, bolachas e algumas latas de cerveja. No dia seguinte, o fedor dos sanitários sem água era terrível, mas Miguel organizou a limpeza e ordenou que não os ocupassem: havia que fazer as necessidades no pátio, numa fossa cavada junto à estátua de pedra do fundador da Univer-sidade. Miguel dividiu os rapazes em grupos e manteve-os todo o dia ocupa-dos, com tanta habilidade que não se notava a sua autoridade. As decisões pareciam surgir espontaneamente dos grupos. - É como se fôssemos ficar aqui vários meses! – comentou Alba, encantada com a ideia de estarem sitiados. Na rua, rodeando o antigo edifício, colocaram-se estrategicamente os carros blindados da polícia. Começou uma tensa espera que iria prolongar-se por vários dias. - Vão aderir os estudantes de todo o país, os sindicatos, os colégios profissionais. Talvez caia o governo – opinou Sebastián Gómez. - Não o creio - replicou Miguel. - Mas o que importa é estabelecer o pro-testo e não deixar o edifício até que se assine o caderno reivindicativo dos trabalhadores. Começou a chover suavemente e muito cedo fez-se noite dentro do edifício sem luz. Acenderam alguns improvisados candeeiros com gasolina e uma mecha fumegante em boiões. Alba pensou que também tinham cortado o telefone, mas verificou que a linha funcionava. Miguel explicou que a polícia tinha interesse em saber o que eles diziam e preveniu-os a respeito das conversas. De qualquer modo, Alba ligou para casa para avisar que ficaria junto dos companheiros até à vitória final ou à morte, o que lhe soou falso logo que o disse. O seu avô arrebatou o aparelho da mão de Blanca e com a entoação iracunda que a sua neta conhecia muito bem, disse-lhe que tinha uma hora para chegar a casa com uma explicação razoável por ter passado toda a noite fora. Alba respondeu-lhe que não podia sair e mesmo que pudesse, também não pensava fazê-lo. - Não tens nada que estar ai com esses comunistas! – gritou Esteban Trueba. Mas em seguida amaciou a voz e pediu-lhe que saísse antes que entrasse a polícia, porque ele estava em posição de saber que o governo não ia tolerá-los indefinidamente. - Se não saem às boas, entra o Grupo Móvel e vão tirá-los à cacetada - concluiu o Senador. Alba olhou por uma fresta da janela, tapada com tábuas e sacos de terra e viu os tanques alinhados na rua e uma dupla fila de homens em pé de guerra, com capacetes, matracas e máscaras. Compreendeu que o avô não exagerava. Os outros também os tinham visto e alguns vacilavam. Alguém disse que havia umas novas bombas, piores que as lacrimogéneas, que provocavam uma incontrolável diarreia, capaz de dissuadir o mais valente com a pestilência e o ridículo. A Alba pareceu-lhe a ideia aterradora. Teve de fazer um grande esforço para não chorar. Sentia pontadas no ventre e supôs que eram de medo. Miguel abraçou-a, mas isso não lhe serviu de consolo. Estavam os dois cansados e começavam a sentir a má noite nos ossos e na alma. - Não creio que se atrevam a entrar - disse Sebastián Gómez. - O governo já tem bastantes problemas. Não vai meter-se connosco. - Não seria a primeira vez que carrega contra os estudantes - observou alguém. - A opinião pública não o permitirá - respondeu Gómez. - Isto é uma democracia. Não é uma ditadura e nunca o será. - Pensamos sempre que essas coisas só acontecem aos outros - disse Miguel. - Até que se passem também connosco. O resto da tarde passou sem incidentes e à noite todos estavam mais tranquilos, apesar da prolongada incomodidade e da fome. Os tanques conti-nuavam parados nos seus postos. Nos longos corredores e nas salas os jovens jogavam ao galo ou às cartas, descansavam estendidos no chão e preparavam armas defensivas com paus e pedras. A fadiga notava-se em todos os rostos. Alba sentia cada vez mais fortes as cólicas no ventre e pensou que, se as coisas não se resolvessem no dia seguinte, não teria outro remédio senão uti-lizar a fossa do pátio. Na rua continuava chovendo e a rotina da cidade pros-seguia imperturbável. Ninguém parecia importar-se com outra greve dos estudantes e as pessoas passavam diante dos tanques sem parar para ler os cartazes pendurados da fachada da niversidade. Os vizinhos habituaram-se rapidamente à presença dos carabineiros armados e quando a chuva parou, as crianças saíram para jogar à bola no estacionamento vazio que separava o edifício dos destacamentos policiais. Por momentos, Alba tinha a sensação de estar num barco à vela num mar calmo, sem uma brisa, numa espera eterna e silenciosa, imóvel, explorando o horizonte durante horas. A alegre camarada-gem do primeiro dia transformou-se em irritação e em constantes discussões à medida que o tempo transcorreu e aumentou a incomodidade. Miguel inventariou todo o edificio e confiscou os viveres da cafetaria. - Quando isto terminar, pagaremos ao concessionário. É um trabalhador como qualquer outro - disse. Fazia frio. O único que não se queixava de nada, nem sequer da sede, era Sebastián Gómez. Parecia tão incansável como Miguel, apesar de ter o dobro da idade e do seu aspecto de tuberculoso. Era o único professor que ficou com os estudantes quando ocuparam o edifício. Diziam que as suas pernas paralí-ticas eram a consequência de uma rajada de metralhadora na Bolívia. Era um ideólogo que fazia arder nos alunos a chama que a maioria viu apagar-se quando abandonaram a Universidade e entraram no mundo que na sua primeira juventude julgaram poder mudar. Era um homem pequeno, magro de nariz aquilino e cabelo ralo, animado por um fogo interior que não lhe dava tréguas. Alba devia-lhe a alcunha de «condessa», porque no primeiro dia o seu avô teve a má ideia de mandá-la às aulas no automóvel com motorista e o professor viu-a. A alcunha era, por coincidência, certa, porque Gómez não podia saber que, no caso improvável de ela o querer fazer um dia, podia desenterrar o titulo de nobreza de Jean de Satigny que era uma das poucas coisas autênticas que tinha o conde francês que lhe deu o apelido. Alba não lhe tinha rancor pela alcunha brincalhona, pelo contrário, algumas vezes tinha fantasiado com a ideia de seduzir o esforçado professor. Mas Sebastián Gómez tinha visto muitas meninas como Alba e sabia distinguir essa mescla de compaixão e curiosidade que provocavam as suas muletas sustentando as suas pobres pernas de trapo. Assim se passou todo o dia, sem que o Grupo Móvel movesse os seus tanques e sem que o governo cedesse às reivindicações dos trabalhadores. Alba começou a perguntar-se que diabo estava a fazer naquele lugar, porque a dor de barriga estava-se a tornar insuportável e a necessidade de tomar um banho com água corrente começava a obcecá-la. Cada vez que olhava para a rua e via os carabineiros enchia-se-lhe a boca de saliva. Nessa altura já se tinha dado conta que os treinos do tio Nicolau não eram tão eficazes no momento da acção como na ficção dos sofrimentos imaginários. Duas horas depois, Alba sentiu entre as pernas uma viscosidade morna e viu as calças manchadas de vermelho. Invadiu-a uma sensação de pânico. Durante aqueles dias o temor de que isso acontecesse atormentou-a quase tanto como a fome. A mancha nas calças era como uma bandeira. Não tentou disfarçá-la. Encolheu-se num canto sentindo-se perdida. Quando era pequena, a avó tinha-lhe ensinado que as coisas próprias da função humana são naturais e que podia falar da menstruação como da poesia, mas mais tarde, no colégio, viu que todas as secreções do corpo, menos as lágrimas, eram indecentes. Miguel notando-lhe a vergonha e a angústia, foi à improvisada enfermaria buscar um pacote de algodão, conseguindo alguns lenços, mas logo viram que isso não era suficiente e ao anoitecer Alba chorava de humilhação e de dor, assustada pelas tenazes nas suas entranhas e por esse gorgolejar sangrento que não se parecia em nada com o dos outros meses. Parecia-lhe que algo estava rebentando dentro de si. Ana Díaz, uma estudante que, como Miguel, usava a insígnia do punho erguido, fez a observação de que isso só dói às mulheres ricas, porque as proletárias não se queixam nem quando estão parindo, mas ao ver que as calças de Alba eram um charco e que estava pálida como um moribundo, foi falar com Sebastián Gómez. Este declarou-se incapaz de resolver o problema. - Isto passa-se por meter as mulheres em coisas de homens - gracejou. - Não! Isto passa-se por meter os burgueses nas coisas do povo - respondeu a jovem indignada. Sebastián Gómez foi até ao canto onde Miguel tinha instalado Alba e deslizou para o seu lado com dificuldade, por causa das muletas. - Condessa, tens de ir para a tua casa. Aqui não contribuis em nada, pelo contrário, és um empecilho - disse-lhe. Alba sentiu uma onda de alívio. Estava demasiado assustada e aquela era uma saída honrosa que lhe permitiria voltar a sua casa sem que parecesse covardia. Discutiu um pouco com Sebastián Gómez para salvar a cara, mas aceitou quase em seguida que Miguel saísse com uma bandeira branca a parlamentar com os carabineiros. Todos o observaram das vigias enquanto atravessava o estacionamento vazio. Os carabineiros tinham estreitado filas e ordenaram-lhe pelo altifalante, que parasse, que deitasse a bandeira para o chão e avançasse com as mãos na nuca. - Isto parece uma guerra! - comentou Gómez. Pouco depois regressou Miguel que ajudou Alba a pôr-se em pé. A mesma jovem que antes tinha criticado os queixumes de Alba, pegou-lhe num braço e os três saíram do edifício saltando as barricadas e os sacos de terra, ilumi-nados pelos potentes projectores da polícia. Alba mal podia caminhar, sentia-se envergonhada e com a cabeça às voltas. A meio caminho, uma patrulha saiu-lhes ao encontro e Alba viu-se a poucos centímetros de um uniforme verde e viu uma pistola que lhe era apontada à altura do nariz. Levantou os olhos e enfrentou um rosto moreno com olhos de roedor. Soube logo quem era: Esteban Garcia. - Vejo que és a neta do senador Trueba!-exclamou Garcia ironicamente. Miguel soube assim que ela não lhe tinha dito toda a verdade. Sentindo-se traído, entregou-a nas mãos do outro, deu meia volta e regressou arras-tando a bandeira branca pelo chão, sem lhe dar nem um olhar de despedida, acompanhado por Ana Díaz, que ia tão surpreendida e furiosa como ele. - O que tens tu? - perguntou Garcia apontando com a pistola as calças de Alba. - Parece um aborto! Alba endireitou a cabeça e olhou-o nos olhos. - Isso não lhe importa. Leve-me a minha casa! – ordenou copiando o tom autoritário que empregava o seu avô com todos os que não considerava da sua classe social. Garcia vacilou. Há muito tempo que não ouvia uma ordem da boca de um civil e teve a tentação de levá-la para a prisão e deixá-la apodrecer numa cela, banhada no seu próprio sangue, até que lhe pedisse de joelhos, mas na sua profissão tinha aprendido que havia outros muito mais poderosos do que ele e que não podia dar-se ao luxo de actuar com impunidade. Além disso, a recordação de Alba com os seus vestidos engomados tomando limonadas no terraço de Las Tres Marias, enquanto ele arrastava os pés nus no pátio das galinhas e sorvia o ranho e o temor que ainda tinha ao velho Trueba, foram mais fortes que o seu desejo de humilhá-la. Não pôde aguentar o olhar da rapariga e baixou imperceptivelmente a cabeça. Deu meia volta, ladrou uma breve frase e dois carabineiros levaram Alba pelos braços até um carro da polícia. Assim chegou a casa. Ao vê-la, Blanca pensou que se tinham cum-prido as previsões do avô e que a polícia tinha arremetido à bastonada contra os estudantes. Começou a guinchar e não parou até que Jaime examinou Alba e lhe assegurou que não estava ferida e que não tinha nada que não se pudesse curar com um par de injecções e repouso. Alba passou dois dias na cama, durante os quais se dissolveu pacifica-mente a greve dos estudantes. O ministro da Educação foi retirado do seu posto e transferido para o Ministério da Agricultura. - Se pôde ser ministro da Educação sem ter terminado a escola, também pode ser ministro da Agricultura sem ter visto uma vaca inteira em toda a sua vida - comentou o senador Trueba. Enquanto esteve na cama, Alba teve tempo para lembrar as circuns-tâncias em que tinha conhecido Esteban Garcia. Procurando muito atrás nas imagens da infância, recordou um jovem moreno, a biblioteca da casa, a lareira acesa com grandes troncos de pinheiro perfumando o ar, à tarde ou à noite, e ela sentada sobre os seus joelhos. Mas a visão entrava e sala fugaz-mente da sua memória e chegou a duvidar se não a teria sonhado. A primeira recordação que tinha dele era posterior. Sabia a data exacta porque foi no dia em que completou catorze anos e a mãe anotou no álbum negro que a sua avó iniciou quando ela nasceu. Para a ocasião tinha encaracolado o cabelo e estava no terraço, com o casaco vestido, esperando que chegasse o tio Jaime para a levar a comprar o seu presente. Fazia muito frio, mas ela gostava do jardim no Inverno. Soprou nas mãos e subiu a gola do casaco para proteger as orelhas. Dali podia ver a janela da biblioteca, onde o avô falava com um homem. O vidro estava embaciado, mas pôde reconhecer o uniforme dos cara-bineiros e perguntou a si própria que podia estar o avô a fazer com um deles no seu escritório. O homem estava de costas para a janela sentado rigida-mente na ponta da cadeira, com as costas direitas e um ar patético de solda-dinho de chumbo. Alba esteve olhando-os um bocado, até que calculou que o tio estava a chegar, então caminhou pelo jardim até um caramanchão meio destruído, esfregando as mãos para as aquecer, tirou as folhas húmidas que havia sobre o banco de pedra e sentou-se à espera. Pouco depois, Esteban Garcia encontrou-a ali mesmo, quando saiu de casa e teve de atravessar o jardim para se dirigir ao portão. Ao vê-la parou bruscamente. Olhou para todos os lados, hesitou e aproximou-se. - Recordas-te de mim? - perguntou Garcia. - Não... - duvidou ela. - Sou Esteban Garcia. Conhecemo-nos em Las Tres Marias. Alba sorriu mecanicamente. Trazia-lhe uma má recordação à memória. Havia qualquer coisa nos seus olhos que a inquietava, mas não conseguiu precisar o quê. Garcia varreu com a mão as folhas e sentou-se a seu lado no banco, tão perto, que as suas pernas se tocavam. - Este jardim parece uma selva - disse, respirando muito perto dela. Tirou o barrete do uniforme e ela viu que tinha o cabelo muito curto e duro, penteado com fixador. A mão de Garcia poisou-lhe no ombro. A familia-ridade do gesto desconcertou o rapariga, que por um momento ficou parali-sada, mas em seguida recuou, tentando libertar-se. A mão do carabineiro apertou-lhe o ombro, enterrando-lhe os dedos através do tecido espesso do seu casaco. Alba sentiu que o coração lhe latejava como uma máquina e o rubor lhe cobria as faces. - Cresceste, Alba, pareces quase uma mulher - sussurrou o homem ao seu ouvido. - Tenho catorze anos, faço-os hoje - balbuciou ela. - Então tenho um presente para ti - disse Esteban Garcia sorrindo com a boca torcida. Alba tentou desviar a cara, mas ele agarrou-a firmemente com as mãos, obrigando-a a enfrentá-lo. Foi o seu primeiro beijo. Sentiu uma sensação quente, brutal, a pele áspera e mal barbeada raspou-lhe a cara, sentiu o seu odor a tabaco rançoso e cebola, a sua violência. A língua de Garcia tentou abrir-lhe os lábios enquanto com uma mão lhe apertava as faces até obrigá-la a abrir os maxilares. Ela viu aquela língua como um molusco baboso e morno, invadiu-a a náusea e subiu-lhe um vómito do estômago, mas manteve os olhos abertos. Viu o duro tecido do uniforme e sentiu as mãos ferozes que lhe rodea-vam o pescoço e, sem deixar de beijá-la, os seus dedos começaram a apertar. Alba julgou que se afogava e empurrou-o com tal violência que conseguiu afastá-lo. Garcia levantou-se do banco e sorriu com zombaria. Tinha manchas vermelhas nas faces e respirava agitadamente. - Gostaste do meu presente? - riu-se. Alba viu-o afastar-se a grandes passadas pelo jardim e sentou-se a chorar. Sentia-se suja e humilhada. Depois correu para casa lavar a boca com sabão e escovar os dentes como se isso pudesse tirar a mancha da sua memória. Quando chegou o tio Jaime para a buscar, pendurou-se do seu pescoço, escondeu a cara na sua camisa e disse-lhe que não queria nenhum presente, porque tinha decidido ir para freira. Jaime desatou a rir com um riso sonoro e fundo que lhe nascia das entranhas e que ela só lhe ouvira em muito poucas ocasiões, porque o tio era um homem taciturno. - Juro-te que é verdade! Vou para freira! - soluçou Alba. - Terias de nascer de novo - respondeu Jaime. - E além disso terias de passar por cima do meu cadáver. Alba não voltou a ver Esteban Garcia até que o teve a seu lado no estacionamento da Universidade, mas nunca pôde esquecê-lo. Não contou a ninguém aquele beijo repugnante nem os sonhos que teve depois, em que ele aparecia como uma besta verde disposta a estrangulá-la com as patas e a asfixiá-la introduzindo-lhe um tentáculo baboso na boca. Recordando tudo isso, Alba descobriu que o pesadelo tinha estado oculto dentro de si anos e que Garcia continuava a ser a besta que a espreitava nas sombras para lhe saltar em cima em qualquer momento da sua vida. Não podia saber que era uma premonição. A Miguel esfumou-se-lhe a decepção e a raiva de que Alba fosse neta do senador Trueba, quando pela segunda vez a viu deambular como alma perdida pelos corredores próximos da cafetaria onde se tinham conhecido. Decidiu que era injusto culpar a neta pelas ideias do avô e voltaram a passear abraçados. Em pouco tempo os beijos intermináveis tornaram-se insuficientes e começa-ram a encontrar-se no quarto onde vivia Miguel. Era uma pensão medíocre para estudantes pobres, dirigida por um casal de meia-idade com vocação para a espionagem. Observavam Alba com mal disfarçada hostilidade quando subia de mão dada com Miguel ao seu quarto e para ela era um suplício vencer a timidez e enfrentar a crítica desses olhares que lhe estragavam a felicidade do encontro. Para os evitar preferia outras alternativas, mas também não aceitava a ideia de irem juntos a um hotel, pela mesma razão que não queria ser vista na pensão de Miguel. - És a pior burguesa que conheço! - ria-se Miguel. Às vezes ele conseguia uma moto emprestada e escapavam-se umas horas, viajando a uma velocidade suicida, cavalgando a máquina, com as ore-lhas geladas e o coração ansioso. Gostavam de ir no Inverno às praias solitá-rias, andar sobre a areia molhada deixando as pegadas que a água lambia, espantar as gaivotas e respirar às golfadas o ar do mar. No Verão preferiam os bosques mais densos, onde podiam amar-se impunemente depois de iludirem as crianças exploradoras e os excursionistas. Alba depressa descobriu que o lugar mais seguro era a sua própria casa, porque no labirinto e no abandono dos quartos traseiros, onde ninguém entrava, podiam amar-se sem perturbações. - Se as criadas ouvem ruídos, pensarão que voltaram os fantasmas - disse Alba e contoulhe o glorioso passado dos espíritos visitantes e das mesas voadoras da grande casa da esquina. A primeira vez que o conduziu através da porta traseira do jardim, abrin-do passagem no matagal e desviando-se das estátuas manchadas de musgo e cagadelas de pássaro, o jovem teve um sobressalto ao ver o triste casarão. «Eu estive aqui antes», murmurou, mas não pôde recordar, porque aquela selva de pesadelo e a lúgubre mansão só vagamente se assemelhavam com a imagem luminosa que guardara desde a infância. Os apaixonados experimentaram um por um os quartos abandonados e terminaram improvisando um ninho para os seus amores furtivos nas profundidades da cave. Havia vários anos que Alba não entrava ali e chegou a esquecer a sua existência, mas no momento em que abriu a porta e respirou o inconfundível odor tornou a sentir a mágica atracção de antes. Usaram os trastes, os caixotes, a edição do livro do tio Nicolau, os móveis e os cortinados de outros tempos para arranjar um surpreendente quarto nupcial. No centro, improvisaram uma cama com vários colchões que cobriram com pedaços de veludo roído pela traça. Dos baús extraíram incontáveis tesouros. Fizeram lençóis com velhas cortinas de damasco cor de topázio, descoseram um sump-tuoso vestido de renda de Chantilly que usou Clara no dia em que morreu Barrabás, para fazer um mosquiteiro cor do tempo que os protegesse das ara-nhas que desciam do tecto. Alumiavam-se com velas e ignoravam os pequenos roedores, o frio e aquele cheiro de além-túmulo. Andavam nus no crepúsculo eterno da cave, desafiando a humidade e as correntes de ar. Bebiam vinho branco em taças de cristal que Alba subtraiu da sala de jantar e faziam um minucioso inventário dos seus corpos e das múltiplas possibilidades do prazer. Brincavam como crianças. Ela tinha dificuldade em reconhecer nesse jovem enamorado e doce que ria e brincava numa incansável bacanal, o revolucio-nário ávido de justiça que aprendia, em segredo, o uso das armas de fogo e as estratégias revolucionárias. Alba inventava irresistíveis truques de sedução e Miguel criava novas e maravilhosas formas de amá-la. Estavam deslumbrados pela força da sua paixão, que era como feitiço de sede insaciável. Não chega-vam as horas nem as palavras para dizerem um ao outro os mais íntimos pensamentos e as mais remotas recordações, numa ambiciosa tentativa de se possuírem mutuamente até à última estrofe. Alba descuidou o violoncelo, excepto para o tocar nua sobre o leito de topázio, e assistia às aulas na Universidade com ar alucinado. Miguel também pôs a tese de lado e as suas reuniões políticas, porque necessitavam estar juntos a toda a hora e aprovei-tavam a menor distracção dos habitantes da casa para deslizarem para a cave. Alba aprendeu a mentir e a dissimular. Com o pretexto de estudar de noite deixou o quarto que compartilhava com a mãe desde a morte da avó e insta-lou-se num quarto do primeiro andar que dava para o jardim, para poder abrir a janela a Miguel e levá-lo em bicos de pés através da casa adormecida até à guarida encantada. Mas não se juntavam só à noite. A impaciência do amor era por vezes tão intolerável, que Miguel se arriscava a entrar de dia, arras-tando-se por entre o mato, como um ladrão, até à porta da cave, onde o espe-rava Alba com o coração preso por um fio. Abraçavam-se com o desespero de uma despedida e escapuliam-se para o seu refúgio sufocados de cumplicidade. Pela primeira vez na sua vida, Alba sentiu a necessidade de ser formosa e lamentou que nenhuma das esplêndidas mulheres da sua família lhe tivesse legado os seus atributos, e a única que o fez, a bela Rosa, só lhe deu o tom de algas marinhas ao seu cabelo, o qual, se não ia acompanhado por tudo o resto, parecia mais um erro de cabeleireiro. Quando Miguel adivinhou a sua inquietação, levou-a pela mão até ao grande espelho veneziano que adornava um canto da sua câmara secreta, sacudiu o pó do cristal quebrado, e depois acendeu todas as velas que tinha e pô-las à sua volta. Ela olhou-se nos mil pedaços partidos do espelho. A sua pele, iluminada pelas velas, tinha a cor irreal das figuras de cera. Miguel começou a acariciála e ela viu transformar-se o seu rosto no caleidoscópio do espelho e aceitou finalmente que era a mais bela de todo o universo, porque pôde ver-se com os olhos com que Miguel a olhava. Aquela orgia interminável durou mais de um ano. Por fim, Miguel termi-nou a sua tese, licenciou-se e começou a procurar trabalho. Quando passou a premente necessidade do amor insatisfeito, puderam recuperar a compostura e normalizar as suas vidas. Ela fez um esforço para se interessar outra vez pelos estudos e ele voltou-se novamente para a sua acção política, porque os acontecimentos estavam a precipitar-se e o país estava dividido pelas lutas ideológicas. Miguel alugou um pequeno apartamento perto do seu trabalho, onde se juntavam para se amar, porque no ano que passaram nus brincando na cave contraíram ambos uma bronquite crónica que retirava uma boa parte do encanto ao seu paraíso subterrâneo. Alba ajudou a decorá-lo, pondo almo-fadões e cartazes políticos por todos os lados e até chegou a sugerir que poderia ir viver com ele, mas nesse ponto Miguel foi inflexível. - Avizinham-se tempos muito maus, meu amor - explicou. - Não posso ter-te comigo, porque quando for necessário entrarei na guerrilha. - Irei contigo para onde quer que vás - prometeu ela. - Para aí não se vai por amor, mas por convicção política e tu não a tens - replicou Miguel. - Não podemos dar-nos ao luxo de aceitar diletantes. A Alba aquilo pareceu-lhe brutal e tiveram de passar alguns anos para que pudesse compreendê-lo em toda a sua magnitude. O senador Trueba já estava em idade de se retirar, mas essa ideia não lhe passava pela cabeça. Lia o jornal do dia e resmungava entre dentes. As coisas tinham mudado muito nesses anos e sentia que os acontecimentos o ultrapassavam, porque não pensou que fosse viver tanto que os tivesse de enfrentar. Tinha nascido quando não existia a luz eléctrica na cidade e tinhalhe sido dado ver pela televisão um homem passeando na Lua, mas nenhum dos sobressaltos da sua longa vida o tinham preparado para enfrentar a revolução que estava nascer no seu país, nas suas barbas, e que trazia toda a gente perturbada. Jaime era o único que não falava do que se estava a passar. Para evitar discussões com o pai adquirira o hábito do silêncio e depressa descobriu que era mais cómodo não falar. As poucas vezes que abandonava o seu laconismo trapista era quando Alba ia visitá-lo no seu túnel de livros. A sua sobrinha chegava em camisa de dormir, com o cabelo molhado depois do duche, e sentava-se aos pés da sua cama a contar-lhe assuntos felizes, porque, tal como ela dizia, ele era um íman para atrair os problemas alheios e as misérias irremediáveis, e era necessário que alguém o pusesse em dia sobre a Prima-vera e o amor. As suas boas intenções desfaziam-se com a urgência de discutir com o seu tio tudo o que a preocupava. Nunca estavam de acordo. Partilha-vam os mesmos livros, mas na hora de analisar o que haviam lido, tinham opiniões totalmente contrárias. Jaime ria-se das suas ideias políticas, dos seus amigos barbudos e repreendia-a por se ter enamorado por um terrorista de café. Era o único em casa que conhecia a existência de Miguel. - Diz a esse ranhoso que venha um dia trabalhar comigo no hospital, para ver se fica com vontade de andar a perder tempo com panfletos e discursos - dizia a Alba. - É advogado, tio, não é médico - respondia ela. - Não importa. Lá precisamos de qualquer coisa. Até um canalizador nos serve. Jaime estava seguro de que os socialistas triunfariam finalmente, depois de tantos anos de luta. Atribuía-o a que o povo tinha tomado consciência das suas necessidades e da sua própria força. Alba repetia as palavras de Miguel, que só através da guerra se podia vencer a burguesia. Jaime tinha horror a qualquer forma de extremismo e sustentava que os guerrilheiros só se justi-ficavam nas tiranias, onde não há outro remédio senão batel se a tiro, mas que são uma aberração num pais onde as mudanças se podem obter por votação popular. - Isso nunca aconteceu, tio, não sejas ingénuo – respondia Alba. - Jamais deixarão que ganhem os teus socialistas! Ela tentava explicar o ponto de vista de Miguel: que não se podia conti-nuar à espera do passo lento da história, do laborioso processo de educar o povo e organizá-lo, porque o mundo avançava por saltos e eles ficavam para trás, que as mudanças radicais nunca se implantavam a bem e sem violên-cias. A história demonstrava-o. A discussão prolongava-se e ambos se perdiam numa oratória confusa que os deixava esgotados, acusando-se mutuamente de ser mais teimosos que um burro mas no fim davam as boas noites com um beijo e ficavam ambos com a sensação de que o outro era um ser maravilhoso. Um dia à hora do jantar, Jaime anunciou que ganhariam os socialistas, mas como há vinte anos previa o mesmo, ninguém o acreditou. - Se a tua mãe estivesse viva, diria que vão ganhar os de sempre - respondeu-lhe o senador Trueba desdenhosamente. Jaime sabia por que o dizia. Tinha-lho dito o Candidato. Havia muitos anos que eram amigos e Jaime ia frequentemente jogar xadrez com ele à noite. Era o mesmo socialista que pretendia a Presidência da República desde há dezoito anos. Jaime tinha-o visto pela primeira vez às cavalitas do seu pai, quando passava no meio de uma nuvem de fumo nos comboios do triunfo, durante as campanhas eleitorais da sua adolescência. Naqueles tempos, o Candidato era um homem jovem e robusto, com faces de perdigueiro, que gritava exaltados discursos entre os apupos e os assobios dos patrões e o silêncio raivoso dos camponeses. Era a época em que os irmãos Sánchez penduraram na cruz dos caminhos o dirigente socialista e que Esteban Trueba chicoteou Pedro Tercero Garcia diante do pai, por repetir aos caseiros as perturbadoras versões bíblicas do padre Josè Dulce Maria. A sua amizade com o Candidato nasceu por casualidade, um domingo à noite em que o mandaram do hospital atender uma emergência ao domicilio. Chegou à direcção indicada numa ambulância de serviço, tocou a campainha e o Candidato em pessoa abriu a porta. Jaime não teve dificuldade em reconhecêlo, porque tinha visto o seu retrato muitas vezes e porque não tinha mudado desde que o vira passar no comboio. - Passe, doutor, estamos à sua espera - saudou o Candidato. Levou-o a um quarto de serviço, onde as filhas tentavam ajudar uma mulher que parecia asfixiar-se, tinha a cara arroxeada, os olhos esbugalhados e uma língua monstruosamente inchada que lhe saía para fora da boca. - Comeu peixe - explicaram-lhe. - Tragam o oxigénio que está na ambulância - disse Jaime enquanto preparava uma seringa. Ficou com o Candidato, os dois sentados ao lado da cama até que a mulher começou a respirar normalmente e conseguiu meter a língua dentro da sua boca. Falaram do socialismo e de xadrez e esse foi o começo de uma boa amizade. Jaime apresentou-se com o apelido da mãe, que sempre usava, sem pensar que no dia seguinte os serviços de segurança do Partido entregariam ao outro a informação de que era filho do senador Trueba, o seu maior inimigo político. O Candidato, no entanto, nunca o mencionou, e até à hora final, quando ambos apertaram a mão pela última vez no fragor do incêndio e das balas, Jaime perguntava-se se alguma vez teria a coragem de lhe dizer a verdade. A sua longa experiência da derrota e o seu conhecimento do povo permitiram ao Candidato ver antes de ninguém que dessa vez ia ganhar. Disse-o a Jaime e acrescentou que a palavra de ordem era não o divulgar, para que a direita se apresentasse às eleições segura do triunfo, arrogante e dividida. Jaime respondeu que, mesmo que o dissessem a toda a gente, ninguém o ia acreditar, nem os próprios socialistas, e para ter a prova disse-o ao pai. Jaime continuou a trabalhar catorze horas por dia, inclusive aos domin-gos, sem participar na contenda política. Estava acobardado pelo rumo violen-to daquela luta, que polarizava as forças em dois extremos, deixando ao centro só um grupo indeciso e volúvel, que esperava ver perfilar-se o vencedor para votar por ele. Não se deixou provocar pelo pai, que aproveitava todas as ocasiões em que estavam juntos para o advertir das manobras do comunismo internacional e do caos que cairia sobre a pátria no caso improvável em que triunfasse a esquerda. A única vez que Jaime perdeu a paciência foi quando uma manhã encontrou a cidade forrada de cartazes truculentos onde aparecia uma mãe barriguda e desolada, que tentava inutilmente arrebatar o seu filho a um soldado comunista que o levava para Moscovo. Era a campanha de terror organizada pelo senador Trueba e pelos seus correligionários, com ajuda de especialistas estrangeiros importados especialmente para esse fim. Aquilo foi demasiado para Jaime. Decidiu que não podia viver debaixo do mesmo tecto que o pai, fechou o seu túnel, levou a sua roupa e foi dormir para o hospital. Os acontecimentos precipitaram-se nos últimos meses antes das eleições. Em todas as paredes havia retratos dos candidatos, atiraram panfletos do ar com aviões e taparam as ruas com um lixo impresso que caía como neve do céu, os rádios uivavam palavras de ordem e faziam-se as apostas mais desca-beladas entre os partidários de cada bando. De noite os jovens saiam em grupos para tomar de assalto os seus inimigos ideológicos. Organizaram-se concentrações multipartidárias para medir a popularidade de cada partido, e com cada uma atochava-se a cidade e apinhavam-se as pessoas em igual número. Alba estava eufórica, mas Miguel explicou-lhe que as eleições eram uma palhaçada e fosse qual fosse o vencedor vinha a dar no mesmo, porque se tratava da mesma seringa com cânula diferente e que a revolução não se podia fazer nas urnas eleitorais, mas com o sangue do povo. A ideia de uma revolução pacífica em democracia e com plena liberdade era um contra-senso. - Esse pobre rapaz está louco! - exclamou Jaime quando Alba lho contou. - Vamos ganhar e terá de engolir o que disse. Até esse momento, Jaime tinha conseguido evitar Miguel. Não queria conhecê-lo. Secretos e inconfessáveis ciúmes atormentavam-no. Tinha ajuda-do Alba a nascer e tinha-a tido mil vezes sentada nos joelhos, tinha-lhe ensi-nado a ler, tinha-lhe pago o colégio e festejado todos os seus aniversários, sentia-se como seu pai e não podia evitar a inquietação que lhe causava vê-la uma mulher. Tinha-lhe notado a mudança nos últimos anos e enganavase com falsos argumentos, apesar de que a sua experiência cuidando de outros seres lhe tinha ensinado que só o conhecimento do amor pode dar esse esplendor a uma mulher. Da noite para o dia tinha visto Alba amadurecer, abandonando as formas imprecisas da adolescência, para se acomodar no seu novo corpo de mulher satisfeita e aprazível. Esperava com absurda veemência que a paixão da sobrinha fosse um sentimento passageiro porque no fundo não queria aceitar que precisasse de outro homem além dele. No entanto, não pôde continuar a ignorar Miguel. Por esses dias, Alba contou-lhe que a irmã dele estava doente. - Quero que fales com Miguel, tio. Ele vai-te contar o que se passa com a irmã. Farias isso por mim? - pediu Alba. Quando Jaime conheceu Miguel, num café do bairro, todas as suas sus-peitas não puderam impedir que uma onda de simpatia lhe fizesse esquecer o seu antagonismo, porque o homem que tinha na frente mexendo nervosa-mente o café não era o extremista petulante e brigão que esperava, mas um jovem comovido e trémulo, que enquanto explicava os sintomas da doença da irmã, lutava contra as lágrimas que lhe enevoavam os olhos. - Leva-me a vê-la - disse Jaime. Miguel e Alba levaram-no ao bairro boémio. Em pleno centro, a escassos metros dos edifícios modernos de aço e vidro, tinham surgido na encosta de uma colina as ruas íngremes dos pintores, ceramistas, escultores. Tinham feito ali as suas tertúlias dividindo as antigas casas em minúsculos estúdios. As oficinas dos artesãos abriam-se ao céu pelos tectos de vidro e nas obscuras pocilgas sobreviviam os artistas num paraíso de grandezas e misérias. Nas ruelas brincavam crianças satisfeitas, mulheres formosas de grandes túnicas carregavam os filhos às costas ou escarranchadas nas ancas e os homens barbudos, sonolentos, indiferentes, viam passar a vida sentados nas esquinas e nos umbrais das portas. Pararam em frente de uma casa estilo francês decorada como uma torta de creme com anjinhos nos frisos. Subiram uma escada estreita, construída como saída de emergência em caso de incêndio, e que as numerosas divisões do edifício tinha transformado no único acesso. À medida que subiam, a escada dobrava-se sobre si mesma e envolvia-os um penetrante odor a alho, marijuana e terebintina. Miguel parou no último piso, em frente de uma porta estreita pintada de cor de laranja, tirou uma chave e abriu-a. Jaime e Alba julgaram entrar numa gaiola de pássaros. O quarto era redondo, coroado por uma absurda cúpula bizantina e rodeado de vidros, através dos quais se podia passear a vista pelos telhados da cidade e sentir-se muito perto das nuvens. Os pombos tinham feito o ninho no peitoril das janelas e contribuído com os seus excrementos e as suas penas para o jaspeado dos vidros. Sentada numa cadeira à frente da única mesa, havia uma mulher de roupão adornado com um triste dragão em fiapos bordado sobre o peito. Jaime necessitou de alguns segundos para reconhecê-la. - Amanda... Amanda... - balbuciou. Não tinha voltado a vê-la há mais de vinte anos, quando o amor que ambos sentiam por Nicolau pôde mais que o que tinham um pelo outro. Nesse tempo o jovem atlético, moreno, com o cabelo cheio de brilhantina e sempre húmido, que se passeava lendo em alta voz os seus tratados de medicina, tinha-se transformado num homem ligeiramente curvado pelo hábito de se inclinar sobre as camas dos doentes, com o cabelo grisalho, um rosto grave e pesado, lentes com aros metálicos, mas basicamente era a mesma pessoa. No entanto, para reconhecer Amanda, era preciso tê-la amado muito. Parecia mais velha do que era, estava muito magra, quase esquelética, a sua pele macilenta e amarela, as mãos muito descuidadas, com os dedos enegrecidos de nicotina. Os seus olhos estavam inchados, sem brilho, avermelhados, com as pupilas dilatadas, o que lhe dava um aspecto desamparado e aterrorizado. Não viu Jaime nem Alba, só teve olhos para Miguel. Tentou levantar-se, tropeçou e cambaleou. O irmão aproximou-se e segurou-a, apertando-a contra o peito. - Conheciam-se? - perguntou Miguel admirado. - Sim, há muito tempo - disse Jaime. Pensou que era inútil falar do passado e que Miguel e Alba eram muito jovens para compreender a sensação de perda irremediável que ele sentia nesse momento. De uma penada tinha-se apagado a imagem da cigana que tinha guardado todos aqueles anos no coração, único amor na solidão do seu destino. Ajudou Miguel a estender a mulher no divã que lhe servia de cama e ajeitou-lhe a almofada. Amanda segurou o roupão com as mãos, defendendo-se debilmente e balbuciando incoerências. Estava sacudida por tremores convulsivos e ofegava como cão cansado. Alba observou-a horrorizada e só quando Amanda ficou deitada, quieta e de olhos fechados, é que reconheceu a mulher que sorria na pequena fotografia que Miguel trazia sempre na sua carteira. Jaime falou-lhe com uma voz desconhecida e a pouco e pouco conseguiu tranquilizá-la, acariciou-a com gestos ternos e paternais, como os que fazia às vezes aos animais até que a doente se descontraiu e permitiu que lhe subissem as mangas do velho roupão chinês. Apareceram os braços esqueléticos, e Alba viu que tinha milhares de minúsculas cicatrizes, nódoas negras, picadelas, algumas infectadas e deitando pus. Destapou depois as pernas, as coxas estavam também torturadas. Jaime observou-a com tristeza, compreendendo nesse instante o abandono, os anos de miséria, os amores frustrados e o terrível caminho que aquela mulher tinha percorrido até chegar ao ponto de desespero em que se encontrava. Recordou-a como era na sua juventude, quando o deslumbrava com o esvoaçar do seu cabelo, o tilintar das missangas, o seu riso de sino e a sua candura para abraçar ideias disparatadas e perseguir ilusões. Amaldiçoou-se por tê-la deixado ir e por todo esse tempo perdido para ambos. - Temos de interná-la. Só uma cura de desintoxicação poderá salvá-la - disse. - Vai sofrer muito - acrescentou. Capítulo XII A Conspiração Tal como o Candidato tinha previsto, os socialistas, aliados com o resto dos partidos de esquerda, ganharam as eleições presidenciais. O dia da votação decorreu sem incidentes numa luminosa manhã de Setembro. Os de sempre, acostumados ao poder desde tempos imemoriais, ainda que nos últimos anos tivessem visto as suas forças debilitar-se muito, prepararam-se para celebrar o triunfo com semanas de antecipação. Nas lojas acabaram-se as bebidas, nos mercados esgotaram-se os mariscos frescos e as pastelarias trabalharam em dois turnos para satisfazer a procura de tortas e pastéis. No Bairro Alto não se alarmaram ao ouvir os resultados dos escrutínios parciais nas províncias, que favoreciam a esquerda, porque toda a gente sabia que os votos da capital eram decisivos. O senador Trueba seguiu a votação na sede do seu Partido, com perfeita calma e bom humor, rindo-se com petulância quando algum dos seus homens se punha nervoso com o avanço indissimu-lável do candidato da oposição. Antecipando-se ao triunfo, tinha quebrado o seu luto rigoroso pondo uma rosa vermelha na lapela do casaco. Entrevis-taram-no na televisão e todo o pais pôde escutá-lo: «Ganharemos nós, os de sempre», disse com soberba, e logo convidou a um brinde pelo «defensor da democracia». Na grande casa da esquina, Blanca, Alba e os criados estavam em frente do televisor, bebendo chá, comendo torradas e anotando os resultados para seguir de perto a corrida final, quando viram aparecer o avô no écran, mais velho e teimoso do que nunca. - Vai dar-lhe um fanico - disse Alba. - Porque desta vez vão ganhar os outros. Depressa se tornou evidente para todos que só um milagre mudaria o resultado que se ia desenhando ao longo do dia. Nas residências senhoriais brancas, azuis e amarelas do Bairro Alto, começaram a fechar as persianas, a trancar as portas e a retirar apressadamente as bandeiras e os retratos do seu candidato, que se tinham antecipado a pôr nas varandas. Entretanto, das povoações suburbanas e dos bairros operários saíram para a rua famílias inteiras, pais, filhos, avós, com a sua roupa de domingo, caminhando alegre-mente na direcção do centro. Levavam rádios portáteis para ouvir os últimos resultados. No Bairro Alto, alguns estudantes, inflamados de idealismo, fizeram troça dos pais reunidos à volta do televisor com expressão fúnebre, e lançaram-se também para a rua. Das cinturas industriais chegaram trabalha-dores em ordenadas colunas, com os punhos no ar cantando os versos da campanha. Juntaram-se todos no centro, gritando como um só homem que o povo unido jamais será vencido. Puxaram-se de lenços brancos e esperaram. À meia-noite soube-se que tinha ganho a esquerda. Num abrir e fechar de olhos, os grupos dispersos engrossaram, incharam, estenderam-se e as ruas enche-ram-se de gente eufórica que saltava, gritava, se abraçava e ria. Ataram tochas e a desordem das vozes e o vaivém da rua transformou-se numa alegre e disciplinada comitiva que começou a avançar até às bonitas avenidas da burgue-sia. E então viu-se o espectáculo inédito da gente do povo, homens com os sapatorros da fábrica, mulheres com os filhos nos braços, estudantes em man-gas de camisa, passeando tranquilamente pela zona reservada e preciosa onde muito poucas vezes se tinham aventurado e onde eram estrangeiros. O clamor dos seus cantos, das suas passadas e o resplendor das tochas penetraram no interior das casas fechadas e silenciosas, onde tremiam os que tinham acabado por acreditar na sua própria campanha de terror e estavam convencidos de que a populaça os ia despedaçar ou, na melhor das hipóteses, despojá-los dos bens e mandá-los para a Sibéria. Mas a multidão ululante não forçou nenhuma porta nem pisou os jardins impecáveis. Passou alegremente sem tocar nos veículos de luxo estacionados na rua, deu voltas pelas praças e parques que nunca tinha pisado, deteve-se maravilhada diante das vitrinas do comércio, que brilhavam como no Natal e onde se ofereciam objectos que não se sabia sequer que uso tinham, e seguiu a sua rota aprazivelmente. Quando as colunas passaram à frente da sua casa, Alba saiu correndo e misturou-se com elas cantando em voz alta. Nas mansões, as garrafas de champagne ficaram fechadas, as lagostas amoleceram nas suas bandejas de prata e as tortas encheram-se de moscas. Ao amanhecer, Alba viu na multidão que já começava a dispersar a inconfundível figura de Miguel, que ia a gritar com uma bandeira nas mãos. Abriu passagem até ele, chamando-o inutilmente, porque não podia ouvi-la no meio da algazarra. Quando chegou à frente dele e Miguel a viu, passou a bandeira ao que estava mais perto e abraçou-a, levantando-a do chão. Os dois estavam no limite das suas forças e, enquanto se beijavam, choravam de alegria. - Disse-te que ganharíamos às boas, Miguel! - riu Alba. - Ganhámos, mas agora há que defender o triunfo - replicou. No dia seguinte, os mesmos que tinham passado a noite de vela aterrorizados nas suas casas saíram como uma avalancha enlouquecida e tomaram de assalto os bancos, exigindo que lhes entregassem o seu dinheiro. Os que tinham algo valioso, preferiam guardá-lo debaixo do colchão ou enviá-lo para o estrangeiro. Em vinte e quatro horas, o valor da propriedade diminuiu para menos de metade e todas as passagens aéreas se esgotaram na loucura de sair do pais antes que chegassem os soviéticos a pôr arame farpado na fronteira. O povo que tinha desfilado triunfante foi ver a burguesia que fazia bicha e lutava às portas dos bancos e riu às gargalhadas. Em poucas horas o pais dividiu-se em dois grupos irreconciliáveis e a divisão começou a estender-se a todas as famílias. O senador Trueba passou a noite na sede do Partido, retido à força pelos seus seguidores, que estavam seguros que se saísse à rua a multidão não ia ter dificuldade nenhuma em reconhecê-lo e pendurá-lo-ia num poste. Trueba estava mais surpreendido que furioso. Não podia acreditar no que tinha acontecido, apesar de ter passado muitos anos repetindo a cantilena de que o pais estava cheio de marxistas. Não se sentia deprimido, pelo contrário. No seu velho coração de lutador despertava uma emoção exaltada que não sentia desde a juventude. - Uma coisa é ganhar as eleições e outra muito distinta é ser presidente - disse misteriosamente aos seus chorosos correligionários. A ideia de eliminar o novo Presidente, no entanto, não estava ainda na mente de ninguém, porque os seus inimigos estavam seguros que acabariam com ele pela mesma via legal que lhe tinha permitido triunfar. Isso era o que Trueba estava pensando. No dia seguinte, quando foi evidente que não havia que temer a multidão festiva, saiu do seu refúgio e dirigiu-se a uma casa de campo nos arredores da cidade, onde houve um almoço secreto. Ali se juntou com outros políticos, alguns militares e com os gringos enviados pelo serviço de inteligência, para traçar o plano que derrubaria o novo governo: a desestabilização económica, como chamaram à sabotagem. Era um casarão de estilo colonial rodeado por um pátio de paralelipí-pedos. Quando o senador Trueba chegou, já havia vários carros estacionados. Receberam-no efusivamente, porque era um dos chefes indiscutíveis da direita e porque ele, prevendo o que se avizinhava, tinha feito os contactos neces-sários com meses de antecipação. Depois da refeição: corvina fria com molho de abacate, leitão assado em brande e musse de chocolate, despediram os criados e trancaram as portas do salão. Ali traçaram em grandes linhas a sua estratégia e depois, de pé, fizeram um brinde pela pátria. Todos eles, menos os estrangeiros, estavam dispostos a arriscar metade da sua fortuna pessoal na empresa, mas só o velho Trueba estava disposto a dar também a vida. - Não o deixaremos em paz nem um minuto. Terá de renunciar - disse com firmeza. - E se isso não resultar, Senador, temos isto – acrescentou o general Hurtado pondo a arma do regulamento sobre a toalha. - Não nos interessa um golpe militar, general - respondeu o agente da embaixada no seu correcto castelhano. – Queremos que o marxismo fracasse estrondosamente e caia por si, para tirar essa ideia da cabeça de outros países do continente. Compreende? Este assunto vamos resolvê-lo com dinheiro. Ainda podemos comprar alguns parlamentares para que não o confirmem como presidente. Está na sua Constituição: não obteve a maioria absoluta e o Parlamento deve decidir. - Tire essa ideia da cabeça, mister! - exclamou o senador Trueba. - Aqui não se vai conseguir subornar ninguém! O Congresso e as Forças Armadas são incorruptíveis. É melhor destinar esse dinheiro para comprar todos os meios de comunicação. Assim poderemos manejar a opinião pública, que é a única coisa que na realidade conta. - Isso é uma loucura! A primeira coisa que os marxistas vão fazer é acabar com a liberdade de imprensa! - disseram várias vozes em uníssono. - Acreditem-me cavalheiros - respondeu o senador Trueba. - Eu conheço este país. Nunca acabarão com a liberdade de imprensa. Além disso, está no seu programa de governo, jurou respeitar as liberdades democráticas. Apanhá-lo-emos na sua própria armadilha. O senador Trueba tinha razão. Não conseguiram subornar os parlamen-tares e no prazo estipulado pela lei a esquerda assumiu tranquilamente o poder. E então a direita começou a juntar ódios. Depois das eleições, mudou a vida de toda a gente e os que pensaram que podiam continuar como sempre, depressa verificaram que isso era uma ilusão. Para Pedro Tercero Garcia a mudança foi brutal. Tinha vivido evitando as armadilhas da rotina, livre e pobre como um trovador errante, sem ter usado nunca sapatos de cabedal, gravata nem relógio, dando-se ao luxo da ternura, da pureza, da boémia e das sestas, porque não tinha que prestar contas a ninguém. Cada vez lhe dava mais trabalho encontrar a inquietação e a dor necessárias para compor uma nova canção, porque com os anos tinha chegado a ter uma grande paz interior e a rebeldia que o mobilizava na juventude tinha-se transformado na mansidão do homem satisfeito consigo mesmo. Era austero como um franciscano. Não tinha nenhuma ambição de dinheiro ou de poder. A única mancha na sua tranquilidade era Blanca. Tinha-lhe deixado de interessar o amor sem futuro das adolescentes e tinha adquirido a certeza de que Blanca era a única mulher para ele. Contou os anos que a tinha amado clandestinamente e não pôde recordar nem um momento da vida em que ela não tivesse estado presente. Depois das eleições presidenciais viu o equilíbrio da sua existência destroçado pela urgência de colaborar com o governo. Não pôde negar-se, porque, como lhe explicaram, os partidos de esquerda não tinham suficientes homens capacitados para todas as funções que havia que desempenhar. - Eu sou um camponês. Não tenho nenhuma preparação – tentou escusar-se. - Não importa, companheiro. Você, pelo menos, é popular. Mesmo que meta a pata na poça, nós perdoamos-lhe - responderam. Foi assim que se viu sentado detrás duma mesa de trabalho pela primeira vez na sua vida, com uma secretária para seu uso pessoal e nas suas costas um grandioso retrato dos próceres da Pátria nalguma honrosa batalha. Pedro Tercero Garcia olhava pela janela gradeada do seu luxuoso escritório e só podia ver um minúsculo quadrilátero de céu cinzento. Não era um cargo honorifico. Trabalhava desde as sete da manhã até à noite e no fim estava tão cansado, que não se sentia capaz de arrancar nem um acorde da guitarra e muito menos de amar Blanca com a paixão do costume. Quando se podiam encontrar, vencendo todos os obstáculos habituais de Blanca, mais os novos que o trabalho lhe impunha, encontravam-se entre os lençóis com mais angústia que desejo. Faziam amor fatigados, interrompidos pelo telefone, perseguidos pelo tempo, que nunca lhes chegava. Blanca deixou de usar a sua roupa interior de jovem, porque lhe parecia uma provocação inútil que os fazia cair no ridículo. Acabaram por se juntar para repousar abraçados, como um par de avós e para conversar amigavelmente sobre os seus problemas quotidianos e sobre os graves assuntos que faziam tremer a nação. Um dia, Pedro Tercero concluiu que quase há um mês não faziam amor e, o que lhe pareceu ainda pior, que nenhum dos dois sentia desejo de o fazer. Teve um sobressalto. Calculou que na sua idade não havia razão para a impotência e atribuiu o facto à vida que levava e aos hábitos de solteirão que tinha adquirido. Supôs que se fizesse uma vida normal com Blanca, em que ela o estivesse esperando todos os dias na paz de um lar, as coisas passar-se-iam de outra maneira. Impôs-lhe casarem-se de uma vez por todas, porque já estava farto daqueles amores furtivos e já não tinha idade para viver assim. Blanca deu-lhe a mesma resposta que lhe tinha dado muitas vezes antes. - Tenho de pensar nisso, meu amor. Estava nua, sentada na cama estreita de Pedro Tercero. Ele observou-a sem piedade e viu que o tempo começava a devastá-la com os seus estragos, estava mais gorda, mais triste, tinha as mãos deformadas pelo reumatismo e os maravilhosos seios que noutro tempo lhe tiravam o sono, estavam a tornar-se um amplo regaço de matrona instalada em plena maturidade. No entanto, achava-a tão bela como na juventude, quando se amavam entre as canas do rio em Las Tres Marias, e justamente por isso lamentava que a fadiga fosse mais forte que a paixão. - Pensaste nisso quase meio século. Já basta. É agora ou nunca - concluiu. Blanca não se alterou, porque não era a primeira vez que ele a intimava a tomar uma decisão. Sempre que rompia com uma das suas jovens amantes e voltava para o seu lado, exigia-lhe casamento, numa busca desesperada de reter o amor e de se fazer perdoar. Quando consentiu em abandonar o bairro operário onde tinha sido feliz durante vários anos, para se instalar num apartamento de classe média, tinha-lhe dito o mesmo. - Ou te casas comigo agora ou nunca mais nos veremos. Blanca não compreendeu que nessa ocasião a determinação de Pedro Tercero era irrevogável. Separaram-se zangados. Ela vestiu-se, apanhando apressadamente a roupa que estava espalhada no chão e enrolou o cabelo na nuca prendendo-o com alguns ganchos que apanhou na desordem da cama. Pedro Tercero acendeu um cigarro e não lhe tirou os olhos de cima enquanto ela se vestia. Blanca acabou de calçar os sapatos, pegou na carteira e da porta fezlhe um gesto de despedida. Estava certa de que no dia seguinte ele lhe telefonaria para uma das suas espectaculares reconciliações. Pedro Tercero virou-se para a parede. Um ricto amargo transformava-lhe a boca numa linha apertada. Não se tornariam a ver durante dois anos. Nos dias que se seguiram, Blanca esperou que ele comunicasse com ela, de acordo com um esquema que se repetia desde sempre. Nunca lhe tinha falhado, nem sequer quando ela se casou e passaram um ano separados. Também nessa ocasião foi ele quem a procurou. Mas ao terceiro dia sem notícias, começou a alarmar-se. Dava voltas na cama, atormentada por uma insónia constante, duplicou a dose de tranquilizantes, tornou a refugiar-se nas suas enxaquecas e nevralgias, atordoando-se na oficina, metendo e tirando do forno centenas de monstros para presépios, num esforço para se manter ocupada e não pensar, mas não conseguiu sufocar a impaciência. Por fim telefonou-lhe para o ministério. Uma voz feminina respondeu-lhe que o companheiro Garcia estava numa reunião e que não podia ser interrompido. No outro dia, Blanca voltou a telefonar e continuou a fazê-lo durante o resto da semana, até que se convenceu de que não conseguiria nada por esse processo. Fez um esforço para vencer o monumental orgulho que herdara do pai, pôs o melhor vestido, o cinto de ligas de renda e foi vê-lo ao apartamento. A sua chave não entrou na fechadura e teve de tocar à campainha. Abriu a porta um homenzarrão de bigodes com olhos de colegial. - O companheiro Garcia não está - disse sem convidá-la a entrar. Então compreendeu que o tinha perdido. Teve a fugaz visão do seu futuro, viu-se num vasto deserto, entregando-se a ocupações sem sentido para consumir o tempo, sem o único homem que tinha amado em toda a sua vida e longe dos braços em que tinha dormido desde os dias memoráveis da sua primeira infância. Sentou-se na escada e rompeu em pranto. O homem de bigodes fechou a porta sem ruído. Não disse a ninguém o que se tinha passado. Alba perguntou por Pedro Tercero e ela respondeu-lhe por evasivas, dizendo-lhe que o novo cargo no governo o ocupava muito. Continuou dando as suas aulas para meninas ociosas e crianças mongolóides e além disso começou a ensinar cerâmica nas povoações suburbanas, onde as mulheres se tinham organizado para aprender novos ofícios e participar, pela primeira vez, na actividade política e social do pais. A organização era uma necessidade, porque ao caminho para o socialis-mo» depressa se converteu num campo de batalha. Enquanto o povo celebrava a vitória deixando crescer o cabelo e as barbas, tratando-se uns aos outros por companheiros, resgatando o folclore esquecido e o artesanato popular e exercendo o seu novo poder em eternas e inúteis reuniões de trabalhadores onde todos falavam ao mesmo tempo e nunca chegavam a nenhum acordo, a direita realizava uma série de acções estratégicas destinadas a destruir a economia e a desprestigiar o governo. Tinha nas suas mãos os meios de difusão mais poderosos, contava com recursos económicos quase ilimitados e com a ajuda dos gringos, que destinaram fundos secretos para o plano de sabotagem. Em poucos meses puderam apreciar-se os resultados. O povo encontrou-se pela primeira vez com dinheiro suficiente para cobrir as suas necessidades básicas e comprar algumas coisas que sempre desejara, mas não o podia fazer, porque os armazéns estavam quase vazios. Tinha começado o desabastecimento, que chegou a ser um pesadelo colectivo. As mulheres levantavam-se ao amanhecer para ficarem de pé nas longas bichas onde podiam comprar um magro frango, meia dúzia de fraldas ou papel higiénico. A graxa para dar lustro aos sapatos, as agulhas e o café passaram a ser artigos de luxo que se ofereciam envoltos em papel de fantasia pelo aniversário. Produziu-se a angústia da escassez, o pais estava sacudido por ondas de rumores contraditórios que alertavam a população sobre os produtos que iam faltar e as pessoas compravam o que houvesse, sem medida, para prevenir o futuro. Estavam nas bichas sem saberem o que se estava a vender, só para não deixarem passar a oportunidade de comprar qualquer coisa, mesmo que não necessitassem. Apareceram profissionais das bichas, que por uma soma razoável guardavam o lugar dos outros, os vendedores de bugigangas que aproveitavam o tumulto para colocar as suas bagatelas e os que alugavam mantas para as bichas nocturnas. Alastrou o mercado negro. A policia tentou impedi-lo, mas era como uma peste que se metia por todos os lados e por muito que revistassem os carros e detivessem os que transportavam volumes suspeitos não o puderam evitar. Até as crianças traficavam nos pátios das escolas. Na pressa de açambarcar produtos, criavam-se confusões e os que nunca tinham fumado acabavam pagando qualquer preço por um maço de cigarros, e os que não tinham filhos lutavam por um boião de comida para lactantes. Desapareceram os acessórios dos fogões, das máquinas industriais, dos automóveis. Racionaram a gasolina e as filas de automóveis podiam durar dois dias e uma noite, bloqueando a cidade como uma gigantesca jibóia imóvel tostando ao sol. Não havia tempo para tantas bichas e os escriturários tiveram de deslocar-se a pé ou de bicicleta. As ruas encheram-se de ciclistas ofegantes, aquilo parecia um delírio de holandeses. As coisas estavam neste pé quando os camionistas se declararam em greve. Na segunda semana foi evidente que não era um assunto laboral, mas político e que não pensavam voltar ao trabalho. O exército quis tomar conta do problema, porque as hortaliças estavam a apodrecer nos campos e nos mercados não havia nada para vender às donas de casa, mas verificou-se que os motoristas tinham estripado os motores e era impossível mover os milhares de camiões que ocupavam as estradas como carcassas fossilizadas. O Presidente apareceu na televisão pedindo paciência. Advertiu o pais de que os camionistas estavam pagos pelo imperialismo e de que iam manter-se em greve indefinidamente, por isso o melhor era cultivar as suas próprias verduras nos pátios e varandas, pelo menos até que se descobrisse outra solução. O povo, que estava habituado à pobreza e que só comia frango nos feriados nacionais e no Natal, não perdeu a euforia do primeiro dia, pelo contrário, organizou-se como para uma guerra, decidido a não permitir que a sabotagem económica lhe amargasse o triunfo. Continuou a celebrar com espírito festivo, a cantar pelas ruas aquilo de que o povo unido jamais será vencido, embora cada vez soasse mais desafinado, porque a divisão e o ódio aumentavam inexoravelmente. A vida do senador Trueba, como a de todos os outros, também mudou. O entusiasmo pela luta que tinha empreendido devolveu-lhe as forças de antigamente e aliviou um pouco a dor dos seus pobres ossos. Trabalhava como nos seus melhores tempos. Fazia múltiplas viagens de conspiração ao estrangeiro e percorria infatigavelmente as províncias do país, de norte a sul, de avião, de automóvel e de comboio, onde se tinha acabado o privilégio das carruagens de primeira classe. Resistia aos truculentos jantares com que o acolhiam os seus partidários em cada cidade, povoado ou aldeia que visitava, fingindo o apetite de um preso, apesar das suas tripas de ancião já não estarem para esses sobressaltos. Vivia em conciliábulos. A principio, o amplo exercício da democracia limitava-o na sua capacidade para pôr armadilhas ao governo, mas depressa abandonou a ideia de o atacar dentro da lei e aceitou o facto de que a única maneira de o vencer era empregar recursos proibidos. Foi o primeiro que se atreveu a dizer em público que para deter o avanço do marxismo só daria resultado um golpe militar, porque o povo não renunciaria ao poder que tinha esperado com ansiedade durante meio século, só porque lhe faltavam os frangos. - Deixem-se de mariquices e peguem nas armas! - dizia quandoouvia falar de sabotagem. As suas ideias não eram nenhum segredo, divulgava-as a todos os ventos e, não contente com isso, ia de vez em quando atirar milho aos cadetes da Escola Militar e gritar-lhes que eram umas galinhas. Tiveram de arranjar um par de guarda-costas que o vigiassem dos seus próprios excessos e esquecia que ele próprio os tinha contratado e ao sentir-se espiado sofria acessos de mau humor, insultava-os, ameaçava-os com a bengala e terminava geralmente sufocado pela taquicardia. Estava certo de que, se alguém se propunha assassiná-lo, esses dois imbecis gorilas não serviriam para o evitar, mas confiava em que a sua presença pelo menos poderia atemorizar os insolentes espontâneos. Tentou também pôr vigilância à sua neta, porque pensava que se movia num antro de comunistas onde em qualquer momento alguém poderia faltar-lhe ao respeito por culpa do parentesco com ele, mas Alba não quis ouvir falar do assunto. «Um rufia contratado é o mesmo que uma confissão de culpa. Eu não tenho nada a temer», alegou. Não se atreveu a insistir porque já estava cansado de lutar com todos os membros da família e no fim de contas, a sua neta era a única pessoa no mundo com quem partilhava a sua ternura e que o fazia rir. Entretanto, Blanca tinha organizado uma cadeia de abastecimento através do mercado negro e das suas ligações nas povoações operária, onde ia ensinar cerâmica às mulheres. Passava muitas angústias e trabalhos para dissimular um pacote de açúcar ou uma caixa de sabão. Chegou a desenvolver uma astúcia de que não se sabia capaz, para armazenar num dos quartos vazios da casa toda a espécie de coisas, algumas francamente inúteis, como dois barris de molho de soja que comprou a uns chineses. Tapou a janela do quarto, pôs cadeado na porta e andava com as chaves à cintura, sem as tirar nem para tomar banho, porque desconfiava de todos, mesmo de Jaime e da sua própria filha. Não lhe faltavam razões. «Pareces um carcereiro, mamã», dizia Alba, alarmada por essa mania de prevenir o futuro à custa de amargar o presente. Alba era de opinião de que se não havia carne, comiam-se batatas, e se não havia sapatos, usavam-se alpergatas, mas Blanca, horrorizada com a simplicidade da filha, sustentava a teoria de que, aconteça o que acontecer, não se devia baixar de nível, com o que justificava o tempo gasto nas suas argúcias de contrabandista. Na realidade, nunca tinham vivido melhor desde a morte de Clara, porque pela primeira vez havia alguém na casa que se preocupava com a organização doméstica e dispunha do que ia parar à panela. De Las Tres Marias chegavam regularmente caixotes de alimentos que Blanca escondia. A primeira vez apodreceu quase tudo e a pestilência saiu dos quartos fechados, ocupou a casa e espalhou-se pelo bairro. Jaime sugeriu à irmã que desse, trocasse ou vendesse os produtos perecíveis, mas Blanca negou-se a compartilhar os seus tesouros. Alba compreendeu então que a mãe, que até então parecia ser a única pessoa equilibrada da família, também tinha as suas próprias loucuras. Abriu um buraco na parede da despensa, por onde tirava à mesma medida que Blanca armazenava. Aprendeu a fazê-lo com tanto cuidado para que não se notasse, roubando o açúcar, o arroz e a farinha com chávenas, partindo os queijos e espalhando as frutas secas para que parecesse obra de ratos, que Blanca demorou mais de quatro meses a suspeitar. Então fez um inventário escrito do que tinha na arrecadação e marcava com cruzes o que tirava para o uso da casa, convencida que assim descobriria o ladrão. Mas Alba aproveitava o menor descuido da sua mãe para fazer cruzes na lista, de modo que por fim Blanca estava tão confundida que não sabia se se tinha enganado ao fazer as contas, se na casa comiam três vezes mais do que ela calculava ou se era certo que naquele maldito casarão ainda circulavam almas penadas. O produto dos furtos de Alba ia parar às mãos de Miguel, que o repartia nos bairros dos subúrbios e nas fábricas juntamente com os seus panfletos revolucionários apelando à lota armada para derrotar a oligarquia. Mas ninguém fazia caso. Estavam convencidos que se tinham chegado ao poder por via legal e democrática, ninguém lho podia tirar, pelo menos até às próximas eleições presidenciais. - São uns imbecis, não se dão conta de que a direita se está a armar! - disse Miguel a Alba. Alba acreditou nele. Tinha visto descarregar a meio da noite grandes caixas de madeira no pátio da casa, e logo, com grande sigilo, o carregamento foi armazenado, às ordens de Trueba, num dos quartos vazios. O avo, tal como a mãe, pôs um cadeado na porta e andava com a chave ao pescoço na mesma bolsinha de camurça onde trazia os dentes de Clara. Alba contou ao tio Jaime, que depois de acordar uma trégua com o pai, tinha voltado a casa. «Tenho quase a certeza de que são armas», comentou para Jaime, que nessa altura estava na lua, e assim continuou até ao dia em que o mataram. Ele não pode acreditar, mas a sobrinha insistiu tanto, que aceitou falar com o pai à hora da refeição. As dúvidas que tinham dissiparam-selhes com a resposta do velho. - Na minha casa faço o que me dá na real gana e trago quantas caixas me apetecer! Não tornem a meter o nariz nos meus assuntos! - rugiu o senador Trueba dando um murro na mesa que fez dançar e cortou secamente a conversa. Nessa noite Alba foi ter com o tio Jaime ao túnel de livros e propôs-lhe usar com as armas do avô o mesmo sistema que ela empregava com as vitualhas da mãe. Assim fizeram. Passaram o resto da noite abrindo um buraco na parede do quarto contíguo ao arsenal, que dissimularam por um lado com um armário e pelo outro com as próprias caixas proibidas. Por -ali puderam entrar no quarto fechado pelo avô, munidos de um martelo e de um alicate. Alba, que já tinha experiência desse ofício, apontou as caixas de baixo para as abrirem. Encontraram um arsenal que os deixou boquiabertos, porque não calculavam que existissem instrumentos tão perfeitos para matar. Nos dias seguintes roubaram tudo o que puderam, deixando as caixas vazias debaixo das outras e enchendo-as com pedras para que não se notasse ao levantá-las. Entre os dois sacaram pistolas de combate, pistolas metralhado-ras, espingardas e granadas de mão, que esconderam no túnel de Jaime até que Alba pôde levá-las no estojo do violoncelo para lugar seguro. O senador Trueba via passar a neta arrastando a pesada caixa, sem suspeitar que no interior forrado de pano rodavam as balas que tanto lhe tinham custado a passar pela fronteira e a esconder em casa. Alba teve a ideia de entregar as armas confiscadas a Miguel, mas o tio Jaime convenceu-a de que Miguel não era menos terrorista que o avô e que era melhor dispor delas de modo a que não pudessem fazer mal a ninguém. Discutiram várias alternativas, desde atirá-las ao rio até queimá-las numa pira, e finalmente decidiram que era mais prático enterrá-las em sacos de plástico num lugar seguro e secreto, porque assim, um dia, poderiam servir para uma causa mais justa. O senador Trueba estranhou ver o filho e a neta planeando uma excursão à montanha, porque nem Jaime nem Alba tinham voltado a praticar qualquer desporto desde os tempos do colégio inglês e nunca tinham manifestado inclinação pelas incomodidades do andinismo. Um sábado pela manhã partiram num jipe emprestado, equipados com uma tenda, um cesto com provisões e uma misteriosa mala que tiveram de carregar os dois, porque pesava como um morto. Dentro iam os armamentos de guerra que tinham roubado ao avô. Foram entusiasmados rumo à montanha até onde puderam chegar pelo caminho e depois avançaram a corta-mato, procurando um sitio tranquilo no meio da vegetação torturada pelo vento e pelo frio. Ali puseram os seus apetrechos e levantaram sem qualquer perícia a pequena tenda, cavaram os buracos e enterraram os sacos, marcando cada lugar com um monte de pedras. O resto do fim-de-semana passaram-no a pescar trutas no rio e a assá-las num fogo de espinheiras, a andar pelos cerros como crianças exploradoras e a recordar o passado. A noite aqueceram vinho tinto com canela e açúcar e embrulhados nos xailes brindaram pela cara que faria o avô quando descobrisse que o tinham roubado, rindo até lhes saltarem as lágrimas. - Se não fosses meu tio, casava-me contigo! - gracejou Alba. - E Miguel? - Seria meu amante. Jaime não achou graça e o resto do passeio esteve intratável. Nessa noite meteram-se cada um no seu saco de dormir, apagaram o candeeiro de petróleo e ficaram em silêncio. Alba adormeceu rapidamente, mas Jaime ficou até ao amanhecer com os olhos abertos no escuro. Gostava de dizer que Alba era como sua filha, mas nessa noite surpreendeu-se desejando não ser seu pai ou seu tio, mas ser simplesmente Miguel. Pensou em Amanda e lamentou que já não pudesse comovê-lo, buscou na memória o rescaldo daquela paixão descomedida que uma vez sentiu por ela, mas não o pôde encontrar. Tinha-se tornado um solitário. Ao principio esteve muito perto de Amanda, porque se tinha encarregado do seu tratamento e via-a quase todos os dias. A doente passou várias semanas de agonia, até que pôde prescindir das drogas. Deixou também os cigarros e a bebida e começou a fazer uma vida saudável e ordenada, ganhou algum peso, cortou o cabelo e voltou a pintar os grandes olhos escuros e a pendurar colares e pulseiras tilintantes, numa patética tentativa de recuperar a descorada imagem que guardava de si mesma. Estava apaixonada. Da depressão passou a um estado de euforia permanente e Jaime era o centro da sua mania. O enorme esforço de vontade que fez para se libertar das suas numerosas dependências ofereceu-o a ele como prova de amor. Jaime não a estimulou, mas também não a repudiou, porque pensou que a ilusão do amor podia ajudá-la na recuperação, mas sabia que era tarde para eles. Mal pôde tratou de criar a distância, com a desculpa de ser um solteirão perdido para o amor. Bastavam-lhe os encontros furtivos com algumas enfermeiras complacentes do hospital ou as tristes visitas aos bordéis, para satisfazer as suas urgências mais prementes, nos raros momentos livres que lhe deixava o trabalho. Contra a sua vontade, viu-se envolvido numa relação com Amanda que na sua juventude desejara com desespero, mas que já não o comovia nem se sentia capaz de manter. Só o inspirava um sentimento de compaixão, mas esta era uma das emoções mais fortes que ele podia sentir. Em toda uma vida de convivência com a miséria e a dor, não se lhe tinha endurecido a alma, mas, pelo contrário, era cada vez mais vulnerável à piedade. No dia em que Amanda lhe lançou os braços ao pescoço e disse que o amava, abraçou-a maquinalmente e beijou-a com uma paixão fingida, para que ela não percebesse que não a desejava. Assim se viu apanhado numa relação absorvente numa idade em que se julgava incapacitado para os amores tumultuosos. «Já não sirvo para estas coisas», pensava depois daquelas esgotantes sessões em que Amanda, para o encantar, recorria a rebuscadas manifestações amorosas que deixavam ambos aniquilados. A sua relação com Amanda e a insistência de Alba, puseram-no em contacto com Miguel. Não podia evitar encontrá-lo em muitas ocasiões. Fez o possível por manter-se indiferente, mas Miguel terminou por cativá-lo. Tinha amadurecido, já não era um jovem exaltado, mas não tinha mudado nada na sua linha política e continuava pensando que sem uma revolução violenta seria impossível vencer a direita. Jaime não estava de acordo, mas apreciava-o e admirava o seu caracter corajoso. No entanto, considerava-o um desses homens fatais, possuídos de um idealismo perigoso e de uma pureza intransigente, que tingem de desgraça tudo o que tocam especialmente as mulheres que têm a pouca sorte de os amar. Também não gostava da sua posição ideológica, porque estava convencido de que os extremistas de esquerda como Miguel faziam mais dano ao Presidente que os de direita. Mas nada disso impedia que tivesse simpatia por ele e se inclinasse perante a força das suas convicções, a sua alegria natural, a sua tendência para a ternura e a generosidade com que estava disposto a dar a vida por ideais que Jaime partilhava, mas que não tinha coragem de levar a cabo até às últimas consequências. Nessa noite Jaime adormeceu preocupado e inquieto, incómodo no saco de dormir, ouvindo muito próximo a respiração da sua sobrinha. Quando despertou, ela tinha-se levantado e estava aquecendo o café do pequeno almoço. Soprava uma brisa fria e o Sol iluminava com reflexos dourados os cumes das montanhas. Alba deitou os braços ao pescoço do seu tio e beijou-o, mas ele manteve as mãos nos bolsos e não devolveu a carícia. Estava perturbado. Las Tres Marias foi um dos últimos latifúndios que a reforma agrária expropriou no Sul. Os mesmos camponeses que tinham nascido e trabalhado ao longo de gerações naquela terra, formaram uma cooperativa e assenhorea-ram-se da propriedade, porque fazia três anos e cinco meses que não viam o patrão e tinham esquecido o furacão das suas cóleras. O administrador, atemorizado pelo rumo que tomavam os acontecimentos e pelo tom exaltado das reuniões dos caseiros na escola, juntou os seus tarecos e pôs-se ao largo sem se despedir de ninguém e sem avisar o senador Trueba, porque não queria enfrentar a sua fúria e porque pensou que já tinha cumprido ao adverti-lo várias vezes. Com a sua partida, Las Tres Marias ficou algum tempo à deriva. Não havia quem desse as ordens e nem quem estivesse disposto a cumpri-las, porque os camponeses saboreavam pela primeira vez nas suas vidas, o gosto da liberdade e de serem os seus próprios amos. Repartiram entre si equitativamente os pastos e cada um cultivou o que lhe deu na gana, até que o governo mandou um técnico que lhes deu sementes a crédito e os pôs em dia sobre a procura do mercado, as dificuldades de transporte para os produtos e as vantagens dos adubos e desinfectantes. Os camponeses fizeram pouco caso do técnico, porque parecia um janota da cidade e era evidente que nunca tinha tido um arado nas mãos, mas de qualquer modo celebraram a sua visita abrindo as sagradas adegas do antigo patrão, saqueando os seus vinhos velhos e sacrificando os touros reprodutores para comer os testículos com cebola e coentro. Depois que o técnico partiu, comeram também as vacas importadas e as galinhas poedeiras. Esteban Trueba inteirou-se que tinha perdido a terra quando o notificaram que iam pagar-lhe com bonificações do Estado, num prazo de trinta anos e pelo mesmo preço que ele mencionara na declaração de impostos. Perdeu o controlo. Sacou do seu arsenal uma metralhadora que não sabia usar e ordenou ao seu motorista que o levasse de carro numa tirada até Las Tres Marias sem avisar ninguém, nem sequer os seus guardacostas. Viajou várias horas, cego de raiva, sem nenhum plano concreto na mente. Ao chegar, tiveram de travar, porque a passagem estava fechada por uma grossa tranca no portão. Um dos caseiros montava guarda armado de um chuço e uma caçadeira sem cartuchos. Trueba desceu do carro. Ao ver o patrão, o pobre homem tocou freneticamente o sino da escola, que lhe tinham posto ao pé para ele dar o alarme e a seguir atirou-se de borco para o chão. A rajada de balas passou-lhe por cima da cabeça e cravou-se nas árvores próximas. Trueba não parou para ver se o tinha morto. Com uma agilidade inesperada na sua idade, meteu-se a caminho da propriedade sem olhar para nenhum lado, de maneira que a pancada na nuca apanhou-o de surpresa e atirou-o de bruços no pó antes que conseguisse dar conta do que se tinha passado. Despertou na sala de jantar da casa senhorial, deitado sobre a mesa com as mãos amarradas e uma almofada debaixo da cabeça. Uma mulher punha-lhe panos molhados na testa e à sua volta estavam quase todos os caseiros olhando-o com curiosidade. - Como se sente, companheiro? - perguntaram. - Filhos da puta! Eu não sou companheiro de ninguém! - gritou o velho tentando levantarse. Tanto se debateu e gritou, que lhe soltaram as cordas e o ajudaram a pôr-se em pé mas quando quis sair, viu que as janelas estavam tapadas por fora e a porta fechada à chave. Quiseram explicar-lhe que as coisas tinham mudado e já não era o dono, mas não quis ouvir ninguém. Deitava espuma pela boca e o coração ameaçava estalar-lhe, dizia impropérios como um demente, ameaçando com tais castigos e vinganças, que os outros acabaram por rebentar a rir. Esteban Trueba caiu numa cadeira, esgotado pelo tremendo esforço. Horas depois, soube que era um refém e que queriam filmá-lo para a televisão. Avisados pelo motorista, os dois guarda-costas e alguns jovens exaltados do seu Partido tinham feito a viagem até Las Tres Marias, armados com paus, boxes e correntes, para o libertar, mas encontraram guarda dobrada no portão, apontados pela mesma metralhadora que o senador Trueba lhes tinha proporcionado. - Ninguém leva o companheiro como refém - disseram os camponeses, e para dar ênfase correram-nos a tiro. Apareceu um camião da televisão e os caseiros, que nunca tinham visto nada semelhante, deixaram-nos entrar e posaram para as câmaras com os maiores sorrisos, ao lado do prisioneiro. Nessa noite, todo o pais pôde ver nos écrans o representante máximo da oposição amarrado, espumando de raiva e gritando tais palavrões que a censura teve de actuar. O Presidente também o viu e não achou graça ao assunto, porque pensou que podia ser o detonador que faria rebentar o barril de pólvora em que o seu governo se sentava em equilíbrio precário. Mandou os carabineiros resgatarem o Senador. Quando estes chegaram à herdade, os camponeses, tornados valentes pelo apoio da imprensa, não os deixaram entrar. Exigiram uma ordem judicial. O juiz da província, vendo que se podia meter num sarilho e aparecer também na televisão, achincalhado pelos repórteres de esquerda, foi pescar apressadamente. Os carabineiros tiveram que limitar-se a esperar do outro lado do portão de Las Tres Marias, até que mandassem a ordem da capital. Blanca e Alba souberam do caso como toda a gente, porque o viram no noticiário. Blanca esperou até ao dia seguinte sem fazer comentários, mas ao ver que nem os carabineiros tinham podido resgatar o avô, decidiu que chegara o momento de voltar a encontrar-se com Pedro Tercero Garcia. - Tira essas calças sujas e põe um vestido decente – ordenou a Alba. Apresentaram-se ambas no ministério sem ter pedido entrevista. Um secretário quis detêlas na antecâmara, mas Blanca afastou-o com um empurrão e passou com passo firme, levando a filha a reboque. Abriu a porta sem bater e entrou pelo gabinete de Pedro Tercero, que não via fazia dois anos. Esteve quase a pontos de retroceder, julgando que se tinha equivocado. Em tão curto prazo, o homem da sua vida tinha emagrecido e envelhecido, parecia muito cansado e triste, tinha o cabelo ainda negro mas mais ralo e curto, aparara a formosa barba e estava vestido com um fato cinzento de funcionário e uma gravata triste da mesma cor. Blanca só o reconheceu pelo olhar dos seus antigos olhos. - Jesus! Como mudaste!... - balbuciou. A Pedro Tercero, no entanto, ela pareceu-lhe mais formosa do que se recordava, como se a ausência a tivesse rejuvenescido. Naquele espaço de rompo ele tinha tido tempo de se arrepender da sua decisão e de descobrir que sem Blanca perdera até o gosto pelas jovens que antes o entusiasmavam. Por outro lado, sentado naquele escritório, trabalhando doze horas diárias, longe da guitarra e da inspiração do povo, tinha muito poucas oportunidades de se sentir feliz. À medida que o tempo passava, tinha cada vez menos saudades do amor tranquilo e repousado de Blanca. Mal a viu entrar com modos decididos e acompanhada de Alba, compreendeu que não ia vê-lo por razões sentimentais e adivinhou que a causa era o escândalo do senador Trueba. - Venho pedir-te que nos acompanhes - disse Blanca sem preâmbulos. - A tua filha e eu vamos buscar o velho a Las Tres Marias. Foi assim que Alba soube que Pedro Tercero Garcia era seu pai. - Está bem. Passemos por minha casa para buscar a guitarra - respondeu, levantando-se. Saíram do ministério num automóvel preto como um carro funerário com chapas oficiais. Blanca e Alba esperaram na rua enquanto ele subiu ao apartamento. Quando regressou, tinha trocado o fato cinzento pelo fato macaco e o seu poncho de antigamente, calçava alpergatas e levava uma guitarra pendurada às costas. Blanca sorriu-lhe pela primeira vez e ele inclinou-se e beijou-a levemente na boca. A viagem foi silenciosa durante os primeiros cem quilómetros, até que Alba pôde recuperar da surpresa e fez sair um fio de voz trémula, para perguntar por que não lhe tinham dito já que Pedro Tercero era seu pai, assim lhe teriam poupado tantos pesadelos de um conde vestido de branco, morto de febre no deserto. - É melhor um pai morto do que um pai ausente – respondeu enigmaticamente Blanca, e não tornou a falar no assunto. Chegaram a Las Tres Marias ao anoitecer e encontraram no portão da herdade uma multidão em conversa amigável à volta de uma fogueira onde se assava um porco. Eram os carabineiros, os jornalistas e os camponeses que estavam dando baixa às últimas garrafas da adega do Senador. Alguns cães e várias crianças brincavam iluminados pelo fogo, esperando que o leitão rosado e brilhante acabasse de assar. Os da imprensa reconheceram logo Pedro Tercero Garcia, porque o tinham entrevistado amiúde, os carabineiros pela sua inconfundível pinta de cantor popular e os camponeses porque o tinham visto nascer naquela terra. Receberam-no com afecto. - Que o traz aqui, companheiro? - perguntaram-lhe os camponeses. - Venho ver o velho - sorriu Pedro Tercero. - Você pode entrar companheiro, mas sozinho. A Dona Blanca e a menina Alba vão aceitar um copinho de vinho - disseram. As duas mulheres sentaram-se à volta da fogueira com os outros e o aroma suave da carne chamuscada recordou-lhes que não comiam desde a manhã. Blanca conhecia todos os caseiros e tinha ensinado muitos deles a ler na pequena escola de Las Tres Marias, por isso puseram-se a recordar tempos passados, quando os irmãos Sánchez impunham a lei na região, quando o velho Pedro Garcia acabou com a praga das formigas e quando o Presidente era um eterno candidato, que parava na estação a discursar-lhes dentro do comboio das suas derrotas. - Quem pensaria que alguma vez ia ser Presidente! – disse um. - E que um dia o patrão ia mandar menos que nós em Las Tres Marias - riram-se os outros. Conduziram Pedro Tercero Garcia a casa, directamente à cozinha. Estavam lá os caseiros mais velhos tomando conta da porta da sala de jantar onde tinham o antigo patrão prisioneiro. Não tinham visto Pedro Tercero durante anos, mas todos o recordavam. Sentaram-se à mesa a beber vinho e a recordar o passado remoto, os tempos em que Pedro Tercero não era uma lenda na memória das gentes do campo, mas apenas um rapaz rebelde apaixonado pela filha do patrão. Depois, Pedro Tercero pegou na guitarra, ajeitou-a na perna, fechou os olhos e começou a cantar com a sua voz de veludo a história das galinhas e do raposo, acompanhado em coro por todos os velhos. - Vou levar o patrão, companheiros - disse suavemente Pedro Tercero numa pausa. - Nem sonhos, filho - responderam. - Amanhã virão os carabineiros com uma ordem judicial e vão levá-lo como um herói. É melhor que eu o leve com o rabo entre as pernas - disse Pedro Tercero. Discutiram o assunto durante um bom bocado e por fim levaram-no à sala de jantar e deixaram-no só com o refém. Era a primeira vez que estavam frente a frente desde o dia fatídico em que Trueba lhe cobrou a virgindade da filha com uma machadada. Pedro Tercero lembrava-se dele como um gigante furibundo, armado com um chicote de couro e uma bengala de prata, que fazia tremer à sua passagem os caseiros e que alterava a natureza com o vozeirão de trovão e a prepotência de grande senhor. Surpreendeu-se ao ver que o seu rancor amassado durante tanto tempo se esvaia na presença daquele ancião curvado e mirrado que o olhava com susto. O senador Trueba esgotara a raiva e a noite que tinha passado sentado numa cadeira de mãos amarradas tinha-lhe provocado dores em todos os ossos e nas costas um cansaço de mil anos. A princípio teve dificuldade em reconhecê-lo, porque não o tinha voltado a ver desde há um quarto de século, mas ao notar que lhe faltavam três dedos na mão direita, compreendeu que isso era o culminar do pesadelo em que se encontrava submergido. Observaram-se em silêncio por longos segundos, pensando os dois que o outro encarnava o que de mais odioso havia no mundo, mas sem encontrar o fogo do antigo ódio nos corações. - Venho tirá-lo daqui - disse Pedro Tercero. - Porquê? - perguntou o velho. - Porque Alba mo pediu - respondeu Pedro Tercero. - Vá para o caralho! - balbuciou sem convicção. - Bom, lá vamos. Você vem comigo. Pedro Tercero começou a desatar-lhe as cordas, que lhe haviam voltado a pôr nos pulsos para evitar que desse murros na porta. Trueba desviou os olhos para não ver a mão mutilada do outro. - Tire-me daqui sem que me vejam. Não quero que os jornalistas saibam - disse o senador Trueba. - Vou tirá-lo daqui exactamente por onde entrou, pela porta principal - disse Pedro Tercero e começou a andar. Trueba seguiu-o com a cabeça baixa, tinha os olhos avermelhados e pela primeira vez, tanto quanto podia recordar, sentia-se derrotado. Passaram pela cozinha sem que o velho levantasse a vista, atravessaram toda a casa e percorreram o caminho desde a casa senhorial até ao portão da entrada, acompanhados por um grupo de crianças travessas que brincava à sua volta e um séquito de camponeses silenciosos que caminhava atrás. Blanca e Alba estavam sentadas entre os jornalistas e os carabineiros, a comer porco assado com os dedos e a beber grandes goles de vinho tinto pelo gargalo da garrafa que circulava de mão em mão. Ao ver o avô, Alba comoveu-se, porque nunca o tinha visto tão abatido desde a morte de Clara. Engoliu o que tinha na boca e correu ao seu encontro. Abraçaram-se estreitamente e ela sussurrou-lhe qualquer coisa ao ouvido. Então, o senador Trueba conseguiu dominar a dignidade, levantou a cabeça e sorriu com a antiga soberba às luzes das máquinas fotográficas. Os jornalistas fotografaram-no a subir para um automóvel preto com matricula oficial e a opinião pública perguntou durante semanas que significava aquela palhaçada, até que outros acontecimentos muito mais graves apagaram a recordação do incidente. Nessa noite, o Presidente, que apanhara o hábito de enganar a insónia jogando xadrez com Jaime, comentou o assunto entre duas partidas, enquanto espiava com os olhos astutos, ocultos detrás dos óculos grossos com aros escuros, algum sinal de atrapalhação do amigo, mas Jaime continuou a colocar as peças no tabuleiro sem dizer palavra. - O velho Trueba tem os colhões no sítio - disse o Presidente. - Merecia estar do nosso lado. Nos meses que se seguiram, a situação piorou muito, aquilo parecia um país em guerra. Os ânimos estavam muito exaltados, especialmente entre as mulheres da oposição, que desfilavam pelas ruas batendo em tachos como protesto contra a falta de abastecimento. Metade da população procurava deitar abaixo o governo e outra metade defendia-o, sem que ninguém tivesse tempo para trabalhar. Uma noite, Alba admirou-se ao ver as ruas do centro escuras e vazias. Não tinham recolhido o lixo em toda a semana e os cães vadios esgravatavam entre os montões de porcaria. Os postes estavam cobertos de propaganda impressa, que a chuva de Inverno tinha desbotado, e em todos os espaços disponíveis estavam escritas as palavras de ordem de ambos os lados. Metade dos candeeiros tinha sido apedrejada e nos edifícios não havia janelas iluminadas, a luz vinha de tristes fogueiras alimentadas com jornais e tábuas, onde se aqueciam pequenos grupos que montavam guarda em frente dos ministérios, dos bancos, dos escritórios, fazendo turnos para impedir que os grupelhos da extrema direita os tomassem de assalto durante a noite. Alba viu parar uma camioneta em frente de um edifício público. Desceram vários jovens com capacetes brancos, baldes de tinta e brochas que cobriram as paredes com uma base de cor clara. Depois desenharam grandes pombas de muitas cores, borboletas e flores de sangue, versos do Poeta e apelos à unidade popular. Eram as brigadas juvenis que acreditavam salvar a revolução com murais patrióticos e pombas panfletárias. Alba aproximou-se e apontou-lhes o mural que havia do outro lado da rua. Estava manchado com tinta vermelha e tinha só uma palavra escrita com letras enormes: Djacarta. - Que significa aquele nome, companheiros? - perguntou. - Não sabemos - responderam. Ninguém sabia por que razão a oposição pintava aquela palavra asiática nas paredes, nunca tinham ouvido falar nos montões de mortos nas ruas dessa cidade distante. Alba montou na bicicleta e pedalou rumo a casa. Desde que havia racionamento de gasolina e greve de transportes públicos, tinha desenterrado da cave o velho brinquedo da infância para se deslocar. Ia a pensar em Miguel e um negro pressentimento apertava-lhe a garganta. Há bastante tempo que não ia às aulas e começava a sobrar-lhe tempo. Os professores tinham declarado uma paragem indefinida e os estudantes tomaram os edifícios das faculdades. Aborrecida de estudar violoncelo em casa, aproveitava os momentos em que não estava a sós com Miguel, passean-do com Miguel ou discutindo com Miguel, para ir ao hospital do Bairro da Misericórdia ajudar o tio Jaime e uns poucos médicos mais, que continuavam exercendo, apesar da ordem do Colégio Médico de não trabalhar para sabotar o governo. Era uma tarefa hercúlea. Os corredores atulhavam-se de doentes que esperavam durante dias para serem atendidos, como um rebanho geme-bundo. Os enfermeiros não resolviam coisa alguma. Jaime adormecia com o bisturi na mão, tão ocupado que muitas vezes se esquecia de comer. Emagreceu e andava muito extenuado. Fazia turnos de dezoito horas e quando se deitava no catre não conseguia pegar no sono, pensando nos enfermos que estavam à espera das anestesias que não havia, nem seringas, nem algodão, e que mesmo que ele se multiplicasse por mil, ainda não era suficiente, porque aquilo era como tentar deter um comboio com a mão. Amanda também trabalhava no hospital como voluntária, para estar perto de Jaime e manter-se ocupada. Nessas jornadas esgotantes, a cuidar de doentes desconhecidos, recuperou a luz que a iluminava por dentro na sua juventude e por algum tempo, teve a ilusão de ser feliz. Usava um avental azul e sapatilhas de borracha, mas Jaime julgava ouvir as missangas de outros tempos a tilintar sempre que ela andava perto. Sentia-se acompanhado e teria desejado amá-la. O Presidente aparecia na televisão quase todas as noites para denunciar a guerra sem quartel da oposição. Estava muito cansado e a voz falhavalhe constantemente. Fizeram constar que estava bêbado e que passava a noite em orgias de mulatas trazidas do trópico por via aérea para lhe aquecer os ossos. Avisou que os camionistas em greve recebiam cinquenta dólares por dia do estrangeiro para manterem o pais parado. Responderam que lhe enviavam granadas e armas soviéticas nas malas diplomáticas. Disse que os seus inimigos conspiravam com os militares para fazer um golpe de estado, porque preferiam ver a democracia morta, em vez de governada por ele. Acusaram-no de inventar patranhas de paranóico e de roubar as obras do Museu Nacional para as pôr no quarto da amante. Preveniu que a direita estava armada e decidida a vender a pátria ao imperialismo e respondiam-lhe que tinha a despensa cheia de peitos de aves enquanto o povo fazia bichas para o pescoço e as asas dos mesmos pássaros. No dia em que Luísa Mora tocou a campainha da grande casa da esquina, o senador Trueba estava na biblioteca a fazer contas. Ela era a última das irmãs Mora que ainda restava neste mundo, reduzida ao tamanho de um anjo errante e totalmente lúcido, em plena posse da sua inquebrantável energia espiritual. Trueba não a via desde a morte de Clara, mas reconheceu-a pela voz, que continuava a soar como uma flauta encantada e pelo perfume das violetas silvestres que o tempo tinha suavizado, mas ainda perceptível à distância. Ao entrar na sala trouxe consigo a presença alada de Clara, que ficou a flutuar no ar perante os olhos enamorados do marido, que não a via desde há vários dias. - Venho anunciar-lhe desgraças, Esteban - disse Luísa Mora depois de se ajeitar na poltrona. - Ai, querida Luísa! Disso já tive bastante... – suspirou ele. Luísa contou o que tinha descoberto nos planetas. Teve que explicar o método científico que tinha usado, para vencer a pragmática resistência do Senador. Disse que tinha passado os últimos dez meses estudando a carta astral de cada pessoa importante do governo e da oposição, incluindo o próprio Trueba. A comparação das cartas dizia que nesse preciso momento histórico ocorreriam inevitáveis actos de sangue, dor e morte. - Não tenho a menor dúvida, Esteban - concluiu. - Aproximam-se tempos terríveis. Haverá tantos mortos que não se poderão contar. Você fará parte do grupo dos vencedores, mas o triunfo não lhe vai trazer mais que sofrimento e solidão. Esteban Trueba sentiu-se incomodado em frente daquela pitonisa insólita que transtornava a paz da sua biblioteca e lhe alvoroçava o fígado com desvarios astrológicos, mas não teve coragem para a mandar embora, por causa de Clara, que estava observando pelo rabo do olho lá do seu canto. - Mas não vim aborrecê-lo com noticias que escapam ao seu controlo, Esteban. Vim falar com a sua neta Alba, porque tenho uma mensagem da avó para ela. O senador Trueba chamou Alba. A jovem não via Luísa Mora desde os sete anos, mas recordava-se perfeitamente dela. Abraçou-a com delicadeza, para não lhe desconjuntar o frágil esqueleto de marfim e aspirou com prazer uma baforada daquele perfume inconfundível. - Vim dizer-te que tenhas cuidado contigo - disse Luísa Mora depois de ter enxugado as lágrimas de emoção. - A morte anda a pisar-te os calcanhares. A tua avó Clara protege-te do Mais-Além, mas mandou-me dizer-te que os espíritos protectores são ineficazes nos cataclismos maiores. Seria bom que fizesses uma viagem, que fosses até ao outro lado do mar, onde ficarás a salvo. Nessa altura da conversa, o senador Trueba tinha perdido a paciência e teve a certeza de se encontrar em frente duma anciã demente. Dez meses e onze dias mais tarde, recordaria a profecia de Luísa Mora, quando levaram Alba de noite, durante o toque de recolher. Capítulo XIII O Terror O dia do golpe militar amanheceu com um sol radioso, pouco usual na tímida Primavera que despontava. Jaime tinha trabalhado quase toda a noite e às sete da manhã só tinha no corpo duas horas de sono. Despertou-o a campainha do telefone e uma secretária, com a voz ligeiramente alterada, acabou por lhe espantar a modorra. Telefonavam-lhe do Palácio para o informar que devia apresentar-se no gabinete do companheiro Presidente o mais depressa possível, não, o companheiro Presidente não estava doente, não, não sabia o que se estava a passar, ela tinha ordem de chamar todos os médicos da Presidência. Jaime vestiu-se como um sonâmbulo e entrou no automóvel, agradecendo que, pela sua profissão, tivesse direito a uma quota semanal de gasolina, porque se não fosse assim, teria que ir até ao centro de bicicleta. Chegou ao Palácio às oito e estranhou ver a praça vazia e um forte destacamento de soldados nos portões da sede do governo, todos equipados com farda de combate, capacetes e armamentos de guerra. Jaime estacionou o automóvel na praça solitária, sem reparar nos gestos que lhe faziam os soldados para não parar ali. Desceu e imediatamente o rodearam apontando-lhe as armas. - Que se passa, companheiros? Estamos em guerra com os chineses? - sorriu Jaime. - Siga, não pode parar aqui! O tráfego está interrompido! - ordenou um oficial. - Sinto muito mas chamaram-me da Presidência - alegou Jaime mostrando a identificação. - Sou médico. Acompanharam-no até às pesadas portas de madeira do Palácio, onde um grupo de carabineiros montava guarda. Deixaram-no entrar. No interior do edifício reinava uma agitação de naufrágio, os funcionários corriam pelas escadas como ratos assustados e a guarda privada do Presidente estava a empurrar os móveis contra as janelas e a distribuir pistolas pelos mais próximos. O Presidente veio ao seu encontro. Tinha posto um capacete de combate que parecia incongruente com a sua fina roupa desportiva e os sapatos italianos. Jaime compreendeu então que algo de grave estava a passar-se. - A Marinha sublevou-se, doutor - explicou laconicamente. - Chegou o momento de lutar. Jaime pegou no telefone e chamou Alba para lhe dizer que não saísse de casa e pedir-lhe que avisasse Amanda. Nunca mais voltou a falar com ela, porque os acontecimentos desencadearam-se vertiginosamente. Durante a hora. que se seguiu chegaram alguns ministros e dirigentes políticos do governo e começaram as negociações telefónicas com os insurrectos para medir a grandeza da sublevação e procurar uma solução pacífica. Mas, às nove e meia da manhã, as unidades armadas do pais estavam sob o comando de militares golpistas. Nos quartéis, tinha começado a purga dos que permaneciam leais à Constituição. O general dos carabineiros ordenou à guarda do Palácio que saísse, porque a policia acabava de aderir ao golpe. - Podem ir, companheiros, mas deixem as armas - disse o Presidente. Os carabineiros estavam confusos e envergonhados, mas a ordem do general era categórica. Nenhum se atreveu a desafiar o olhar do Chefe de Estado, depositaram as armas no pátio e saíram em fila, com a cabeça baixa. Na porta, um voltou-se. - Eu fico com o senhor, companheiro Presidente - disse. A meio da manhã, tornou-se evidente que a situação não se resolveria com o diálogo e começou a retirar-se quase toda a gente. Só ficaram os amigos mais próximos e a guarda privativa. As filhas do Presidente foram obrigadas pelo pai a sair. Tiveram de levá-las à força e podiam ouvir-se os seus gritos a chamá-lo da rua. No interior do edifício ficaram à roda de trinta pessoas entrincheiradas nos salões do segundo andar, entre os quais estava Jaime. Parecia-lhe estar no meio de um pesadelo. Sentou-se numa poltrona de veludo vermelho, com uma pistola na mão, olhando-a apalermado. Não sabia usá-la. Pareceu-lhe que o tempo corria muito lentamente, no seu relógio só tinham passado três horas desse mau sonho. Ouviu a voz do Presidente que falava pela rádio ao país. Era a sua despedida. «Dirijo-me àqueles que serão perseguidos, para lhes dizer que não vou renunciar: pagarei com a minha vida a lealdade do povo. Estarei sempre junto de vós. Tenho fé na pátria e no seu destino. Outros homens vão ultrapassar este momento e muito mais cedo do que se pensa vão abrir-se as grandes alamedas por onde vai passar o homem livre, para construir uma sociedade melhor. Viva o povo! Vivam os trabalhadores! Estas são as minhas últimas palavras. Tenho a certeza de que o meu sacrifício não será em vão.» O céu começou a toldar-se. Ouviam-se alguns disparos isolados e distantes. Nesse momento o Presidente estava a falar por telefone com o chefe dos sublevados, que lhe ofereceu um avião militar para sair do pais com toda a família. Mas ele não estava disposto a exilar-se em qualquer lugar longínquo onde pudesse passar o resto da vida vegetando com outros mandatários destituídos, que tinham saído da pátria pela porta do cavalo. - Enganaram-se comigo, traidores. Aqui pôs-me o povo e daqui só sairei morto - respondeu serenamente. Então, ouviram o rugido dos aviões e começou o bombardeamento. Jaime atirou-se ao chão com os outros, sem poder acreditar no que estava a viver, porque até ao dia anterior estava convencido de que no seu pais nunca se passava nada e até os militares respeitavam a lei. Só o Presidente se manteve de pé, aproximou-se de uma janela com uma bazuca nos braços e disparou contra os tanques na rua. Jaime arrastou-se até ele e agarrou-o pelas pernas para o obrigar a agachar-se, mas o outro disse um palavrão e manteve-se de pé. Quinze minutos depois ardia todo o edifício e dentro não se podia respirar por causa das bombas e do fumo. Jaime andava de gatas por entre os móveis partidos e pedaços de tecto que calam à sua volta como uma chuva mortífera, procurando auxiliar os feridos, mas só podia dar consolo e fechar os olhos aos mortos. Numa súbita pausa do tiroteio, o Presidente reuniu os sobreviventes e disse-lhes que se fossem embora, que não queria mártires nem sacrifícios inúteis, que todos tinham uma família e teriam que realizar uma importante tarefa depois: «Vou pedir uma trégua para poderem sair», acrescentou. Mas ninguém se retirou. Alguns tremiam, mas todos estavam na aparente posse da sua dignidade. O bombardeamento foi breve mas deixou o Palácio em ruínas. Às duas da tarde, o incêndio devorara os antigos salões que tinham servido desde os tempos coloniais, e só ficara um punhado de homens à volta do Presidente. Os militares entraram no edifício e ocuparam tudo o que ficara do rés-do-chão. No meio do estrondo ouviram a voz histérica de um oficial que lhes ordenava que se rendessem e descessem em fila indiana e com as mãos no ar. O Presidente apertou a mão a cada um. «Eu descerei no fim», disse. Não voltaram a vê-lo com vida. Jaime desceu com os outros. Em cada degrau da grande escadaria de pedra havia um soldado. Pareciam ter enlouquecido. Davam pontapés e coronhadas aos que desciam, com um ódio novo, recentemente inventado, que tinha florescido neles em poucas horas. Alguns disparavam as armas por cima das cabeças dos rendidos. Jaime levou um pontapé no ventre que o dobrou em dois e quando pôde endireitar-se, tinha os olhos cheios de lágrimas e as calças quentes de merda. Continuaram a bater-lhes até à rua e ali mandaram-nos deitar-se de borco no chão, pisaram-nos, insultaram-nos até que se lhes acabaram os palavrões em espanhol e começaram a fazer sinais a um tanque. Os prisioneiros ouviram-no aproximar-se, estremecendo o asfalto, com o seu pisar de paquiderme invencível. - Abram caminho porque vamos passar com o tanque por cima destes ovos! - gritou um coronel. Jaime olhou do chão e julgou reconhecê-lo, porque lhe lembrava um rapaz com quem brincava em Las Tres Marias quando era jovem. O tanque passou resfolgando a dez centímetros da sua cabeça entre as gargalhadas dos soldados e o silvo das sereias do bombeiros. Ao longe ouvia-se o rumor dos aviões de guerra. Muito tempo depois, separaram os prisioneiros em dois grupos, conforme a sua culpa, e levaram Jaime para o Ministério da Defesa que estava transformado em quartel. Obrigaram-no a avançar agachado, como se estivesse numa trincheira, levaram-no através de uma grande sala, cheia de homens nus, atados em filas de dez, com as mãos amarradas atrás das costas, tão espancados, que alguns não conseguiam ter-se em pé, e o sangue corria a jorros sobre o mármore do chão. Conduziram Jaime à casa da caldeira, onde havia pessoas em pé contra a parede vigiadas por um soldado lívido que se passeava apontando-lhes a pistola-metralhadora. Passou ali muito tempo imóvel, parado, aguentando-se como um sonâmbulo, sem conseguir compreender o que estava a suceder, atormentado pelos gritos que se ouviam através da parede. Notou que o soldado o observava. Baixou a arma e aproximou-se. - Sente-se a descansar, doutor, mas se eu o avisar, ponha-se de pé imediatamente - disse num murmúrio, passando-lhe um cigarro aceso. - O senhor operou a minha mãe e salvou-lhe a vida. Jaime não fumava, mas saboreou aquele cigarro aspirando lentamente. Tinha o relógio partido, mas pela fome e pela sede, calculou que já era noite. Estava tão cansado e incómodo nas suas calças sujas, que não imaginava o que ia acontecer-lhe. Começava a cabecear quando o soldado se aproximou. - Levante-se, doutor - sussurrou-lhe. - Vêm buscá-lo. Boa sorte! Um instante depois entraram dois homens, algemaram-no e conduziram-no junto de um oficial que tinha o cargo de interrogar os prisioneiros. Jaime tinha-o visto algumas vezes na companhia do Presidente. - Sabemos que não tem nada a ver com isto, doutor - disse. - Só queremos que apareça na televisão e diga que o Presidente estava bêbado e se suicidou. Depois deixo-o ir para casa. - Faça essa declaração você mesmo. Comigo não contem, seus cabrões! - respondeu Jaime. Agarraram-lhe os braços. O primeiro golpe caiu-lhe no estômago. Depois levantaram-no, estenderam-no sobre uma mesa e sentiu que lhe tiravam a roupa. Muito tempo depois levaramno inconsciente do Ministério da Defesa. Tinha começado a chover e a frescura da água e do ar reanimaram-no. Despertou quando o subiram para um autocarro do Exército e o deixaram no assento traseiro. Através do vidro observou a noite e, quando o veiculo se pôs em marcha, pôde ver as ruas vazias e os edifícios embandeirados. Compreendeu que os inimigos tinham ganho e provavelmente pensou em Miguel. O autocarro deteve-se no pátio de um regimento, ali o deixaram. Havia outros prisioneiros em tão mau estado como ele. Ataram-lhe os pés e as mãos com arame farpado e atiraram-no de bruços nas cavalariças. Jaime e os outros passaram ali dois dias sem água e sem comida, apodrecendo nos seus próprios excrementos, no seu sangue e no eu espanto, ao fim dos quais os transportaram a todos num camião até aos arredores do aeroporto. Num descampado fuzilaram-nos estendidos no chão, porque não podiam aguentar-se em pé e dinamitaram logo os corpos. O assombro da explosão e o fedor dos despojos ficaram no ar por muito tempo. Na grande casa da esquina, o senador Trueba abriu uma garrafa de champanhe francês para celebrar a queda do regime contra o qual ele tinha lutado ferozmente, sem suspeitar que nesse momento estavam a queimar os testículos ao seu filho Jaime com um cigarro importado. O velho pendurou a bandeira na entrada da casa e não saiu para a rua a dançar porque era coxo e porque havia toque de recolher obrigatório, mas a vontade não lhe faltou, como disse satisfeito à filha e à neta. Entretanto Alba, pendurada no telefone, tentava obter notícias das pessoas que a preocupavam: Miguel, Pedro Tercero, o tio Jaime, Amanda, Sebastián Gómez e tantos outros. - Agora vão pagá-las! - exclamou o senador Trueba levantando o copo. Alba tirou-lho da mão com uma pancada e atirou-o contra a parede, fazendo-o em pedaços. Blanca, que nunca tinha tido coragem de fazer frente ao pai, sorriu sem disfarçar. - Não vamos celebrar a morte do Presidente nem a dos outros, avô! - disse Alba. Nas lindas casas do Bairro Alto abriram as garrafas que tinham esperado durante três anos e brindaram pela nova ordem. Os helicópteros voaram toda a noite, zumbindo como moscas de outros mundos. Muito tarde, quase ao amanhecer, tocou o telefone e Alba, que não se tinha deitado, correu a atendê-lo. Aliviada, ouviu a voz de Miguel. - Chegou o momento, meu amor. Não me procures nem me esperes. Amo-te - disse. - Miguel! Quero ir contigo! - soluçou Alba. - Não fales a ninguém de mim, Alba. Não vejas os amigos. Rasga as agendas, os papéis, tudo o que possa relacionar-te comigo. Vou-te querer sempre, lembra-te disso, meu amor - disse Miguel e cortou a ligação. A ordem de recolher durou dois dias. Para Alba foram uma eternidade. As rádios transmitiam ininterruptamente hinos guerreiros e a televisão mostrava só paisagens do território nacional e desenhos animados. Várias vezes por dia apareciam nos écrans os quatro generais da Junta, sentados entre o escudo e a bandeira, para promulgar os seus éditos: eram os novos heróis da pátria. Apesar da ordem de disparar contra quem saísse de casa, o senador Trueba atravessou a rua para ir celebrar a casa dum vizinho. A algazarra da festa não chamou a atenção das patrulhas que circulavam na rua, porque aquele era um bairro onde não esperavam encontrar oposição. Blanca disse que tinha a maior enxaqueca da sua vida e fechou-se no quarto. À noite, Alba ouviu-a andar pela cozinha e supôs que a fome tinha sido mais forte que a dor de cabeça. Passou dois dias às voltas pela casa em estado de desespero, revistando os livros do túnel de Jaime e a sua própria secretária para destruir o que considerou comprometedor. Era como cometer um sacrilégio, estava certa de que quando o tio regressasse ia ficar furioso e deixaria de ter confiança nela. Destruiu também as agendas onde estavam os números de telefone dos amigos, as suas mais preciosas cartas de amor e até as fotografias de Miguel. As criadas da casa, indiferentes e aborrecidas, entretiveram-se durante o toque de recolher fazendo empanadas, excepto a cozinheira, que chorava sem parar e esperava com ansiedade o momento de ir ver o marido, com quem não tinha podido comunicar. Quando se levantou por algumas horas a proibição de sair, para dar à população a oportunidade de comprar viveres, Blanca comprovou admirada que as lojas estavam abarrotadas com os produtos que durante três anos tinham escasseado e que pareciam ter surgido como obra de magia nas montras. Viu montes de frangos preparados e pôde comprar o que quis, apesar de custar tudo o triplo porque tinha sido decretada liberdade de preço. Notou que muitas pessoas observavam os frangos com curiosidade, como se nunca os tivessem visto, mas poucas os compraram, porque não os podiam pagar. Três dias depois, o cheiro a carne putrefacta empestava as lojas da cidade. Os soldados patrulhavam as ruas nervosamente, vitoriados por muita gente que tinha desejado a derrocada do governo. Alguns, tornados uns valentaços pela violência daqueles dias, detinham os homens com cabelo comprido ou barba, sinais inequívocos do seu espirito rebelde, e mandavam parar na rua as mulheres com calças para as cortarem à tesourada, porque se sentiam responsáveis por impor a ordem, a moral e a decência. As novas autoridades disseram que não tinham nada a ver com essas acções, nunca tinham dado ordens para cortar barbas ou calças, provavelmente tratava-se de comunistas disfarçados de soldados para desprestigiar as Forças Armadas e torná-las odiosas aos olhos dos cidadãos, porque não estavam proibidas as barbas nem as calças, mas certamente, preferiam que os homens andassem barbeados e com o cabelo curto e as mulheres com saias. Correu o boato de que o Presidente havia sido morto e ninguém acreditou na versão oficial de se ter suicidado. Esperei que se normalizasse um pouco a situação. Três dias depois do Pronunciamento Militar, dirigi-me no automóvel do Congresso ao Ministério da Defesa, estranhando que não me tivessem ido buscar para me convidar a participar no novo governo. Toda a gente sabe que fui eu o principal inimigo dos marxistas, o primeiro que se opôs à ditadura comunista e se atreveu a dizer em público que só os militares podiam impedir que o pais caísse nas garras da esquerda. Além disso, fui eu quem fez quase todos os contactos com o alto comando militar, quem serviu de ligação com os gringos e pus o meu nome e o meu dinheiro à disposição para comprar armas. No fim de contas, expus-me mais que ninguém. Na minha idade o poder político não me interessa para nada. Mas sou dos poucos que podiam assessorá-los, porque passei muito tempo ocupando cargos e sei melhor que ninguém o que convém a este pais. Sem assessores leais, honestos e capacitados, que pode fazer meia dúzia de coronéis improvisados? Só asneiras. Ou deixar-se enganar pelos espertos que se aproveitam das circunstancias para se tornarem ricos, como de facto está a suceder. Nesse momento, ninguém sabia que as coisas iam ocorrer como ocorreram. Pensávamos que a intervenção militar era um passo necessário para voltar a uma democracia sã, por isso me parecia tão importante colaborar com as autoridades. Quando cheguei ao Ministério da Defesa fiquei surpreendido ao ver o edifício transformado em esterqueira. As ordenanças lavavam os pisos com esfregões, vi algumas paredes picadas pelas balas e por todos os lados corriam militares, agachados como se estivessem de verdade no meio de um campo de batalha ou esperassem que caíssem inimigos do tecto. Tive que aguardar quase três horas para ser atendido por um oficial. Ao principio julguei que naquele caos não me tinham reconhecido e por isso me tratavam com tão pouca deferência, mas vi logo como eram as coisas. O oficial recebeu-me com as botas sobre a secretária, mastigando uma sanduíche gordurosa, mal barbeado, com o dólman desabotoado. Não me deu tempo de lhe perguntar pelo meu filho Jaime nem de o felicitar pela valente acção dos soldados que tinham salvo a pátria, mas pediu-me as chaves do automóvel com o argumento de que o Congresso tinha fechado, e por isso, também tinham acabado as regalias dos congressistas. Sobressaltei-me. Era evidente, então, que não tinham nenhuma intenção de voltar a abrir as portas do Congresso, como todos esperávamos. Pediu-me, não, ordenou-me, que me apresentasse no dia seguinte na catedral, às onze da manhã, para assistir ao Te Deum com que a pátria agradecia a Deus a vitória sobre o comunismo. - É verdade que o Presidente se suicidou? - perguntei. - Foi-se embora - respondeu-me. - Foi-se embora? Para onde? - Foi-se em sangue - riu-se o outro. Saí para a rua desconcertado, apoiado no braço do meu motorista. Não tínhamos maneira de regressar a casa, porque não circulavam táxis nem autocarros e não estou em idade para caminhar. Felizmente que passou um jipe de carabineiros e me reconheceram. É fácil distinguir-me como disse a minha neta Alba, porque tenho uma pinta inconfundível de velho corvo raivoso e ando sempre vestido de luto, com a minha bengala de prata. - Suba, Senador - disse um tenente. Ajudaram-nos a subir para o carro. Os carabineiros mostravam-se cansados, pareceu-me evidente que não tinham dormido. Confirmaram-me que estavam a patrulhar a cidade há três dias, mantendo-se acordados com café e comprimidos. - Encontraram alguma resistência nas povoações ou nas cinturas industriais - perguntei. - Muito pouca. O povo está tranquilo - disse o tenente. - Espero que a situação se normalize depressa, Senador. Não gostamos disto, é um trabalho sujo. - Não diga isso, homem. Se vocês não se adiantassem, os comunistas teriam dado o golpe e a estas horas você, eu e outras cinquenta mil pessoas estaríamos mortos. Não sabia que eles tinham um plano para implantar a ditadura? - Foi isso que nos disseram. Mas na povoação onde eu vivo há muitos presos. Os vizinhos olham-me com receio. Aqui, acontece o mesmo com os rapazes. Mas temos que cumprir ordens. A pátria está em primeiro lugar, não é verdade? - Ora aí está! Eu também lamento o que se está a passar, tenente. Mas não havia outra solução. O regime está podre. Que teria sido deste pais, se vocês não pegassem nas armas? No entanto, no fundo, não estava seguro. Tinha o pressentimento de que as coisas não estavam a sair como as tínhamos planeado e que a situação nos estava a escapar das mãos, mas naquele momento acalmei as minhas inquietações pensando que três dias são muito pouco para endireitar um pais e que provavelmente o grosseiro oficial que nos atendeu no Ministério da Defesa representava uma minoria insignificante dentro das Forças Armadas. A maioria era como aquele tenente escrupuloso que me levou a casa. Supus que em pouco tempo a ordem se estabeleceria e quando se aliviasse a tensão dos primeiros dias, me poria em contacto com alguém melhor colocado na hierarquia militar. Lamentei não me ter dirigido ao general Hurtado, não o tinha feito por respeito e também, reconheço, por orgulho, porque o correcto é que ele me procurasse e não eu a ele. Não soube da morte do meu filho Jaime senão duas semanas depois quando nos tinha passado a euforia do triunfo, quando toda a gente andava a contar os mortos e os desaparecidos. Um domingo, apresentou-se lá em casa um soldado que em segredo contou a Blanca o que tinha visto no Ministério da Defesa e o que sabia dos corpos dinamitados. - O doutor del Valle salvou a vida à minha mãe - disse o soldado olhando o chão, com o capacete de guerra na mão. - Por isso venho dizer-vos como o mataram. Blanca chamou-me para eu ouvir o que dizia o soldado, mas eu neguei-me a acreditar. Disse ao homem que estava a fazer confusão, que não era Jaime, mas outra pessoa que ele tinha visto na sala das caldeiras, porque Jaime não tinha nada que fazer no Palácio Presidencial no dia da rebelião militar. Tinha a certeza de que o meu filho tinha escapado para o estrangeiro por alguma passagem da fronteira ou se tinha asilado nalguma embaixada, na hipótese de o estarem a perseguir. Por outro lado, o seu nome não aparecia em nenhuma das listas das pessoas procuradas pelas autoridades, por isso deduziu que Jaime não tinha nada que temer. Teria que passar muito tempo, várias meses, na realidade, para eu compreender que o soldado tinha dito a verdade. Nos desvarios da solidão eu aguardava o meu filho sentado na poltrona da biblioteca, com os olhos fixos no umbral da porta, chamando-o com o pensamento, tal como chamava Clara. Tanto o chamei, que finalmente cheguei a vê-lo, mas apareceu-me coberto de sangue seco e andrajoso, arrastando rolos de arame farpado sobre o soalho encerado. Soube assim que tinha morrido como nos tinha contado o soldado. Só então comecei a falar da tirania. A minha neta Alba, por seu lado, viu desenhar-se o ditador muito antes de mim. Viu-o destacar-se entre os generais e gente da guerra. Reconheceu-o logo porque ela herdou a intuição de Clara. Era um homem rude e de aparência simples, de poucas palavras, como um camponês. Parecia modesto e poucos puderam adivinhar que algum dia o veríamos envolto numa capa de imperador, com os braços no ar, para acalmar as multidões carregadas em camiões para o vitoriar, com os augustos bigodes tremendo de vaidade, inaugurando o monumento Às Quatro Espadas, em cujo cimo um facho eterno iluminaria os destinos da pátria, mas, onde por um erro de técnicos estrangeiros nunca se levantou chama nenhuma, mas apenas uma fumarada espessa de cozinha que ficou a pairar no céu como uma constante tempestade de outros climas. Comecei a pensar que tinha procedido erradamente e que talvez não fosse essa a melhor solução para fazer cair o marxismo. Sentia-me cada vez mais só, porque já ninguém necessitava de mim, não tinha os meus filhos nem Clara, com a sua mania da mudez e distracção, parecia um fantasma. Até Alba se afastava cada vez mais, dia a dia. Via-a apenas em casa. Passava ao meu lado como uma rajada, com as horrorosas saias compridas de algodão enrugado e o incrível cabelo verde, como o de Rosa, ocupada em tarefas misteriosas que levava a cabo com a cumplicidade da avó. Estou certo que nas minhas costas ambas tramavam coisas secretas. A minha neta andava irritada, como Clara nos tempos do tifo, quando pôs às costas o fardo da dor alheia. Alba teve muito pouco tempo para lamentar a morte do tio Jaime, porque as urgências dos necessitados a absorveram imediatamente, de maneira que teve que guardar a dor para a sofrer mais tarde. Só voltou a ver Miguel dois meses depois do golpe militar e chegou a pensar que também tinha morrido. No entanto, não o procurou, porque tinha instruções dele muito precisas nesse sentido e além disso soube que o citavam nas listas dos que se deviam apresentar às autoridades. Isso deu-lhe esperança. «Enquanto o procurarem, está com vida», deduziu. Atormentava-se com a ideia de que o podiam apanhar vivo e invocava a avó para lhe pedir que isso não acontecesse. «Prefiro mil vezes vê-lo morto, avó», suplicava. Sabia o que se estava a passar no pais, por isso andava dia e noite com o estômago oprimido, tremiam-lhe as mãos, e quando se inteirava da sorte de algum prisioneiro, cobria-se de inchaços dos pés à cabeça, como um infectado pela peste. Mas não podia falar disso a ninguém, nem sequer ao avô, porque as pessoas preferiam não o saber. Depois daquela terrível terça-feira, o mundo mudou de forma brutal para Alba. Teve que habituar os sentidos para continuar a viver. Teve que se acostumar à ideia de que não tornaria a ver os que mais tinha amado, o tio Jaime, Miguel e muitos outros. Culpava o avô pelo que se tinha passado, mas logo, ao vê-lo encolhido na sua poltrona chamando Clara e o filho num murmúrio interminável, voltava-lhe todo o amor pelo velho e corria a abraçá-lo, a passar-lhe os dedos pela cabeleira branca, a consolá-lo. Alba sentia que as coisas eram de vidro, frágeis como suspiros, e que a metralha e as bombas daquela terça-feira inesquecível, tinham destroçado uma boa parte do que conhecia e que o resto tinha ficado estraçalhado e salpicado de sangue. Com o decorrer dos dias, das semanas e dos meses, o que a principio parecia terse preservado da destruição, também começou a mostrar sinais de deterioração. Notou que os amigos e parentes a evitavam, que alguns atravessavam a rua para não a cumprimentar ou viravam a cara quando se aproximava. Pensou que corria o boato de que ajudava os perseguidos. Assim era. Desde os primeiros dias a maior urgência foi esconder os que corriam perigo de morte. A princípio isso pareceu a Alba uma ocupação quase divertida, que lhe permitia manter o pensamento noutras coisas e não pensar em Miguel, mas logo verificou que não era brincadeira nenhuma. Os éditos avisavam os cidadãos de que deviam denunciar os marxistas e entregar os fugitivos, ou então seriam considerados traidores à pátria e julgados como tal. Alba recuperou milagrosamente o automóvel de Jaime, que se salvara do bombardeamento e esteve uma semana estacionado na mesma praça onde ele o deixara, até que soube disso e o foi buscar. Pintou-lhe dois grandes girassóis nas portas, de uma amarelo forte, para se distinguir dos outros carros e facilitar assim a sua nova tarefa. Teve que fixar a morada de todas as embaixadas, os turnos de carabineiros que as vigiavam, a altura dos muros, a largura das portas. O aviso de que havia alguém para dar asilo chegava-lhe de surpresa, frequentemente através de um desconhecido que a abordava na rua e que ela pensava ser enviado por Miguel. Ia ao lugar do encontro em pleno dia e quando via alguém a fazer sinais, advertido pelas flores amarelas pintadas no automóvel, parava um pouco para que subisse a toda a pressa. Pelo caminho não falavam, porque ela preferia não saber nem o seu nome. Às vezes tinha que passar todo o dia com ele, inclusivamente escondê-lo por uma ou duas noites, antes de encontrar o momento adequado para o introduzir numa embaixada acessível, saltando um muro nas costas dos guardas. Esse sistema resultava mais rápido que os tramites com embaixadores timoratos das democracias estrangeiras. Nunca mais voltava a saber do exilado, mas guardava para sempre o seu agradecimento comovido, e quando tudo terminava, respirava aliviada porque dessa vez tinha-se salvo. Certas ocasiões teve que o fazer com mulheres que não queriam afastar-se dos filhos, e apesar de Alba lhos prometer fazer chegar a criança pela porta principal, porque nem o mais tímido embaixador lhe recusaria isso, as mães negavam-se a deixá-los para trás, de maneira que no fim tinham também que passar as crianças por cima dos muros ou descê-los pelos gradeamentos. Em breve todas as embaixadas estavam eriçadas de arame farpado e metralhadoras e tornou-se impossível continuar a tomá-las de assalto, mas manteve-se ocupada por outras necessidades. Foi Amanda quem a pôs em contacto com os padres. As duas amigas juntavam-se para falar em segredo de Miguel, a quem nenhuma voltara a ver, e para recordar Jaime com uma nostalgia sem lágrimas, porque não havia uma prova oficial da sua morte e o desejo que ambas tinham de o tornar a ver era mais forte que o relato do soldado. Amanda tinha voltado a fumar por necessidade, tremiam-lhe muito as mãos e tinha o olhar vago. Por vezes tinha as pupilas dilatadas e movia-se pesadamente, mas continuava a trabalhar no hospital. Contou-lhe que muitas vezes atendia gente que chegava desmaiada de fome. - As famílias dos presos, dos desaparecidos e dos mortos não têm nada para comer. Os desempregados também não. Apenas um prato de comida de prisão de dois em dois dias. As crianças dormem na escola, estão subnutridas. Acrescentou que o copo de leite e as bolachas que os alunos recebiam antes todos os dias, tinham sido suprimidos e que as mães calavam a fome dos filhos com água chalada. - Os únicos que fazem alguma coisa para ajudar são os padres - explicou Amanda. - As pessoas não querem saber a verdade. A Igreja organizou refeitórios para dar um prato diário de comida seis vezes por semana, aos menores de sete anos. Claro que não é suficiente. Por cada criança que come uma vez por dia um prato de lentilhas ou de batatas, há cinco que ficam de fora a olhar, porque não chega para todos. Alba compreendeu que tinham retrocedido aos tempos antigos, quando a avó Clara ia ao Bairro da Misericórdia substituir a justiça com a caridade. Só que gora a caridade era mal vista. Verificou que quando percorria as casas das pessoas amigas para pedir um pacote de arroz ou um púcaro de leite em pó, não se atreviam a dizer-lhe que não a primeira vez, mas depressa a evitavam. A principio, Blanca ajudou-a. Alba não teve dificuldade em obter a chave da despensa da mãe, com o argumento de que não havia necessidade de açambarcar farinha vulgar e feijões de pobre, se se podia comer santola do mar Báltico e chocolate suíço, com o que pôde abastecer os refeitórios dos padres por um tempo que, de qualquer modo, lhe pareceu muito curto. Um dia levou a mãe a um dos refeitórios. Ao ver a grande mesa de madeira, onde uma fila dupla de crianças com os olhos suplicantes esperava que lhe dessem a ração, Blanca pôs-se a chorar e caiu de cama com enxaqueca por dois dias. Tinha continuado a lamentar-se se a filha não a obrigasse a vestir-se, a esquecer-se de si mesma e a conseguir ajuda, mesmo que fosse a roubar o avô tirando do orçamento familiar. O senador Trueba não quis ouvir falar do assunto, tal como faziam as pessoas da sua classe e negou a existência da fome com a mesma teimosia com que negava a dos presos e a dos torturados, de maneira que Alba não pôde contar com ele e mais tarde, quando nem pôde contar com a mãe, teve que recorrer a métodos mais drásticos. O mais longe que o avô chegava era ao Clube. Não andava pelo centro e muito menos se aproximava da periferia da cidade ou das povoações dos subúrbios. Não lhe custou nada a crer que as misérias que a neta contava eram patranhas dos marxistas. - Padres comunistas! - Era a última coisa que me faltava ouvir. Mas quando começaram a chegar a toda a hora as crianças e as mulheres a pedir às portas das casas, não deu ordem de fechar o portão gradeado e as persianas para não os ver, como faziam os outros, mas pelo contrário aumentou a mensalidade a Blanca e disse que tivessem sempre alguma comida quente para lhes dar. - É uma situação de momento - assegurou. - Logo que os militares puserem ordem no caos em que o marxismo deixou o pais, o problema está resolvido. Os jornais disseram que os mendigos da rua, que não se viam desde há tantos anos, eram mandados pelo comunismo internacional para desprestigiar a Junta Militar e sabotar a ordem e o progresso. Puseram vedações para tapar os bairros de lata, ocultando-os dos olhos dos turistas e dos que não queriam ver. Numa noite surgiram como por encanto jardins aparados e maciços de flores nas avenidas, plantados pelos desempregados para criar a fantasia de uma primavera pacífica. Pintaram de branco as paredes, apagando os murais de pombas panfletárias e retirando da vista para sempre os cartazes políticos. Qualquer tentativa de escrever mensagens políticas na via pública era punida com uma rajada de metralhadora no local. As ruas limpas, ordenadas e silenciosas, abriram ao comércio. Em pouco tempo desapareceram as crianças mendigas e Alba notou que não havia cães vadios nem caixotes de lixo. O mercado negro terminou no momento em que bombardearam o Palácio Presidencial, porque os especuladores foram ameaçados com a lei marcial e fuzilamento. Nas lojas começaram a vender-se coisas que não se conheciam nem de nome e outras que antes só conseguiam os ricos através do contrabando. A cidade nunca tinha estado tão bonita. Nunca a alta burguesia tinha sido mais feliz: podia comprar uisque sem taxas e automóveis a crédito. Na euforia patriótica dos primeiros dias, as mulheres ofereciam as suas jóias nos quartéis, para a reconstrução nacional, até as alianças de casamento, que eram substituídas por anéis de cobre com o emblema da pátria. Blanca teve de esconder a meia de lã com as jóias que Clara lhe tinha dado, para que o senador Trueba não as entregasse às autoridades. Viu-se nascer uma nova e soberba classe social. Senhoras muito importantes, vestidas com roupas de outros lugares, exóticas e brilhantes como lanternas nocturnas, pavoneavam-se nos centros de diversão de braço dado com os novos e soberbos economistas. Surgiu uma casta de militares que ocupou rapidamente os postos chave. As famílias, que antes tinham considerado uma desgraça ter um militar entre os seus membros, moviam influências para meter os filhos na Academia Militar e ofereciam as filhas aos soldados. O pais encheu-se de fardas, de máquinas bélicas, de bandeiras, hinos e desfiles, porque os militares conheciam a necessidade que o povo tinha dos seus próprios símbolos e cultos. O senador Trueba, que por princípio detestava essas coisas, compreendeu o que os amigos do Clube tinham querido dizer, quando asseguravam que o marxismo não tinha nem a menor oportunidade na América Latina, porque não contemplava o lado mágico das coisas. « Pão, circo e algo que respeitar é tudo o que necessitam», concluiu o Senador, lamentando no seu intimo que faltasse o pão. Orquestrou-se uma campanha destinada a limpar da face da terra o bom nome do ex- Presidente, com a esperança de que o povo deixasse de chorar por ele. Abriram a sua casa e convidaram o público a visitar o que chamaram «o palácio do ditador». Podia olhar-se para dentro dos seus armários e ficar pasmado com o número e qualidade dos seus casacos de camurça, registar os caixotes, vasculhar a despensa, para ver o rum cubano e o saco de açúcar que guardava. Circularam fotografias grosseiramente truncadas que o mostravam vestido de Baco, com uma grinalda de uvas na cabeça, refastelando-se com matronas opulentas e atletas do seu próprio sexo, numa orgia perpétua que ninguém, nem o próprio senador Trueba, acreditou serem autênticas. «Isto é demasiado, estão a exagerar», resmungou quando soube. De uma penada, os militares mudaram a história universal, apagando os episódios, as ideologias e as personagens que o regime desaprovava. Ajeitaram os mapas, porque não havia nenhuma razão para pôr o norte para cima, tão longe da pátria benemérita, se se podia pôr em baixo onde ela ficava mais favorecida e, de caminho, pintaram com azul da Prússia vastas margens de águas territoriais até aos limites da ásia e da áfrica e apoderaram-se de terras longínquas nos livros de geografia, traçando as fronteiras com toda a impunidade, até que os países irmãos perderam a paciência, deram um grito nas Nações Unidas e ameaçaram cairlhes em cima com tanques de guerra e aviões de caça. A censura, que a principio só abarcou os meios de comunicação, logo se estendeu aos textos escolares, às letras das canções, aos argumentos dos filmes e às conversas privadas. Havia palavras proibidas pelos militares, como a palavra «companheiro», e outras que não se diziam por precaução, apesar de nenhuma facção as ter eliminado do dicionário, como liberdade, justiça e sindicato. Alba perguntou de onde tinham saído tantos fascistas de um dia para o outro, porque na larga trajectória democrática do seu pais nunca os tinha notado, excepto alguns exaltados durante a guerra, que por macaquice vestiam camisas negras e desfilavam com o braço no ar, no meio das gargalhadas e das assobiadelas dos transeuntes, sem que tivessem algum papel importante na vida nacional. Nem se explicava a atitude das Forças Armadas, que provinham na sua maioria da classe operária e que historicamente tinham estado mais perto da esquerda do que da extrema direita. Não compreendeu o estado de guerra interna nem viu que a guerra é a obra de arte dos militares, o culminar dos seus treinos, a jóia dourada da sua profissão. Não são feitos para brilhar na paz. O golpe deu-lhes a oportunidade de pôr em prática o que tinham aprendido nos quartéis, a obediência cega, o manejo das armas e outras artes que os soldados podem dominar quando acalmam os escrúpulos do coração. Alba abandonou os estudos, porque a Faculdade de Filosofia, como muitas outras que abrem as portas do pensamento, foi fechada. Também não continuou com a música porque o violoncelo lhe pareceu uma frivolidade nessas circunstancias. Muitos professores foram despedidos, presos ou desapareceram, de acordo com uma lista negra que a polícia política detinha. Mataram Sebastián Gómez na primeira limpeza, denunciado pelos próprios alunos. A Universidade encheu-se de espiões. A alta burguesia e a direita económica, que tinham propiciado o golpe militar, estavam eufóricos. No começo assustaram-se um pouco ao ver as consequências da sua acção, porque nunca tinham vivido em ditadura e não sabiam o que era. Pensaram que a perda da democracia ia ser transitória e que se podia viver por algum tempo sem liberdades individuais nem colectivas, desde que o regime respeitasse a liberdade de acção. Também não lhes importou o desprestígio internacional, que os pôs na mesma categoria de outras tiranias regionais, porque lhes pareceu um preço barato para derrubar o marxismo. Quando chegavam capitais estrangeiros para investir no pais, atribuíram isso, naturalmente, à estabilidade do novo regime passando por alto o facto de, por cada peso que entrava, levarem dois de lucro. Quando se foram fechando, a curto prazo, quase todas as indústrias nacionais e os comerciantes começaram a falir, derrotados pela importação maciça de bens de consumo, disseram que os fogões brasileiros, os tecidos da Formosa e as motocicletas japonesas eram muito melhores que qualquer outra coisa que se tivesse algum dia feito no pais. Só quando devolveram as concessões das minas às companhias norte-americanas, depois de três anos de nacionali-zação, é que algumas vozes disseram que isso era o mesmo que oferecer a pátria embrulhada em celofane. Mas quando começaram a entregar aos antigos donos as terras que a reforma agrária tinha dividido, tranquilizaram-se: tinham voltado os bons tempos. Viram que só uma ditadura militar podia actuar com o peso da força e sem ter que dar contas a ninguém para lhes garantir os privilégios, por isso deixaram de falar de política e aceitaram a ideia de obter o poder económico, enquanto os militares governavam. O único trabalho da direita foi assessorá-los na elaboração dos novos decretos e das novas leis. Em poucos dias acabaram com os sindicatos, os dirigentes operários foram presos ou mortos, os partidos políticos declarados indefinidamente suspensos, e todas as organizações de trabalhadores e estudantes, e até os colégios oficiais, desmantelados. Era proibido reunir-se em grupo. O único sítio onde as pessoas se podiam reunir era na igreja, de modo que em pouco tempo a religião tornou-se moda e os padres e as freiras tiveram que pôr de parte os trabalhos espirituais para socorrer as necessidades terrenas daquele rebanho perdido. O governo e os empresários começaram a vê-los como inimigos potenciais e alguns sonharam resolver o problema assassinando o cardeal, uma vez que o Papa, em Roma, se negou a tirá-lo do seu lugar e mandá-lo para um asilo de frades alienados. Uma grande parte da classe média alegrou-se com o golpe militar, porque significava o voltar da ordem, da pureza dos costumes, das saias nas mulheres e do cabelo curto nos homens, mas logo começou a sofrer o tormento dos preços altos e da falta de trabalho. O salário não chegava para comer. Em todas as famílias havia alguém a lamentar e já não podiam dizer, como no principio, que se estava preso, morto ou exilado, era porque se o merecia. Também não puderam continuar a negar a tortura. Enquanto floresciam os negócios de luxo, as financiadoras milagrosas, os restaurantes exóticos e as casas importadoras, às portas das fábricas os desempregados faziam bicha à espera da oportunidade de trabalhar por um salário mínimo. A mão-de-obra desceu a níveis de escravidão e os patrões puderam, pela primeira vez desde há muitas décadas, despedir os trabalhadores à vontade, sem lhes pagar indemnização e prendê-los pelo mais pequeno motivo. Nos primeiros meses, o senador Trueba participou do oportunismo dos da sua classe. Estava convencido de que era necessário um período de ditadura para o pais voltar ao redil do qual nunca devia ter saído. Foi um dos primeiros latifundiários a recuperar a sua propriedade. Devolveram-lhe Las Tres Marias em ruínas, mas inteira, até ao último metro quadrado. Há quase dois anos que estava à espera desse momento, ruminando a raiva. Sem pensar duas vezes, foi ao campo com meia dúzia de rufias contratados e pôde vingar-se a seu bel-prazer dos camponeses que se tinham atrevido a desafiá-lo e a tirar-lhe o que era seu. Chegaram lá numa manhã luminosa de domingo, pouco antes do Natal. Entraram na propriedade com um alvoroço de piratas. Os rufias meteram-se por todos os lados, arreando nas pessoas aos gritos, com golpes e pontapés, juntaram pessoas e animais no pátio e regaram imediatamente com gasolina as casinhas de tijolos, que antes tinham sido o orgulho de Trueba, e pegaram fogo a tudo o que elas tinham. Mataram os animais a tiro. Queimaram os arados, os galinheiros, as bicicletas e até os berços dos recém-nascidos, numa confusão dos diabos que por pouco matava o velho Trueba de alegria. Despediu todos os caseiros com o aviso de que se voltasse a vê-los à volta da propriedade, iam sofrer a mesma sorte que os animais. Viu-os partir mais pobres do que nunca, numa grande e triste procissão, levando as crianças, os velhos, os poucos cães que sobreviveram ao tiroteio, uma ou outra galinha salva do inferno, arrastando os pés pelo caminho de pó que os afastava da terra onde tinham vivido por várias gerações. No portão de Las Tres Marias havia um grupo de gente miserável esperando com olhos ansiosos. Eram outros camponeses desocupados, expulsos de outras herdades, que chegavam tão humildes como os antepassados de séculos atrás, a pedir ao patrão que lhes desse emprego na próxima colheita. Nessa noite, Esteban Trueba deitou-se na cama de ferro que tinha sido dos pais, na velha casa senhorial onde não ia há muito tempo. Estava cansado e tinha no nariz o cheiro do incêndio e dos corpos dos animais que tiveram de queimar, para a podridão não infectar o ar. Ainda ardiam os restos das casinhas de tijolo e à sua volta tudo era destruição e morte. Mas ele sabia que podia voltar a levantar o campo, tal como o tinha feito uma vez, porque os prados estavam intactos e as suas forças também. Apesar do prazer da vingança, não conseguiu dormir. Sentia-se como um pai que castigara os filhos com demasiada severidade. Toda a noite viu os rostos dos camponeses, a quem tinha visto nascer na propriedade, afastando-se na estrada. Amaldiçoou o seu mau génio. Não dormiu o resto da semana e, quando conseguiu fazê-lo, sonhou com Rosa. Resolveu não contar a ninguém o que tinha feito e jurou que Las Tres Marias tornaria a ser a herdade modelo que tinha sido. Fez constar que estava disposto a aceitar os caseiros de volta, sob certas condições, evidentemente, mas nenhum regressou. Tinham-se espalha-do pelo campo, pelos cerros, pela costa, alguns iam a pé para as minas, outros para as ilhas do Sul, procurando cada um o pão para a família com qualquer ofício. Enojado o patrão regressou à capital sentindo-se mais velho do que nunca. Pesava-lhe a alma. O Poeta agonizou na sua casa junto ao mar. Estava doente e os acontecimentos dos últimos tempos esgotaram-lhe o desejo de continuar a viver. A tropa revolveu-lhe a casa, as suas colecções de búzios, as suas conchas, as suas borboletas, as suas garrafas, as figuras de proa apanhadas em tantos mares, os livros, os quadros, até os seus versos, à procura de armas subversivas e comunistas escondidos, até que o seu velho coração de bardo começou a falhar. Levaram-no para a capital. Morreu quatro dias depois e as últimas palavras do homem que cantou a vida, foram: «Vão fuzilá-los! Vão fuzilá-lo i!» Nenhum dos seus amigos se pôde aproximar na hora da morte, porque estavam fora da lei, fugitivos, exilados ou mortos. A sua casa azul do cerro estava meia em ruínas, o chão queimado e os vidros partidos, não se sabia se era obra dos militares, como diziam os vizinhos, se dos vizinhos, como diziam os militares. Velaram-no ali, alguns, poucos, que se atreveram a ir e jornalistas de todas as partes do mundo que apareceram para dar a notícia do enterro. O senador Trueba era seu inimigo ideológico mas recebera-o muitas vezes em casa e sabia de cor os seus versos. Apresentou-se no velório vestido de negro rigoroso com a neta Alba. Velaram ambos junto do singelo ataúde de madeira e acompanharam-no até ao cemitério numa manhã triste. Alba levava na mão um ramo dos primeiros cravos da temporada, vermelhos como o sangue. O pequeno cortejo percorreu a pé, lentamente, o caminho do cemitério, entre duas filas de soldados que faziam cordão nas ruas. As pessoas iam em silêncio. Mas logo alguém gritou roucamente o nome do Poeta e uma só voz saída de todas as gargantas respondeu: «Presente! Agora e sempre!» Foi como se tivessem aberto uma válvula e toda a dor, o medo e a raiva daqueles dias saísse dos peitos e rodasse pela rua e subisse em clamor terrível até às nuvens negras do céu. Outro gritou: «Companheiro Presidente!» E responderam todos num só lamento, pranto de homem: «Presente!» A pouco e pouco o funeral do Poeta transformou-se no acto simbólico de enterrar a liberdade. Muito perto de Alba e do avô, os operadores de câmara de televisão sueca filmavam para enviar para o gelado país de Nobel a visão pavorosa das metralhadoras colocadas de ambos os lados da rua, as caras das pessoas, o ataúde coberto de flores, o grupo de mulheres silenciosas que se apinhavam às portas da morgue, a dois quarteirões do cemitério, para ler as listas dos mortos. A voz de todos elevou-se em canto e o ar encheu-se com as palavras de ordem proibidas, gritando que o povo unido jamais será vencido, fazendo frente às armas que tremiam nas mãos dos soldados. O cortejo passou diante de uma construção e os operários largando as ferramentas, tiraram os capacetes e fizeram fila, cabisbaixos. Um homem caminhava com a camisa gasta nos punhos, sem colete e com os sapatos rotos, recitando os versos mais revolucionários do Poeta, com as lágrimas caindo-lhe pelas faces. Seguia-o o olhar atónito do senador Trueba, que caminhava ao lado. - É pena que fosse comunista - disse o Senador à neta. – Tão bom poeta e com as ideias tão confusas. Se tivesse morrido antes da rebelião militar, suponho que teria recebido uma homenagem nacional. - Soube morrer como soube viver, avô - respondeu Alba. Estava convencida de que morrera no devido tempo, porque nenhuma homenagem podia ter sido maior que aquele modesto desfile de uns quantos homens e mulheres que o enterraram numa campa emprestada, gritando pela última vez os seus versos de justiça e liberdade. Dois dias depois, apareceu no jornal um aviso da Junta Militar decretando luto nacional pelo Poeta e autorizando a pôr as bandeiras a meia haste nas casas particulares que o desejassem. A autorização vigorava desde o dia da sua morte até ao dia da publicação do aviso. Do mesmo modo que não pôde sentar-se a chorar a morte do tio Jaime, O Poeta agonizou na sua casa junto ao mar. Estava doente e os acontecimentos dos últimos tempos esgotaram-lhe o desejo de continuar a viver. A tropa revolveu-lhe a casa, as suas colecções de búzios, as suas conchas, as suas borboletas, as suas garrafas, as figuras de proa apanhadas em tantos mares, os livros, os quadros, até os seus versos, à procura de armas subversivas e comunistas escondidos, até que o seu velho coração de bardo começou a falhar. Levaram-no para a capital. Morreu quatro dias depois e as últimas palavras do homem que cantou a vida, foram: «Vão fuzilá-los! Vão fuzilá-lo i!» Nenhum dos seus amigos se pôde aproximar na hora da morte, porque estavam fora da lei, fugitivos, exilados ou mortos. A sua casa azul do cerro estava meia em ruínas, o chão queimado e os vidros partidos, não se sabia se era obra dos militares, como diziam os vizinhos, se dos vizinhos, como diziam os militares. Velaram-no ali, alguns, poucos, que se atreveram a ir e jornalistas de todas as partes do mundo que apareceram para dar a notícia do enterro. O senador Trueba era seu inimigo ideológico mas recebera-o muitas vezes em casa e sabia de cor os seus versos. Apresentou-se no velório vestido de negro rigoroso com a neta Alba. Velaram ambos junto do singelo ataúde de madeira e acompanharam-no até ao cemitério numa manhã triste. Alba levava na mão um ramo dos primeiros cravos da temporada, vermelhos como o sangue. O pequeno cortejo percorreu a pé, lentamente, o caminho do cemitério, entre duas filas de soldados que faziam cordão nas ruas. As pessoas iam em silêncio. Mas logo alguém gritou roucamente o nome do Poeta e uma só voz saída de todas as gargantas respondeu: «Presente! Agora e sempre!» Foi como se tivessem aberto uma válvula e toda a dor, o medo e a raiva daqueles dias saísse dos peitos e rodasse pela rua e subisse em clamor terrível até às nuvens negras do céu. Outro gritou: «Companheiro Presidente!» E responderam todos num só lamento, pranto de homem: «Presente!» A pouco e pouco o funeral do Poeta transformou-se no acto simbólico de enterrar a liberdade. Muito perto de Alba e do avô, os operadores de câmara de televisão sueca filmavam para enviar para o gelado país de Nobel a visão pavorosa das metralhadoras colocadas de ambos os lados da rua, as caras das pessoas, o ataúde coberto de flores, o grupo de mulheres silenciosas que se apinhavam às portas da morgue, a dois quarteirões do cemitério, para ler as listas dos mortos. A voz de todos elevou-se em canto e o ar encheu-se com as palavras de ordem proibidas, gritando que o povo unido jamais será vencido, fazendo frente às armas que tremiam nas mãos dos soldados. O cortejo passou diante de uma construção e os operários largando as ferramentas, tiraram os capacetes e fizeram fila, cabisbaixos. Um homem caminhava com a camisa gasta nos punhos, sem colete e com os sapatos rotos, recitando os versos mais revolucionários do Poeta, com as lágrimas caindo-lhe pelas faces. Seguia-o o olhar atónito do senador Trueba, que caminhava ao lado. - É pena que fosse comunista - disse o Senador à neta. – Tão bom poeta e com as ideias tão confusas. Se tivesse morrido antes da rebelião militar, suponho que teria recebido uma homenagem nacional. - Soube morrer como soube viver, avô - respondeu Alba. Estava convencida de que morrera no devido tempo, porque nenhuma homenagem podia ter sido maior que aquele modesto desfile de uns quantos homens e mulheres que o enterraram numa campa emprestada, gritando pela última vez os seus versos de justiça e liberdade. Dois dias depois, apareceu no jornal um aviso da Junta Militar decretando luto nacional pelo Poeta e autorizando a pôr as bandeiras a meia haste nas casas particulares que o desejassem. A autorização vigorava desde o dia da sua morte até ao dia da publicação do aviso. Do mesmo modo que não pôde sentar-se a chorar a morte do tio Jaime, Alba também não pôde perder a cabeça a pensar em Miguel ou a lamentar o Poeta. Estava absorvida na sua tarefa de procurar os desaparecidos, consolar os torturados que regressavam com as costas em carne viva e os olhos transtornados e procurar alimentos para os refeitórios dos padres. No entanto, no silêncio da noite, quando a cidade perdia a sua normalidade utilitária e a sua paz de opereta, ela sentia-se assustada por pensamentos atormentados que tinha acalmado durante o dia. A essa hora só circulavam na rua os furgões cheios de cadáveres e de presos e os automóveis da polícia, como lobos perdidos, ululando na escuridão do toque de recolher. Alba tremia na cama. Apareciam os fantasmas desgarrados de tantos mortos desconhecidos, ouvia a grande casa respirando como um arquejo de velha, apurava o ouvido e sentia nos ossos os ruídos terríveis: uma travagem longínqua, um bater de porta, tiroteios, o barulho das botas, um grito surdo. A seguir vinha o longo silêncio que durava até ao amanhecer, quando a cidade voltava a viver e o sol parecia apagar os terrores da noite. Não era a única pessoa acordada em casa. Muitas vezes encontrava o avô em camisa de dormir e pantufas, mais velho e mais triste que de dia, aquecendo-se com uma chávena de caldo e resmungando blasfémias de flibusteiro, porque lhe doíam os ossos e a alma. Também a mãe mexia na cozinha ou passava como uma aparição da meia-noite pelos quartos vazios. Assim passaram os meses e tornou-se evidente para todos, inclusiva-mente para o senador Trueba, que os militares tinham tomado o poder para ficar com ele e não para entregar o governo aos políticos de direita que tinham propiciado o golpe. Era uma raça à parte, irmãos entre si, que falavam um idioma diferente do dos civis e com quem o diálogo era como que uma conversa de surdos, porque a menor dissidência era considerada traição no seu esquemático código de honra. Trueba viu que tinham planos messiânicos que não incluíam os políticos. Um dia, comentou a situação com Blanca e Alba. Lamentou que a acção dos militares, cujo propósito era acabar com o perigo de uma ditadura marxista, tivessem condenado o pais a uma ditadura mais severa e, pelos vistos, destinada a durar um século. Pela primeira vez na sua vida, o senador Trueba admitiu que se tinha equivocado. Afundado na poltrona, como um velho acabado, viram-no chorar em silêncio. Não chorava pela perda do poder. Chorava pela pátria. Então, Blanca ajoelhou-se a seu lado, pegou-lhe na mão e confessou que tinha Pedro Tercero Garcia a viver como um anacoreta, escondido num dos quartos abandonados que mandara construir para Clara, no tempo dos espíritos. No dia seguinte ao golpe tinham-se publicado listas de pessoas que deviam apresentar-se às autoridades. O nome de Pedro Tercero Garcia estava entre elas. Alguns, que continuavam a pensar que naquele país nunca se passava nada, foram pelos seus próprios pés entregar-se ao Ministério da Defesa e pagaramno com a vida. Mas Pedro Tercero teve primeiro que os outros o pressentimento da ferocidade do novo regime, talvez porque durante aqueles três anos tivesse aprendido a conhecer as Forças Armadas e não acreditava na história de serem diferentes das de outros lados. Nessa mesma noite, durante o toque de recolher, arrastou-se até à grande casa da esquina e chamou à janela de Blanca. Quando ela assomou, com a vista turvada pela enxaqueca, não o reconheceu, porque tinha cortado a barba e trazia óculos. - Mataram o Presidente - disse Pedro Tercero. Ela escondeu-o nos quartos vazios. Arranjou um refúgio de emergência, sem suspeitar que teria que o manter oculto durante vários meses, enquanto os soldados passavam o pais a pente fino à sua procura. Blanca pensou que ninguém se lembraria de que Pedro Tercero Garcia estava em casa do senador Trueba no próprio momento em que este escutava de pé o Te Deum solene na catedral. Para Blanca foi o período mais feliz da sua vida. Para ele, no entanto, as horas passavam-se com a mesma lentidão como se estivesse preso. Passava o dia entre quatro paredes, com a porta fechada à chave, para que ninguém tomasse a iniciativa de entrar para limpar e a janela com as persianas e as cortinas corridas. Não entrava a luz do dia, mas podia adivinhá-la pela mudança ténue das frinchas da persiana. De noite abria a janela de par em par, para arejar o quarto - onde tinha de ter um balde tapado para fazer as suas necessidades -, e para respirar a plenos pulmões o ar da liberdade. Ocupava o tempo a ler livros de Jaime, que Blanca lhe ia levando às escondidas, ouvindo os ruídos da rua, os sussurros do rádio ligado no volume mais baixo. Blanca conseguiu-lhe uma guitarra em que pôs trapos de lã debaixo das cordas, para ninguém o ouvir compor em surdina as suas canções de viúvas, de órfãos, de prisioneiros e de desaparecidos. Tratou de organizar um horário sistemático para preencher o dia. Fazia ginástica, lia, estudava inglês, dormia a sesta, escrevia música e tornava a fazer ginástica, mas com tudo isso sobravam-lhe intermináveis horas de ócio, até que finalmente ouvia a chave na fechadura da porta e via entrar Blanca, que lhe levava os jornais, a comida, água limpa para se lavar. Faziam amor com desespero, inventando novas fórmulas proibidas que o medo e a paixão transformavam em alucinadas viagens às estrelas. Blanca já se tinha resignado à castidade, à idade e aos seus variados achaques, mas o sobressalto do amor deu-lhe uma nova juventude. Acentuou-se-lhe a luz da pele, o ritmo do andar e a cadência da voz. Sorria para dentro e andava como que adormecida. Nunca tinha sido tão formosa. Até o pai deu conta disso atribuindo-o à paz da abundância. «Desde que Blanca não tem que ir para a bicha, parece mais nova.» Alba também reparou. Observara a mãe e o seu estranho sonambulismo parecia-lhe suspeito, assim como a sua nova mania de levar comida para o quarto. Em mais do que uma ocasião teve a ideia de a espiar de noite, mas vencia-a o cansaço das suas múltiplas ocupações de auxílio e quando tinha insónias, tinha medo de se aventurar pelos quartos vazios onde sussurravam os fantasmas. Pedro Tercero enfraqueceu e perdeu o bom humor e a doçura que o tinham caracterizado até então. Aborrecia-se, amaldiçoava a sua prisão voluntária e bramava de impaciência por saber notícias dos amigos. Só a presença de Blanca o apaziguava. Quando ela entrava no quarto, abraçava-a como um alienado, para acalmar os terrores do dia e o tédio das semanas. Começou a obcecá-lo a ideia de que era traidor e cobarde, por não ter compartilhado a sorte de tantos outros e que o mais honroso seria entregar-se e enfrentar o seu destino. Blanca procurava dissuadi-lo com os seus melhores argumentos, mas ele parecia não a ouvir. Tentava retê-lo com a força do amor recuperado, dava-lhe comida na boca, dava-lhe banho esfregando-o com um pano húmido e punha-lhe pó de talco como a uma criança, cortava-lhe o cabelo e as unhas, barbeava-o. No fim, acabou por ter de lhe pôr comprimidos tranquilizantes na comida e soporíferos na água, para o fazer cair num sono profundo e tormentoso, do qual despertava com boca seca e o coração mais triste. Em poucos meses, Blanca viu que não podia tê-lo prisioneiro indefinidamente e abandonou os planos de lhe diminuir o espirito para o tornar o amante perpétuo. Compreendeu que estava a morrer em vida porque para ele a liberdade era mais importante do que o amor, e que não havia p lulas milagrosas capazes de o fazer mudar de atitude. - Ajude-me, papá! - suplicou Blanca ao senador Trueba. - Tenho de fazê-lo sair do país. O velho ficou paralisado pelo espanto e compreendeu quanto estava gasto, ao procurar a raiva e o ódio e não os poder encontrar em nenhum lado. Pensou no camponês que tinha partilhado um amor de meio século com a filha e não pôde descobrir nenhuma razão para o detestar, nem seque o seu poncho, a sua barba socialista, a sua tenacidade ou as suas malditas galinhas perseguidoras de raposos. - Caramba! Temos de procurar-lhe asilo, porque se o encontram nesta casa, fodem-nos a todos - foi a única coisa que lhe ocorreu dizer. Blanca deitou-lhe os braços ao pescoço e cobriu-o de beijos, chorando como uma menina. Era a primeira carícia espontânea que fazia ao pai desde a mais remota infância. - Eu posso metê-lo numa embaixada - disse Alba. - Mas temos de esperar o momento propício e terá de saltar um muro. - Não será necessário, filhinha - respondeu o senador Trueba. - Ainda tenho amigos influentes neste país. Quarenta e oito horas depois, abriu-se a porta do quarto de Pedro Tercero Garcia, mas em vez de Blanca apareceu o senador Trueba no umbral. O fugitivo pensou que tinha chegado finalmente a sua hora e, de certo modo, alegrou-se. - Venho tirá-lo daqui - disse Trueba. - Porquê? - perguntou Pedro Tercero. - Porque Blanca me pediu - respondeu o outro. - Vá para o caralho - balbuciou Pedro Tercero. - Bom, para lá vamos. Você vem comigo. Os dois sorriram simultaneamente. No pátio da casa, o carro prateado de um embaixador nórdico estava à espera. Meteram Pedro Tercero na bagageira do veículo, encolhido como um fardo, cobriram-no com sacos do mercado cheios de hortaliças. Nos assentos instalaram-se Blanca, Alba, o senador Trueba e o seu amigo embaixador. O motorista levou-os à Nunciatura Apostólica, passando em frente de uma barreira de carabineiros, sem que ninguém os detivesse. No portão da Nunciatura havia guarda reforçada, mas ao reconhecer o senador Trueba e ao ver a placa diplomática do automóvel deixaram-nos passar com uma saudação. Detrás do portão, a salvo na sede do Vaticano, libertaram Pedro Tercero, tirando-o de baixo de uma montanha de folhas de alface e de tomates rebentados. Levaram-no ao gabinete do Núncio, que o esperava vestido com a sotaina episcopal e com um salvo-conduto acabado de passar, para o mandar para o estrangeiro com Blanca, que tinha decidido viver no exílio o amor adiado desde a meninice. O Núncio deu-lhes a bênção. Era um admirador de Pedro Tercero Garcia e tinha todos os seus discos. Enquanto o sacerdote e o embaixador nórdico discutiam sobre a situação internacional, a família despedia-se. Blanca e Alba choravam de angústia. Nunca se tinham separado. Esteban Trueba abraçou apertadamente a filha, sem lágrimas, mas com a boca apertada, a tremer, esforçando-se por conter os soluços. - Não fui um bom pai para si, filha - disse. - É possível perdoar-me e esquecer o passado? - Gosto muito de si, papá! - chorou Blanca, deitando-lhe os braços ao pescoço, abraçando-o desesperadamente, cobrindo-o de beijos. Depois, o velho virou-se para Pedro Tercero e olhou-o nos olhos. Estendeu-lhe a mão, mas não conseguiu apertar a do outro, porque lhe faltavam alguns dedos. Então abriu os braços e os dois homens, num nó apertado, despediram-se, livres por fim dos ódios e dos rancores que durante tantos anos lhes tinham manchado a existência. - Cuidarei da sua filha e tentarei fazê-la feliz, senhor - disse Pedro Tercero Garcia com a voz quebrada. - Não duvido. Vão em paz, meus filhos - murmurou o velho. Sabia que não tornaria a vê-los. O senador Trueba ficou sozinho em casa com a neta e alguns empregados. Pelo menos assim pensava. Mas Alba resolvera adoptar a ideia da mãe e usava a parte abandonada da casa para esconder gente por uma ou duas noites, até encontrar outro lugar mais seguro ou a forma de tirá-la do país. Ajudava os que viviam na sombra, fugindo durante o dia, misturados com o bulício da cidade, mas que ao cair da noite deviam estar ocultos, de cada vez num sítio diferente. As horas mais perigosas eram durante o toque de recolher, quando os fugitivos não podiam sair à rua e a policia os podia caçar à vontade. Alba pensou que a casa do avô era o último sítio que vasculhariam. Pouco a pouco, transformou os quartos vazios num labirinto de refúgios secretos onde escondia os protegidos, por vezes, famílias completas. O senador Trueba só ocupava a biblioteca, a casa de banho e o seu quarto. Vivia ali rodeado pelos seus móveis de acaju, as suas vitrinas vitorianas e as alcatifas persas. Mesmo para um homem tão pouco propenso aos impulsos do sentimento, aquela mansão sombria era inquietante: parecia ter um monstro oculto. Trueba não compreendia a causa da sua mágoa, porque sabia que os ruídos estranhos que os criados diziam ouvir, provinham de Clara, que vagueava pela casa na companhia dos espíritos amigos. Tinha surpreendido muitas vezes a mulher deslizando pelos salões com a sua túnica branca e o seu riso de rapariga. Fingia não a ver, ficava imóvel e até deixava de respirar, para não a assustar. Se fechava os olhos fazendo-se adormecido, podia sentir o roçar suave dos seus dedos na testa, a sua respiração fresca passar como um sopro, o roçar do seu cabelo ao alcance da mão. Não tinha motivo para suspeitar de algo anormal, no entanto fazia por não se aventurar na região encantada que era o reino da mulher e o mais longe onde ia era a zona neutra da cozinha. A antiga cozinheira tinha-se ido embora, porque num tiroteio tinham-lhe morto por engano o marido e o seu filho único, que estava numa aldeia do Sul, fora pendurado num poste com as tripas enroladas ao pescoço, como vingança do povo por ter cumprido ordens dos superiores. A pobre mulher perdeu a razão e em pouco tempo Trueba perdeu a paciência, farto de encontrar na comida os cabelos que ela arrancava no seu lamento ininterrupto. Por essa altura, Alba estreou-se nas panelas, valendo-lhe um livro de receitas, mas apesar da sua boa vontade, Trueba acabou por jantar quase todas as noites no Clube, para ter uma refeição decente pelo menos uma vez por dia. Isso deu a Alba maior liberdade para o tráfego de fugitivos e maior segurança para meter e tirar a gente de casa antes do toque de recolher, sem o avô suspeitar. Um dia apareceu Miguel. Ela estava a chegar a casa, quando ele saiu ao seu encontro. Tinha estado à espera dela escondido nas moitas do jardim. Pintara o cabelo de amarelo pálido e vestia um fato azul assertoado. Parecia um vulgar empregado de banco, mas Alba reconheceu-o logo e não pôde calar um grito de júbilo que lhe subiu das entranhas. Abraçaram-se no jardim, à vista dos transeuntes e de quem quis ver, até que caíram em si e compreenderam o perigo. Alba levou-o para dentro de casa, para o seu quarto. Caíram na cama num entrelaçado de braços e pernas, chamando um ao outro os nomes secretos que usavam nos tempos da cave, amaram-se com desespero, até que sentiram a vida a escapar-selhes e a alma a rebentar, ficando quietos, a ouvir as estrepitosas batidas dos seus corações, até se acalmarem um pouco. Alba olhou-o então pela primeira vez e viu que tinha estado amando um desconhecido, que não só tinha o cabelo de um viking, mas que não tinha a barba de Miguel, nem óculos redondos de perceptor e parecia muito mais magro. «Estás horrível!», soprou-lhe ao ouvido. Miguel tinha-se transformado num dos chefes da guerrilha, cumprindo assim o destino que ele próprio traçara desde a adolescência. Para descobrir o seu paradeiro, tinham interrogado muitos homens e mulheres, o que pesava no espírito de Alba como pedra de moinho, mas para ele isso não era mais que uma parte do horror da guerra, e estava disposto a correr sorte igual quando chegasse o momento de encobrir outros. Entretanto, lutava na clandestinidade, fiel à teoria de que à violência dos ricos se havia que opor a violência do povo. Alba, que imaginara mil vezes que ele estava preso ou que o tinham morto de alguma maneira horrível, chorava de alegria, saboreando-lhe o cheiro, o corpo, a voz, o calor, o afagar das mãos calosas pelo uso das armas e o hábito de desafiar, rezando, e amaldiçoando e beijando-o e odiando-o por tanto sofrimento acumulado e desejando morrer ali mesmo, para não tornar a penar na sua ausência. - Tinhas razão, Miguel. Passou-se tudo o que dizias que se ia passar - admitiu Alba, soluçando no seu ombro. Contou-lhe das armas que roubara ao avô e que escondera com o tio Jaime e ofereceu-se para ir com ele buscá-las. Teria gostado de lhe dar também as que não tinham podido roubar e tinham ficado na adega da casa, mas, poucos dias depois do golpe militar, tinham ordenado à população civil que entregasse tudo o que se pudesse considerar arma, até as facas de mato e os canivetes das crianças. As pessoas deixavam os seus pacotinhos embrulha-dos em papel de jornal à porta das igrejas, porque não se atreviam a levá-los aos quartéis, mas o senador Trueba, que tinha armas de guerra, não sentiu nenhum temor porque as suas estavam destinadas a matar comunistas, como toda a gente sabia. Telefonou para um amigo, o general Hurtado e este mandou um camião do exército para as levar. Trueba levou os soldados até ao quarto das armas e ai pôde verificar, mudo de surpresa que metade das caixas estavam cheias de pedras e palha, mas compreendeu que se admitisse a falta, ia incriminar alguém da sua própria família ou a meter-se ele próprio num sarilho. Começou a dar desculpas que ninguém lhe pedia, já que os soldados não podiam saber o número de armas que ele tinha comprado. Suspeitava de Blanca e Pedro Tercero Garcia, mas as faces coradas da neta também o fizeram duvidar. Depois que os soldados levaram as caixas assinando um recibo, pegou Alba por um braço e sacudiu-a como nunca tinha feito, para confessar se tinha alguma coisa a ver com as metralhadoras e as espingardas que faltavam: «Não me perguntes o que não queres que diga, avô», respondeu Alba olhando-o nos olhos. Não voltaram a falar do assunto. - O teu avô é um desgraçado, Alba. Alguém o vai matar como ele merece - disse Miguel. - Vai morrer na cama. Já está muito velho - disse Alba. - Quem com ferro mata, não pode morrer com chapeladas. Talvez eu mesmo o mate um dia. - Não o queira Deus, porque obrigavas-me a fazer o mesmo contigo - respondeu Alba ferozmente. Miguel explicou-lhe que não podiam ver-se durante muito tempo, talvez nunca mais. Tentou explicar-lhe o perigo que significava ser companheira de um guerrilheiro, mesmo que estivesse protegida pelo apelido do avô, mas ela chorou tanto e abraçou-o com tanta angústia, que ele teve que prometer-lhe que embora com o risco das suas vidas, procurariam a ocasião de se verem algumas vezes. Miguel então acedeu, também, ir com ela buscar as armas e munições enterradas na montanha, porque era do que mais necessitava na sua luta temerária. - Espero que não estejam transformadas em sucata – murmurou Alba. - E que eu consiga recordar o sítio exacto, porque já lá vai um ano. Duas semanas depois, Alba organizou um passeio com as crianças do seu refeitório popular numa camioneta que lhe emprestaram os padres da paróquia. Levava cestos com a merenda, um saco de laranjas, bolas e uma guitarra. Nenhuma das crianças notou que recolhera no caminho um homem louro. Alba conduziu a pesada camioneta, com a sua carga de crianças, pelo mesmo caminho da montanha que antes tinha percorrido com o tio Jaime. Duas patrulhas mandaram-na parar e teve de abrir os cestos da comida, mas a alegria contagiante das crianças e o inocente conteúdo das bolsas afastaram toda a suspeita dos soldados. Puderam chegar tranquilos ao sítio onde as armas estavam escondidas. As crianças brincaram ao agarra e às escondidas. Miguel fez com elas um jogo de futebol, sentou-as à sua volta e contou-lhes histórias e depois todos cantaram até enrouquecer. Rapidamente desenhou um plano do local para regressar com os companheiros pelas sombras da noite. Foi um agradável dia no campo em que por algumas horas puderam esquecer a tensão do estado de guerra e gozar o morno sol da montanha, ouvindo a gritaria das crianças que corriam entre as pedras com o estômago cheio pela primeira vez em muitos meses. - Miguel, tenho medo - disse Alba. - Será que nunca vamos poder fazer um vida normal? Porque não vamos para o estrangeiro? Porque não escapamos agora, que ainda é tempo? Miguel apontou as crianças e Alba compreendeu. - Então deixa-me ir contigo! - suplicou ela, como tantas vezes o tinha feito. - Não podemos ter uma pessoa sem treino neste momento. Muito menos uma mulher apaixonada - sorriu Miguel. - É melhor que tu continues cumprindo a tua tarefa. Há que ajudar estes pobres miúdos. até virem tempos melhores. - Pelo menos, diz-me como te posso encontrar. - Se a polícia te apanhar, o melhor é que não saibas nada - respondeu Miguel. Ela estremeceu. Nos meses seguintes, Alba começou a traficar com o mobiliário da casa. A princípio só se atreveu a tirar as coisas dos quartos e da cave, mas quando vendeu tudo, começou a levar uma por uma as cadeiras antigas do salão, as bengalas barrocas, os cofres coloniais, os biombos trabalhados, até ao jogo de toalhas da sala de jantar. Trueba deu por isso mas não disse nada. Calculava que a neta estivesse a dar ao dinheiro um fim proibido, como julgava que tinha feito com as armas que lhe roubara, mas preferiu não o saber, para poder continuar a aguentar-se em precária estabilidade num mundo que se fazia em pedaços. Sentia que os acontecimentos escapavam ao seu controlo. Compreendeu que a única coisa que realmente lhe importava era não perder a neta, porque ela era o único laço que o unia à vida. Por isso também não disse nada quando ela foi tirando, um por um, os quadros das paredes e as tapeçarias antigas para as vender aos novos ricos. Sentia-se muito velho e muito cansado, sem forças para lutar. Já não tinha as ideias tão claras e tinha-se-lhe apagado a fronteira entre o que lhe parecia bom e o que considerava mau. De noite, quando o sono o surpreendia, tinha pesadelos com casinhas de tijolo incendiadas. Pensou que se a sua única herdeira decidia deitar a casa pela janela, ele não o podia evitar, porque lhe faltava muito pouco para estar no caixão e não precisaria mais do que da mortalha. Alba quis falar com ele, para lhe dar uma explicação, mas o velho negou-se a ouvir a história dos meninos com fome que recebiam comida de esmola com o produto da sua tapeçaria de Aubisson, ou dos desempregados que sobreviviam mais uma semana com o seu dragão chinês de pedra. Tudo isso, teimava ele, era uma monstruosa patranha do comunismo internacional, mas, no caso remoto de ser verdade, não cabia a Alba tomar essa responsabilidade, mas ao governo, ou em última instância à Igreja. No entanto, no dia em que chegou a casa e não viu o retrato de Clara pendurado à entrada, considerou que o caso estava a ultrapassar os limites da sua paciência e foi ter com a neta. - Onde diabo está o quadro da tua avó? - bradou. - Vendi-o ao consul inglês, avô. Disse-me que o poria num museu de Londres. - Proíbo-te que tornes a tirar seja o que for desta casa! A partir de amanhã, terás uma conta no banco, para os teus alfinetes - respondeu. Esteban Trueba depressa viu que Alba era a mulher mais cara da sua vida e que um harém de cortesãs não teria sido tão caro como aquela neta de cabeleira verde. Não a censurou porque tinham voltado os tempos da boa sorte e quanto mais gastava mais tinha. Desde que a actividade política estava proibida sobrava-lhe tempo para os negócios e calculou que, contra todos os prognósticos, ia morrer muito rico. Colocava o dinheiro nas novas financia-doras que proporcionavam aos investidores multiplicar o seu dinheiro, de um dia para o outro, de maneira espantosa. Descobriu que a riqueza lhe dava um imenso tédio, porque se tornava fácil ganhá-la, sem encontrar aliciante de maior e nem sequer o prodigioso talento para o esbanjamento da sua neta conseguia despejar-lhe as algibeiras. Com entusiasmo reconstruiu e melhorou Las Tres Marias, mas depois perdeu o interesse em qualquer outro empreendimento, porque notou que graças ao novo sistema económico não era necessário esforçar-se e produzir, uma vez que o dinheiro atraí mais dinheiro e sem nenhuma participação sua as contas bancárias engrossavam dia a dia. Assim, fazendo contas, deu um passo que nunca imaginou dar na vida: mandava todos os meses um cheque a Pedro Tercero Garcia, que vivia com Blanca, exilados no Canadá. Ambos se sentiam ali plenamente realizados na paz do amor satisfeito. Ele escrevia canções revolucionárias para os trabalha-dores, para os estudantes e, sobretudo, para a alta burguesia que as tinha adoptado como moda, traduzidas para inglês e francês, com grande êxito, apesar das galinhas e raposos serem criaturas subdesenvolvidas, sem o esplendor zoológico das águias e dos lobos desse gelado pais do Norte. Blanca, entretanto, plácida e feliz, gozava pela primeira vez na sua vida de uma saúde de ferro. Instalou um grande forno em casa para cozer os presépios de monstros que se vendiam muito bem, por se tratar de artesanato indígena, tal como previra Jean de Satigny, vinte e cinco anos atrás, quando os quis exportar. Estes negócios, os cheques do pai e a ajuda canadiana, davam o suficiente e Blanca, por precaução, escondeu no seu canto secreto a meia de lã com as inesgotáveis jóias de Clara. Esperava nunca as vender para que um dia Alba as pudesse usar. Esteban Trueba não soube que a polícia política tinha vigiado a casa até à noite em que levaram Alba. Estava a dormir e, por casualidade, não estava ninguém escondido no labirinto dos quartos abandonados. As coronhadas na porta da casa tiraram o velho do sono com o nítido pressentimento da fatalidade. Mas Alba tinha despertado antes, quando ouviu as travagens dos automóveis, o ruído dos passos, as ordens a meia voz e começou a vestir-se porque não teve dúvidas de que chegara a sua hora. Nesses meses, o Senador tinha aprendido que nem s quer a sua limpa trajectória de golpista era garantia contra o terror. Nunca imaginou, todavia, que veria entrar na sua casa, ao abrigo do toque de recolher, uma dúzia de homens sem uniforme, armados até aos dentes, que o tiraram da cama sem contemplações e o levaram pelo braço até ao salão, sem lhe deixar calçar as pantufas ou agasalhar-se com um xaile. Viu outros que abriam com um pontapé a porta do quarto de Alba e entravam com as metralhadoras na mão, viu a neta completamente vestida, pálida, mas serena, esperando-os de pé, viu-os dando-lhe empurrões e levando-a com armas apontadas, até ao salão onde lhe ordenaram que ficasse junto do velho sem fazer o menor movimento. Ela obedeceu sem pronunciar uma só palavra, alheia à raiva do avô e à violência dos homens que percorriam a casa partindo as portas, esvaziando os armários à coronhada, tombando os móveis, esventrando os colchões, revol-vendo o conteúdo dos roupeiros, aos pontapés nas paredes e gritando ordens, em busca de guerrilheiros escondidos, de armas clandestinas e outras provas. Tiraram as criadas das camas e fecharam-nas num quarto, vigiadas por um homem armado. Deram voltas às estantes da biblioteca e os adornos e obras de arte do Senador rolaram pelo chão com estrépito. Os livros do túnel de Jaime foram parar ao pátio, onde os empilharam, os regaram com gasolina e os queimaram numa pira infame, que foram alimentando com os livros mágicos dos baús encantados do bisavô Marcos, a edição esotérica de Nicolau, as obras de Marx em encadernação de couro e até as partituras das óperas do avô, numa fogueira escandalosa que encheu de fumo todo o bairro e que, em tempos normais, teria atraído os bombeiros. - Entreguem todas as agendas, livros com direcções, os livros de cheques, todos os documentos pessoais que tenham! - ordenou o que parecia o chefe. - Sou o senador Trueba! Não me reconhece, homem de Deus? - gritou o avo desesperado. - Não podem fazer-me isto! é uma agressão. Sou amigo do general Hurtado! - Cala-te, velho de merda! Enquanto eu não te autorizar não tens o direito de abrir a boca! - respondeu o outro com brutalidade. Obrigaram-no a entregar o conteúdo da secretária e meteram em sacos tudo o que lhes pareceu importante. Enquanto um grupo acabava de revistar a casa, outro continuava a atirar livros pela janela. No salão ficaram quatro homens sorridentes, chocarreiros, ameaçadores, que puseram os pés em cima dos móveis, beberam uisque escocês pela garrafa e partiram um a um os discos da colecção de clássicos do senador Trueba. Alba calculou que tinham passado pelo menos duas horas. Estava a tremer, não era frio, mas de medo. Pensara que aquele momento chegaria um dia, mas tivera a esperança irracional de que a influência do avô podia protegê-la. Mas ao vê-lo encolhido num sofá, pequeno e miserável como um velho enfermo, compreendeu que não podia esperar ajuda. - Assina aqui! - ordenou o chefe a Trueba, pondo-lhe um papel diante do nariz. - É uma declaração de que entramos com uma ordem judicial, e que te mostramos as nossas identificações, que tudo está em regra, que procedemos com todo o respeito e boa educação, que não tens nenhuma queixa a fazer. Assina! - Nunca assinarei isso! - exclamou o velho furioso. O homem deu uma rápida meia volta e esbofeteou Alba. O golpe atirou-a ao chão. O senador Trueba ficou paralisado de surpresa e de espanto, compreendendo por fim que tinha chegado a hora da verdade, depois de quase noventa anos a viver sob a sua própria lei. - Sabias que a tua neta é a puta de um guerrilheiro? – disse o homem. Abatido, o senador Trueba assinou o papel. Depois aproximou-se a custo da neta e abraçou-a, acariciando-lhe o cabelo com uma ternura nele desconhecida. - Não te preocupes, filhinha. Tudo se vai arranjar, não podem fazer-te nada, isto é um erro, fica tranquila - murmurava. Mas o homem afastou-o brutalmente e gritou aos outros que tinham de ir. Dois brutamontes levaram Alba pelos braços, quase pelo ar. A última coisa que ela viu foi a figura patética do avô, pálido como a cera, a tremer, em camisa de dormir e descalço, que do umbral da porta lhe assegurava que no dia seguinte ia resgatá-la, falaria directamente com o general Hurtado, iria com os seus advogados buscá-la onde quer que ela estivesse, para a trazer de volta para casa. Fizeram-na subir para uma camioneta para junto do homem que lhe tinha batido e de outro que guiava assobiando. Antes de lhe porem tiras de fita gomada nas pálpebras, olhou pela última vez a rua vazia e silenciosa, admirada de que apesar do barulho e dos livros queimados nenhum vizinho tivesse assomado para ver. Supôs que, tal como muitas vezes ela própria tinha feito, estavam a espreitar pelas frinchas das persianas e pelas pregas das cortinas, ou que tinham tapado a cabeça com almofadas para não saber. A camioneta pôs-se em marcha e ela, cega pela primeira vez, perdeu a noção do espaço e do tempo. Sentiu uma mão húmida e grande na perna, apertando, beliscando, subindo, explorando, uma respiração pesada na cara, sussur-rando vou-te aquecer puta, já vais ver, e outras vozes e risos, enquanto o veiculo dava voltas e voltas, no que lhe pareceu uma viagem interminável. Não soube onde a levavam até que ouviu o ruído de água e sentiu as rodas da camioneta passar sobre madeira. Então adivinhou o seu destino. Invocou os espíritos dos tempos da mesa pé-de-galo e do irrequieto açucareiro da avó, invocou os fantasmas capazes de desviar o rumo dos acontecimentos, mas eles pareciam tê-la abandonado, porque a camioneta seguiu o mesmo caminho. Sentiu uma travagem, ouviu um pesado portão que se abria chiando e se tornava a fechar depois de ela entrar. Então Alba entrou no pesadelo, naquele que a sua avó tinha visto na sua carta astrológica ao nascer e Luísa Mora, num momento de premonição. Os homens ajudaram-na a descer. Não conseguia dar dois passos. Recebeu o primeiro golpe nas costelas e caiu de joelhos sem poder respirar. Os dois levantaram-na pelos sovacos e arrastaram-na um longo espaço. Sentiu os pés sobre a terra e depois sobre a superfície áspera de um chão de cimento. Pararam. - Esta é a neta do senador Trueba, coronel - ouviu dizer. - Já vi - respondeu outra voz. Alba reconheceu sem hesitar a voz de Esteban Garcia e compreendeu nesse momento que ele a tinha esperado desde o dia remoto em que a sentara nos joelhos, quando ela era uma criança. Capítulo XIV A Hora da Verdade Alba estava encolhida no escuro. Tinham-lhe tirado com um puxão a fita gomada dos olhos e no seu lugar puseram-lhe uma venda apertada. Tinha medo. Recordou o treino do tio Nicolau quando a prevenia contra o perigo de ter medo do medo, e concentrou-se para dominar o tremor do corpo e fechar os ouvidos aos ruídos pavorosos que lhe chegavam do exterior. Tentou evocar os momentos felizes com Miguel, procurando ajuda para enganar o tempo e encontrar forças para o que se ia passar, dizendo a si própria que devia suportar umas quantas horas sem que os nervos a atraiçoassem, até que o avô pudesse mover a pesada máquina do seu poder e influências, para a tirar dali. Procurou na memória um passeio com Miguel pela costa, no Outono, muito antes que o furacão dos acontecimentos virasse o mundo de pernas para o ar, na época em que as coisas ainda se chamavam por nomes conhecidos e as palavras tinham um significado único, quando povo, liberdade e companheiro eram só isso, povo, liberdade e companheiro e não ainda contra-senhas. Tentou tornar a viver esses momentos, a terra vermelha e húmida, o intenso odor das matas de pinheiros e eucaliptos, onde o tapete de folhas secas apodrecia, depois do longo e cálido Verão, e onde a luz acobreada do Sol se filtrava por entre as copas das árvores. Tentou recordar o frio, o silêncio e essa preciosa sensação de serem os donos da terra, de ter vinte anos e ter a vida à sua frente, de se amarem tranquilos, ébrios de perfume a bosque e a amor, sem passado, sem suspeitar o futuro, com a única e incrível riqueza desse instante presente, em que se olhavam, se ouviam, se beijavam, se exploravam, envolvidos pelo murmúrio do vento entre as árvores e pelo rumor próximo das ondas rebentando contra as rochas ao pé da falésia, estalando num fragor de espuma cheirosa, e eles os dois, abraçados dentro do mesmo poncho como siameses dentro da mesma pele, rindo e jurando que seria para sempre, convencidos de que eram os únicos a descobrir o amor em todo o universo. Alba ouvia os gritos, os longos gemidos e o rádio no máximo. O bosque, Miguel, o amor, perderam-se no túnel profundo do seu terror e resignou-se a enfrentar o destino sem subterfúgios. Calculou que tinha passado toda a noite e uma boa parte do dia seguinte, quando a porta se abriu pela primeira vez e dois homens a tiraram da cela. Levaram-na entre insultos e ameaças à presença do coronel Garcia, a quem ela podia reconhecer de olhos fechados, pelo hábito da sua maldade, mesmo antes de lhe ouvir a voz. Sentiu-lhe as mãos agarrando-lhe a cara, os dedos grossos no pescoço e nas orelhas. - Agora vais-me dizer onde está o teu amante - disse. - Isso evitará muita chatice aos dois. Alba respirou aliviada. Então não tinham detido Miguel! - Quero tomar banho - respondeu Alba com a voz mais firme que pôde articular. - Vejo que não vais cooperar, Alba. É pena – suspirou Garcia. - Os rapazes terão de cumprir o seu dever, eu não posso impedi-lo. Houve um breve silêncio à sua volta e ela fez um esforço desmedido para recordar a mata de pinheiros e o amor de Miguel, mas as ideias enredaram-se-lhe e já não sabia se estava a sonhar, nem de onde provinha aquela pestilência de suor, de excremento, de sangue e urina e a voz do locutor de futebol que anunciava uns golos filandeses que nada tinham a ver com ela, entre outros berros próximos e precisos. Um bofetão brutal atirou-a ao chão, mãos violentas voltaram a pô-la de pé, dedos ferozes apertaram-lhe os seios triturando-lhe os mamilos e o medo venceu-a por completo. Vozes desconhecidas pressionavam-na, ouvia o nome de Miguel, mas não sabia o que lhe perguntavam e só repetia incansavelmente um não monumental enquanto lhe batiam, lhe mexiam, lhe arrancavam a blusa, e ela não podia pensar, só repetia não e não, calculando quanto podia resistir antes de esgotar as forças, sem saber que aquilo era só o começo, até que se sentiu desfalecer e os homens a deixaram tranquila, estendida no chão, por um tempo que lhe pareceu muito curto. Ouviu a voz de Garcia e adivinhou que eram as mãos dele ajudando-a a levantar-se, levando-a até uma cadeira, ajeitando-lhe a roupa, vestindo-lhe a blusa. - Ai, meu Deus! - disse. - Olha como te deixaram! Eu disse-te, Alba. Agora tenta acalmarte, vou dar-te uma chávena de café. Alba rebentou a chorar. O líquido morno reanimou-a, mas não lhe sentiu o sabor, porque o bebia misturado com sangue. Garcia segurava a chávena aproximando-a com cuidado, como um enfermeiro. - Queres fumar? - Quero ir tomar banho - disse ela, pronunciando cada sílaba com dificuldade através dos lábios inchados. - Com certeza, Alba. Vão levar-te a tomar banho e depois poderás descansar. Eu sou teu amigo, compreendo perfeitamente a tua situação. Estás apaixonada e é por isso que o proteges. Sei que não tens nada a ver com a guerrilha. Mas os rapazes não acreditam em mim se digo isso, não vão conformar-se até que lhes digas onde está Miguel. Na realidade já o têm cercado, sabem onde está, vão apanhá-lo, mas querem ter a certeza de que tu não tens nada a ver com a guerrilha, estás a perceber? Se o proteges, se te negas a falar, eles vão continuar a suspeitar de ti. Diz-lhes o que querem saber e, então, eu mesmo te levo a casa. Vais dizer, não é verdade? - Quero tomar banho - repetiu Alba. - Vejo que és casmurra, como o teu avô. Está bem. Vais tomar banho. Vou dar-te a oportunidade de pensar um pouco – disse Garcia. Levaram-na à casa de banho, onde teve que esquecer-se do homem que estava ao seu lado agarrando-a pelo braço. Depois levaram-na para a cela. Na pequena cela solitária da prisão tentou aclarar as ideias, mas estava atormentada pela dor da pancada, pela sede, pela venda apertada nas fontes, pelo ruído atroador do rádio, pelo terror dos passos que se aproximavam e pelo alivio quando eles se afastavam, pelos gritos e pelas ordens. Encolheu-se como um feto no chão e abandonou-se aos vários sofrimentos. Esteve assim várias horas, talvez dias. Por duas vezes, um homem foi tirá-la dali e guiou-a até uma latrina fétida, onde não conseguiu lavar-se porque não tinha água. Dava-lhe um minuto, punha-a na sanita com outra pessoa silenciosa e trôpega como ela. Não podia adivinhar se era outra mulher se era um homem. A princípio chorou, lamentando que o tio Nicolau não lhe tivesse dado um treino especial para suportar a humilhação, que lhe parecia pior que a dor, mas por fim resignou-se à sua própria imundície e deixou de pensar na insuportável necessidade de se lavar. Deram-lhe a comer milho tenro, um pedaço de frango e um pouco de gelado, que ela adivinhou pelo sabor, pelo cheiro, pela temperatura, e que devorou apressadamente com a mão, admirada por aquele jantar de luxo, inesperado naquele lugar. Depois soube que a comida para os prisioneiros daquele recinto vinha da nova sede do governo, que se tinha instalado num edifício improvisado, porque o antigo Palácio dos Presidentes não era mais que um montão de escombros. Tentou contar os dias passados desde a sua detenção mas a solidão, a escuridão e o medo baralharam-lhe o tempo e deslocaram-lhe o espaço, acreditava ver cavernas povoadas de monstros, imaginava que a tinham drogado e, por isso, sentia todos os ossos frouxos e as ideias loucas, tinha intenção de não comer nem beber, mas a fome e a sede eram mais fortes que a sua decisão. Perguntava a si própria por que razão o avô não tinha ido resgatá-la. Nos momentos de lucidez podia compreender que não era um sonho mau e que não estava ali por engano. Resolveu esquecer até o nome de Miguel. A terceira vez que a levaram onde estava Esteban Garcia, Alba estava mais preparada, porque através da parede da cela podia ouvir o que se passava na sala do lado, onde interrogavam prisioneiros, e não teve ilusões. Nem sequer fez por invocar os bosques dos seus amores. - Tivestes tempo para pensar, Alba. Agora vamos falar os dois calmamente, vais dizer-me onde está Miguel e assim sairemos disto rapidamente - disse Garcia. - Quero tomar banho - respondeu Alba. - Estou a ver que estás a gozar comigo - disse ele. – Sinto muito, mas aqui não podemos perder tempo. Alba não respondeu. - Tira a roupa! - ordenou Garcia com outra voz. Ela não obedeceu. Despiram-na com violência, arrancando-lhe as calças apesar dos seus pontapés. A recordação nítida da sua adolescência e do beijo de Garcia no jardim deram-lhe a força do ódio. Lutou contra ele, gritou, até que se cansaram de lhe bater e lhe deram uma curta trégua, que aproveitou para invocar os espíritos compreensivos da avó, para que a ajudassem a morrer. Mas ninguém veio em seu auxílio. Duas mãos levantaram-na, quatro deitaram-na numa tarimba metálica gelada, dura, cheia de porcas que lhe feriam as costas, ataram-lhe os tornozelos e os pulsos com correias de couro. - Pela última vez, Alba. Onde está Miguel? – perguntou Garcia. Ela negou silenciosamente. Tinham-lhe prendido a cabeça com outra correia. - Quando estiveres disposta a falar, levanta um dedo – disse ele. Alba ouviu outra voz. - Eu manejo a máquina - disse. E então ela sentiu a dor atroz que lhe percorreu o corpo e tomou completamente conta dela e que nunca, nos dias da sua vida, poderia esquecer. Afundou-se na escuridão. - Disse-lhes para terem cuidado com ela, seus cabrões! - ouviu a voz de Esteban Garcia, que chegava de muito longe, sentiu que lhe abriam as pálpebras, mas não viu nada mais que um resplendor difuso, sentiu a seguir uma picadela no braço e tornou a perder-se na inconsciência. Um século depois, Alba acordou molhada e despida. Não sabia se estava coberta de suor, de água ou de urina, não podia mover-se, não recordava nada, não sabia onde estava nem qual era a causa do mal-estar intenso que a tinha reduzido a um farrapo. Sentiu uma sede de deserto e pediu água. - Aguenta, companheira - disse alguém ao seu lado. - Aguenta até amanhã. Se beberes água, tens convulsões e podes morrer. Abriu os olhos. Não os tinha vendados. Um rosto vagamente familiar estava inclinado sobre ela, umas mãos taparam-na com uma manta. - Recordas-te de mim? Sou Ana Díaz. Fomos companheiras na Universidade. Não me reconheces? Alba negou com a cabeça, fechou os olhos e abandonou-se à doce ilusão da morte. Mas umas horas mais tarde despertou e ao mover-se sentiu que lhe doía tudo até à última fibra do corpo. - Em breve te sentirás melhor - disse uma mulher que lhe acariciava a cara e lhe afastava as madeixas de cabelo húmido que lhe tapavam os olhos. - Não te mexas e tenta relaxar-te. Eu estarei a teu lado, descansa. - Que se passou? - balbuciou Alba. - Deram-te forte, companheira - disse a outra com tristeza. - Quem és tu? - perguntou Alba. - Ana Díaz. Estou aqui há uma semana. Apanharam também o meu companheiro, mas ainda está vivo. Vejo-o uma vez por dia quando o levam a tomar banho. - Ana Díaz? - murmurou Alba. - Eu própria. Não éramos muito amigas na Universidade mas nunca é tarde para começar. A verdade é que a última pessoa que pensava encontrar aqui eras tu, condessa - disse com doçura de mulher. - Não fales, tenta dormir, para o tempo ser mais curto para ti. A memória há-de voltar-te a pouco e pouco. Foi por causa da electricidade. Mas Alba não conseguiu dormir, porque a porta da cela abriu-se e entrou um homem. - Põe-lhe a venda! - ordenou a Ana Díaz. - Por favor...! Não vê que está muito fraca. Deixe-a descansar um pouco... - Faz o que te digo! Ana inclinou-se sobre a tarimba e pôs-lhe a venda nos olhos. Tirou-lhe a manta e quis vesti-la, mas o guarda afastou-a com um empurrão, levantou a prisioneira pelos braços e sentou-a. Entrou outro para o ajudar e os dois levaram-na pendurada, porque não podia caminhar. Alba pensava que estava a morrer, se é que não estava já morta. Sentiu que avançava por um corredor onde o ruído dos passos era devolvido pelo eco. Sentiu uma mão na cara, levantando-lhe a cabeça. - Podem dar-lhe água. Levem-na e dêem-lhe outra injecção. Vejam se pode engolir um pouco de café e tragam-na – disse Garcia. - Vestimo-la, coronel? - Não. Alba esteve nas mãos de Garcia muito tempo. Poucos dias depois ele deu conta de que ela o tinha reconhecido, mas não abandonou a precaução de a manter com os olhos vendados, inclusivamente quando estavam sozinhos. Traziam e levavam diariamente novos prisioneiros. Alba ouvia os veículos, os gritos, o portão que se fechava e procurava contar os presos, mas era quase impossível. Ana Díaz calculava que havia à roda de duzentos. Garcia estava muito ocupado, mas não deixou passar um dia sem ver Alba, alternando a violência desesperada, com a comédia do bom amigo. Por vezes parecia sinceramente comovido e com a sua própria mão dava-lhe colheradas de sopa, mas no dia em que lhe enfiou a cabeça num balde cheio de excrementos, até ela desmaiar de nojo, Alba compreendeu que ele não queria averiguar o paradeiro de Miguel, mas sim vingar-se das ofensas que lhe tinham feito desde o nascimento e que tudo o que pudesse confessar não modificaria a sua sorte como prisioneira particular do coronel Garcia. Então saiu a pouco e pouco do círculo privado do seu terror e, o seu medo começou a diminuir e pôde sentir compaixão pelos outros, pelos que penduravam pelos braços, pelos recém-chegados, por aquele homem sobre quem passaram com uma camioneta por cima dos pés agrilhoados. Levaram todos os prisioneiros ao pátio, ao amanhecer, e obrigaram-nos a ver, porque isso era também um caso pessoal entre o coronel e o prisioneiro. Foi a primeira vez que Alba abriu os olhos fora da penumbra da cela, e a suave claridade da madrugada e o orvalho entre as pedras, onde se tinham juntado os charcos da chuva da noite, pareceram-lhe insuportavelmente luminosos. Arrastaram o homem, que não opôs resistência, nem se podia ter de pé, e deixaram-no no centro do pátio. Os guardas tinham a cara coberta com lenços, para que nunca pudessem ser reconhecidos no caso improvável das coisas mudarem. Alba fechou os olhos quando ouviu o motor da camioneta, mas não pôde fechar os ouvidos ao berro que lhe ficou a vibrar na memória para sempre. Ana Díaz ajudou-a a resistir durante o tempo que estiveram juntas. Era uma mulher invencível. Tinha suportado todas as brutalidades, tinham-na violado diante do companheiro, tinham-nos torturado juntos, mas ela não tinha perdido a capacidade do sorriso ou da esperança. Nem a perdeu quando a levaram para uma clínica secreta da polícia política, porque, por causa de um espancamento, perdeu a criança que esperava e começou a esvair-se em sangue. - Não importa, um dia terei outro - disse a Alba quando voltou à cela. Nessa noite, Alba ouviu-a chorar pela primeira vez, tapando a cara com o cobertor para afogar a tristeza. Aproximou-se dela, abraçou-a, embalou-a, limpou-lhe as lágrimas, disse-lhe todas as palavras ternas que pôde recordar, mas nessa noite não havia consolo para Ana Díaz, de modo que Alba limitou-se a aconchegá-la nos braços, aquecendo-a como a uma criança e desejando suportar ela própria aquela dor para lhe dar alívio. A manhã surpreendeu-as a dormir enroladas como dois animaizinhos. De dia esperavam ansiosamente o momento em que a longa fila de homens passasse para o banho. Iam com os olhos vendados, e para se guiarem cada um levava a mão no ombro do que seguia à frente, vigiados por guardas armados. Entre eles ia André. Pela minúscula janela gradeada da cela, elas podiam vê-los, tão perto que se pudessem estender a mão tê-los-iam tocado. Sempre que passavam, Ana e Alba cantavam com a força do desespero e de outras celas saíam vozes femininas. Então, os prisioneiros endireitavam-se, levantavam os ombros, viravam a cabeça na sua direcção e André sorria. Tinha a camisa rasgada e manchada de sangue seco. Um dos guardas deixou-se comover pelo hino das mulheres. Uma noite levou-lhes três cravos numa jarra de água, para ornamentarem a janela. De outra vez, foi dizer a Ana Díaz que precisava de uma voluntária para lavar a roupa de um preso e limpar-lhe a cela. Levou-a onde estava André e deixou-os sós por alguns minutos. Quando Ana Díaz regressou estava transfigurada e Alba não se atreveu a falar-lhe para não lhe interromper a felicidade. Um dia, o coronel Garcia deu por si a acariciar Alba como um apaixonado e a falar-lhe da sua infância no campo, quando a via passar ao longe, pela mão do avô, com os bibes engomados e o halo verde das suas tranças enquanto ele, descalço na lama, jurava a si mesmo que um dia lhe faria pagar caro a sua arrogância e se vingaria do seu maldito destino de bastardo. Rígida e ausente, nua e a tremer de asco e frio, Alba não o ouvia nem o sentia, mas aquela quebra na ânsia de a atormentar, soou ao coronel como uma campainha de alarme. Ordenou que pusessem Alba no canil e dispôs-se furiosamente a esquecê-la. O canil era uma cela pequena, fechada como um túmulo, sem ar, escura e gelada. Havia seis ao todo, construídas como lugar de castigo numa cisterna vazia. Eram ocupadas por períodos mais ou menos curtos, porque ninguém resistia muito tempo nelas, no máximo poucos dias, antes de começar a divagar, a perder a noção das coisas, o significado das palavras, e a angústia do tempo ou, simplesmente, começar a morrer. A princípio, encolhida na sua sepultura, sem poder sentar-se, nem deitar-se apesar do seu pequeno tamanho, Alba defendeuse contra a loucura. Na solidão, compreendeu quanto necessitava de Ana Díaz. Julgava ouvir pancadinhas imperceptíveis e longínquas, como se lhe mandassem mensagens em código de outras celas, mas logo deixou de lhes prestar atenção, porque verificou que toda a forma de comunicação era inútil. Abandonou-se, decidida a acabar o suplicio de uma vez, deixou de comer e só bebia um gole de água quando era vencida pela própria fraqueza. Tentou não respirar, não se mover e pôs-se à espera da morte com impaciência. Passou muito tempo. Assim, quando tinha conseguido quase o seu propósito, apareceu a avó Clara, a quem tinha invocado tantas vezes para a ajudar a morrer, com o argumento de que a graça não era morrer, porque isso chegaria de qualquer modo, mas sim sobreviver, o que era um milagre. Viu-a tal como sempre a tinha visto na sua infância, com a túnica de linho branco, as luvas de Inverno, o seu dulcíssimo sorriso desdentado e o brilho travesso dos olhos de avelã. Clara trouxe a ideia salvadora de escrever com o pensamento, sem lápis nem papel, para lhe manter o espírito ocupado, para se evadir do canil e viver. Sugeriu-lhe, também, que escrevesse o testemunho que um dia poderia servir para trazer à luz o terrível segredo que estava a viver, para que o mundo conhecesse o horror que se vivia paralelamente à existência agradável e ordenada daqueles que não queriam saber, dos que podiam ter a ilusão de uma vida normal, dos que podiam negar que flutuavam numa jangada num mar de lamentos, ignorando, apesar de todas as evidências, que a poucos quarteirões do seu mundo feliz estavam os outros, os que sobrevivem ou morrem no lado escuro. «Tens muito que fazer, por isso deixa de te lamentar, bebe água e começa a escrever», disse Clara à neta antes de desaparecer como tinha chegado. Alba tentou obedecer à avó, mas logo que começou a apontar com o pensamento, o canil encheu-se de personagens da sua história, que entraram atropelando-se e envolvendo-a nas suas anedotas, nos seus vícios e virtudes, esmagando os seus propósitos documentais e deitando por terra o seu testemunho, intoxicando-a, exigindo-lhe, apressando-lhe, e ela anotava à pressa, desesperada, porque à medida que escrevia uma nova página, ia-se apagando a anterior. Esta actividade mantinha-a ocupada. A princípio, perdia o fio com facilidade e esquecia na mesma medida em que recordava novos factos. A menor distracção ou um pouco mais de medo ou de dor, emaranhavam-lhe a história como um novelo. Mas logo inventou um código para recordar com ordem, e então pôde entrar no seu próprio relato tão profundamente que deixou de comer, de se coçar, de se cheirar, de se queixar, e chegou a vencer, uma por uma, as suas inúmeras dores. Constou que estava a morrer. Os guardas abriram o postigo do canil e tiraram-na sem nenhum esforço, porque estava muito magra. Levaram-na de novo ao coronel Garcia, que durante aqueles dias tinha renovado o ódio, mas Alba não o reconheceu. Estava para lá do seu poder. Por fora, o hotel Cristóbal Colón tinha o mesmo aspecto anódino de uma escola primária, tal como eu o recordava. Eu perdera a conta dos anos que tinham passado desde a última vez que ali estivera, e imaginei que podia vir receber-me o mesmo Mustafá de outros tempos, aquele negro azul, vestido como uma aparição oriental com a sua dupla fileira de dentes de chumbo e a sua cortesia de vizir, o único negro autêntico no pais, todos os outros eram pintados, como tinha asseverado Tránsito Soto. Mas não foi assim. O porteiro levou-me a um cubículo muito pequeno, apontou-me um assento e indicou-me uma senhora com ar triste e bonito de tia da província, fardada de azul e com gola branca engomada, que ao ver-me tão velho e fraco, teve um gesto de enfado. Tinha uma rosa vermelha na mão. - O cavalheiro vem sozinho? - perguntou. - Claro que venho só! - exclamei. A mulher passou-me a rosa e perguntou-me que quarto preferia. - É-me indiferente - respondi surpreendido. - Estão livres o Estábulo, o Templo e as Mil e Uma Noites. Qual quer? - As Mil e Uma Noites - disse ao acaso. Levou-me por um longo corredor assinalado com luzes verdes e flechas vermelhas. Apoiado na bengala, arrastando os pés, segui-a com dificuldade. Chegámos a um pequeno pátio onde se levantava uma mesquita em miniatura com absurdas ogivas de vidros coloridos. - É aqui. Se deseja beber alguma coisa, peça por telefone - informou. - Quero falar com Tránsito Soto. Foi para isso que vim - disse. - Sinto muito, mas a senhora não atende particulares. Só os fornecedores. - Eu tenho que falar com ela! Diga-lhe que sou o senador Trueba. Ela conhece-me. - Não recebe ninguém, já lhe disse - respondeu a mulher cruzando os braços. Levantei a bengala e disse-lhe que se dentro de dez minutos não aparecesse Tránsito Soto em pessoa, partiria os vidros e tudo o que estava dentro daquela caixa de Pandora. A da farda recuou espantada. Abriu a porta da mesquita e encontrei-me dentro de uma Alhambra de pacotilha. Uma escada curta de azulejos, coberta de falsos tapetes persas, levava a um quarto hexagonal com um tecto em cúpula, onde alguém tinha posto tudo o que pensava que existisse num harém da Arábia, sem ter lá estado nunca: almofadões de damasco, perfumadores de vidro, campainhas e toda a espécie de baratezas de bazar. Entre as colunas, multiplicadas até ao infinito por sábia disposição de espelhos, vi uma casa de banho de mosaico, maior que um dormitório com um grande tanque onde calculei que se podia lavar uma vaca e com maior razão se podiam refastelar dois amantes brincalhões. Não se parecia nada com o Cristóbal Colón que eu tinha conhecido. Sentei-me a custo na cama redonda, sentindo-me de repente muito cansado. Doíam-me os velhos ossos. Levantei os olhos e um espelho no tecto devolveume a imagem: um pobre corpo mirrado, um rosto triste de patriarca bíblico, sulcado de rugas amargas e os restos de uma melena branca. «Como o tempo passou!», suspirei. Tránsito Soto entrou sem bater. - Alegro-me de o ver, patrão - saudou como sempre. Tinha-se tornado urna senhora madura, magra, com um carrapito severo, ataviada com um vestido de lã, e duas voltas de soberbas pérolas no pescoço, majestosa, serena, com mais aspecto de concertista de piano que de dona de prostíbulo. Tive dificuldade em relacioná-la com a mulher de outros tempos, com uma serpente tatuada à roda do umbigo. Pus-me de pé para a cumprimentar e não consegui tratá-la por tu, como dantes. - Está com muito bom aspecto, Tránsito - disse, calculando que devia ter mais de sessenta e cinco anos. - Tenho passado bem, patrão. Recorda-se de que, quando nos conhecemos, eu lhe disse que um dia ia ser rica? – sorriu ela. - Alegro-me que o tenha conseguido. Sentámo-nos lado a lado na cama redonda. Tránsito serviu um conhaque para cada um e contou-me que a cooperativa de putas e maricas tinha sido um negócio estupendo durante dez longos anos, mas que os tempos tinham mudado e que tinham sido obrigados a dar-lhe outra volta, porque, por culpa da liberdade de costumes, do amor livre, da pílula e de outras inovações, já ninguém precisava de prostitutas, excepto os marinheiros e os velhos. «As meninas decentes deitam-se de borla, imagine-se a competência», disse ela. Explicou-me que a cooperativa começou a arruinar-se e que os sócios tiveram de ir trabalhar noutros ofícios melhor remunerados e até Mustafá partiu, de regresso à pátria. Então pensou que o que era preciso era um hotel de encontros, um sítio agradável para que os casais clandestinos pudessem fazer amor e onde um homem não tivesse vergonha de levar a noiva pela primeira vez. Nada de mulheres, essas traz o cliente. Ela própria o decorou, segundo os impulsos da sua fantasia, tendo em consideração o gosto da clientela e assim, graças à sua visão comercial, que a levou a criar um ambiente diferente em cada canto disponível, o hotel Cristóbal Colón transformou-se no paraíso das almas perdidas e dos amantes furtivos. Tránsito Soto fez salões franceses com móveis acolchoados, baias com feno fresco e cavalos de papelão que observavam os namorados com os seus imutáveis olhos de vidro pintado, cavernas pré-históricas, com estalactites e telefones forrados em pele de puma. - Visto que não veio fazer amor, patrão, vamos falar no meu escritório, para deixar este quarto para a clientela – disse Tránsito Soto. Pelo caminho, contou-me que depois do golpe a polícia política tinha arrasado o hotel por duas vezes cada vez que tiravam os casais da cama e os levavam na ponta da pistola até ao salão principal, encontravam um ou dois generais entre os clientes, e por isso deixaram de incomodar. Tinha muito boas relações com o novo governo, como tivera com os governos anteriores. Disse-me que o Cristóbal Colón era um negócio florescente e que todos os anos ela renovava algumas decorações, substituindo naufrágios em ilhas polinésicas por severos claustros de convento e baloiços barrocos por potros de tortura, segundo a moda, podendo introduzir muita coisa numa residência de proporções relativamente normais graças ao artificio dos espelhos e das luzes que podiam multiplicar o espaço, enganar o clima, criar o infinito e suspender o tempo. Chegámos ao seu escritório, decorado como uma cabina de aeronave, de onde dirigia a sua incrível organização com a eficiência de um banqueiro. Contou-me quantos lençóis se lavavam, quanto papel higiénico se gastava, quantos licores se consumiam, quantos ovos de codorniz se coziam diariamente - são afrodisíacos -, quanto pessoal era necessário e a quanto chegava a conta da luz, da água e do telefone, para manter a navegar aquele descomunal portaaviões de amores proibidos. - E agora, patrão, diga-me o que posso fazer por si – disse finalmente Tránsito Soto, acomodando-se na cadeira reclinável de piloto aéreo, enquanto brincava com as pérolas do colar. - Suponho que veio para que lhe pague o favor que lhe devo desde há cinquenta anos, não é verdade? Então eu, que tinha estado à espera que ela mo perguntasse, abri a torrente da minha ansiedade e contei-lhe tudo, sem esconder nada, sem uma só pausa, desde o principio até ao fim. Disse-lhe que Alba é a minha neta única, que eu tinha ficado só no mundo, que se me tinha mirrado o corpo e a alma, tal como Férula disse ao amaldiçoar-me, e a única coisa que me falta é morrer como um cão, que aquela neta de cabelo verde é última coisa que me resta, o único ser que realmente me importa, que por desgraça saiu idealista, um mal da família, é uma dessas pessoas destinadas a meter-se em problemas e a fazer-nos sofrer a nós, os que estamos ao pé, deu-lhe para andar a dar asilo a fugitivos nas embaixadas, fazia-o sem pensar, estou certo, sem dar conta que o país está em guerra, guerra contra o comunismo internacional ou contra o povo, já não se sabe, mas guerra no fim de contas, e que essas coisas são punidas por lei, mas Alba anda sempre na lua e não dá pelo perigo, não o faz por maldade, antes pelo contrário, fá-lo porque tem o coração destravado como a avó, que ainda anda a socorrer os pobres nas minhas costas, nos quartos abandonados da casa, a minha Clara clarividente, e qualquer tipo que chegue junto de Alba contando a história de que o perseguem, consegue que ela arrisque a pele para o ajudar, mesmo que seja totalmente desconhecido, eu já lhe disse, já a avisei muitas vezes de que podiam fazer-lhe uma armadilha e um dia ia acontecer que o suposto marxista era um agente da polícia política, mas ela não me ligou, nunca me ligou na vida, é mais casmurra que eu, mas mesmo que seja assim, dar asilo a um pobre diabo de vez em quando não é uma malfeitoria, não é algo tão grave que mereça que a levem presa, sem considerar que é minha neta, neta de um senador da República, membro proeminente do Partido Conservador, não podem fazer isso com alguém da minha própria família, na minha própria casa, porque então que diabo fica para os outros, se pessoas como nós caem assim, quer dizer que ninguém está a salvo, que não valeram de nada, mais de vinte anos no Congresso e ter todas as relações que tenho, eu conheço toda a gente neste país, pelo menos toda a gente importante, inclusivamente o general Hurtado, que é meu amigo pessoal, mas neste caso não me serviu de nada, nem sequer o cardeal me pôde ajudar a encontrar a minha neta, não é possível que ela desapareça como por magia, que a levem uma noite e eu não volte a saber nada dela, passei um mês à sua procura e a situação já me está a pôr louco, estas são as coisas que desprestigiam a Junta Militar no estrangeiro e dão azo a que as Nações Unidas comecem a foder-nos com os direitos humanos, eu ao principio não queria ouvir falar de mortos, de torturados, de desaparecidos, mas agora não posso continuar a pensar que são calúnias dos comunistas, se até os próprios gringos, que foram os primeiros a ajudar os militares e mandaram os seus pilotos de guerra para bombardear o Palácio dos Presidentes, estão agora escandalizados pela matança, e não é que eu esteja contra a repressão, compreendo que ao princípio é necessário ter firmeza para impor a ordem, mas alambazaramse, estão a exagerar as coisas e com a história da segurança interna e de acabar com os inimigos ideológicos, estão a acabar com toda a gente, ninguém pode estar de acordo com isso, nem eu próprio, que fui o primeiro a atirar penas de galinha aos cadetes e a ajudar o golpe, antes que os outros tivessem a ideia na cabeça, fui o primeiro a aplaudi-lo, estive presente no Te Deum da catedral, e por isso mesmo não posso aceitar que estejam a acontecer estas coisas na minha pátria, que desapareçam as pessoas, que levem a minha neta de casa à viva força e eu não possa impedi-lo, nunca se tinham passado aqui coisas assim, por isso, justamente por isso, é que tive de vir falar consigo, Tránsito, nunca imaginei que há cinquenta anos, quando você era uma rapariguinha raquítica do Farolito Rojo, que um dia teria que vir a suplicar-lhe de joelhos que me faça este favor, que me ajude a encontrar a minha neta, atrevome a pedir-lho porque sei que tem boas relações com o governo, falaram-me de si, estou certo que ninguém conhece melhor as pessoas importantes nas Forças Armadas, sei que você lhes organiza festas e pode chegar onde eu nunca teria acesso, por isso peço-lhe que faça alguma coisa pela minha neta antes que seja demasiado tarde, porque há semanas que estou sem dormir, corri todos os gabinetes, todos os Ministérios, todos os velhos amigos, sem que ninguém me pudesse ajudar, já não me querem receber, obrigam-me a ficar na sala de espera durante horas, a mim, que fiz tantos favores a essa mesma gente, por favor, Tránsito, peça-me o que quiser, ainda sou um homem rico, embora nos tempos do comunismo as coisas tivessem sido difíceis para mim, expropriaram-me a terra, você soube disso certamente, deve ter visto na televisão e nos jornais, foi um escândalo, aqueles camponeses ignorantes comeram os meus touros reprodutores e puseram as minhas éguas de corrida a puxar o arado e em menos de um ano Las Tres Marias estava em ruínas, mas agora eu enchi a herdade de tractores e estou a levantá-la de novo, tal como o fiz uma vez, quando era jovem, estou a fazer o mesmo agora que estou velho, mas não acabado, enquanto esses desgraçados que tinham o titulo de propriedade da minha propriedade, a minha, andam a morrer de fome, como uma cambada de pobres diabos, à procura de algum trabalhito miserável para subsistir, pobre gente, eles não tiveram a culpa, deixaram-se enganar pela maldita reforma agrária, no fundo eu já lhes perdoei e gostaria que voltassem a Las Tres Marias, cheguei mesmo a pôr anúncios nos jornais para os chamar, hão-de voltar um dia e não terei remédio senão estender-lhes a mão, são como crianças, bom, mas não é disso que lhe vim falar, Tránsito, não quero roubar-lhe o seu tempo, o importante é que tenho uma boa situação e os meus negócios vão de vento em popa, por isso posso dar-lhe tudo o que me pedir, qualquer coisa, contanto que encontre a minha neta Alba antes que um demente me continue a mandar mais dedos cortados ou comece a mandar orelhas e acabe por pôr-me maluco ou matar-me com um enfarte, desculpe-me que fique desta maneira, me tremam as mãos, estou muito nervoso, não posso explicar o que se passou, um pacote pelo correio e lá dentro só três dedos humanos, cortados rente, uma piada macabra que me traz recordações, mas essas recordações não têm nada a ver com Alba, a minha neta nem sequer era nascida na altura, sem dúvida eu tenho muitos inimigos, todos nos, os políticos, temos inimigos, não seria difícil haver um anormal disposto a chatear-me enviando-me dedos pelo correio, justamente no momento em que estou desesperado pela prisão de Alba, para me pôr ideias horríveis na cabeça, que se não fosse por estar no limite das minhas forças, depois de ter esgotado todos os recursos, não teria vindo incomodá-la a si, por favor, Tránsito, em nome da nossa velha amizade, tenha piedade de mim, sou um pobre velho destroçado, tenha piedade e procure a minha neta Alba antes que acabem por mandarma em pedacinhos pelo correio, solucei. Tránsito Soto chegou à posição que tem, entre outras coisas, porque soube pagar as suas dívidas. Suponho que usou o conhecimento do lado mais secreto dos homens que estão no poder, para me pagar os cinquenta pesos que lhe emprestei uma vez. Dois dias depois, chamou-me ao telefone. - Sou Tránsito Soto, patrão. Está satisfeito o seu pedido - disse. Epílogo Esta noite morreu o meu avô. Não morreu como um cão, como receava, mas calmamente nos meus braços, confundindo-me com Clara e por vezes com Rosa, sem dor, sem angústia, consciente e sereno, mais lúcido que nunca e feliz. Agora está estendido no veleiro de água mansa, sorridente e tranquilo, enquanto eu escrevo sobre a mesa de madeira que era da minha avó. Abri as cortinas de seda azul para que a manhã entre alegre neste quarto. Na gaiola antiga, junto da janela, há um canário novo, cantando e no centro do quarto vêem-se os olhos de vidro de Barrabás. O meu avô contou-me que Clara desmaiara no dia em que ele, para lhe agradar, colocou a pele do animal como tapete. Rimos até às lágrimas e decidimos ir à cave buscar os despojos do pobre Barrabás, soberbo na sua indefinível constituição biológica, apesar da passagem do tempo e do abandono e voltar a pô-lo no mesmo lugar onde meio século antes o pusera o meu avô, em homenagem à mulher que mais amou na vida. - Vamos deixá-lo aqui, que é onde sempre devia ter estado - disse. Cheguei a casa numa brilhante manhã de Inverno numa carroça puxada por um cavalo escanzelado. A rua, com a sua dupla fila de castanheiros centenários e as mansões senhoriais, parecia um cenário impróprio para aquele modesto veículo, mas quando este parou em frente da casa do meu avô encaixava muito bem com o estilo. A grande casa da esquina estava mais triste e velha do que podia recordar, absurda com as excentricidades arquitectónicas e as pretensões de estilo francês, com a fachada coberta de hera apodrecida. O jardim era um emaranhado de mato e quase todos as portadas estavam penduradas dos gonzos. O portão estava aberto como sempre. Toquei à campainha e passado um bocado, senti umas alpergatas que se aproximavam e uma criada desconhecida abriu-me a porta. Olhou-me sem me conhecer e senti no nariz o maravilhoso perfuma a madeira e a mofo da casa onde nasci. Os olhos encheram-se-me de lágrimas. Corri à biblioteca, pressentindo que o avô estava à minha espera onde sempre se costumava sentar, encolhido numa poltrona. Admirei-me de o ver tão velho, tão minúsculo e trémulo, mantendo do passado apenas a branca melena leonina e a pesada bengala de prata. Abraçamo-nos estreitamente por muito tempo, sussurrando avô, Alba, Alba, avô, beijámo-nos e quando ele viu a minha mão, rebentou a chorar, a dizer maldições e a dar bengaladas nos móveis, como fazia dantes, e eu ri-me porque afinal não estava tão velho e acabado como me parecera a princípio. Nesse mesmo dia, o avô quis que saíssemos do país. Tinha medo por minha causa. Mas expliquei-lhe que não podia ir-me embora, porque longe desta terra eu seria como as árvores que se cortam para o Natal, esses pobres pinheiros que duram algum tempo e morrem depois. - Não sou tonto, Alba - disse, olhando-me fixamente. – A verdadeira razão por que queres ficar é Miguel, não é verdade? Tive um sobressalto. Nunca Ihe tinha falado em Miguel. - Desde que o conheci, soube que não ia poder tirar-te daqui, minha filhinha - disse com tristeza. - Conheceste-o? Está vivo, avô? - sacudi-o, agarrando-o pela roupa. - A semana passada ainda estava, quando nos vimos pela última vez. Contou-me que depois de me terem prendido, Miguel apareceu uma noite na grande casa da esquina. Esteve quase a dar-lhe uma apoplexia de susto, mas em poucos minutos, compreendeu que os dois tinham uma meta comum: libertar-me. Depois, Miguel voltou frequentemente para o ver, fazia-lhe companhia e juntavam os seus esforços para me procurar. Foi Miguel quem teve a ideia de ir falar com Tránsito Soto, ao avô isso nunca teria ocorrido. - Acredite-me, senhor. Eu sei quem tem o poder neste país. A minha gente está infiltrada em todos os lados. Se há alguém que possa ajudar Alba neste momento, essa pessoa é Tránsito Soto - assegurou-lhe. - Se conseguirmos tirá-la das garras da polícia política, meu filho, terá de sair daqui. Vão os dois. Posso conseguir-vos salvo-condutos e não vos faltará dinheiro - ofereceu o avô. Mas Miguel olhou-o como se ele fosse um velhinho sem tino e começou a explicar-lhe que tinha uma missão a cumprir e não podia fugir assim. - Tive de resignar-me à ideia de que ficarás aqui, apesar de tudo - disse o avô abraçandome. - E agora conta-me tudo. Quero saber até ao último pormenor. De maneira que eu contei tudo. Disse-lhe que depois que a mão infectou, levaram-me para uma clínica secreta para onde mandavam os prisioneiros que não lhes interessava deixar morrer. Lá, atendeu-me um médico alto, de maneiras elegantes, que parecia odiar-me tanto como o coronel Garcia e se negava a dar-me calmantes. Aproveitava cada curativo para me expor a sua teoria pessoal a respeito da forma de acabar com o comunismo no país e, se possível, no mundo. À parte isso, deixava-me em paz. Pela primeira vez em várias semanas tinha lençóis limpos, comida suficiente e luz natural. Era Rojas quem me tratava, um enfermeiro de tronco maciço e cara redonda, vestido com uma bata azul celeste sempre suja e extremamente bondoso. Dava-me de comer na boca, contava-me intermináveis histórias de longínquos desafios de futebol disputados entre equipas que eu nunca tinha ouvido nomear e conseguia calmantes para me injectar às escondidas, até conseguir fazer parar o meu delírio. Rojas tinha assistido nessa clínica a um desfile interminável de desgraçados. Tinha verificado que na sua maioria não eram nem assassinos nem traidores à pátria, por isso tratava bem os prisioneiros. Muitas vezes acabava de curar alguém e levavam-lho de novo. «Isto é como encher o mar de areia», dizia com tristeza. Soube que alguns lhe pediram para os ajudar a morrer e, pelo menos num caso, julgo que o fez. Rojas tomava nota rigorosamente dos que entravam e saíam e podia recordar-se, sem hesitar, dos nomes, das datas e das circunstâncias. Jurou-me que nunca tinha ouvido falar de Miguel e isso devolveu-me a coragem para continuar a viver, mesmo que por vezes caísse no abismo negro da depressão e começasse a repetir a cantilena de que queria morrer. Ele falou-me de Amanda. Prenderam-na ao mesmo tempo que a mim. Quando a levaram a Rojas, já não havia nada a fazer. Morreu sem denunciar o irmão, cumprindo a promessa que lhe fizera muito tempo atrás, no dia em que o levou à escola pela primeira vez. O único consolo foi ter sido tudo mais rápido do que eles tinham desejado, porque o seu organismo estava muito debilitado pelas drogas e pela infinita desolação que a morte de Jaime lhe deixou. Rojas tratou de mim até baixar a febre. A minha mão começou a cicatrizar e a voltar-me a razão, e então acabaram-se-lhe os pretextos para continuar a reterme; mas não me mandaram voltar para as mãos de Esteban Garcia, como eu temia. Suponho que nesse momento actuou a influência benéfica da mulher do colar de pérolas a quem fui visitar, com o avô, para lhe agradecer ter-me salvo a vida. Quatro homens foram buscar-me de noite. Rojas acordou-me, ajudou-me a vestir e desejou-me boa sorte. Beijei-o, agradecida. - Adeus, menina! Mude o penso, não o molhe e se voltar a febre é porque se infectou outra vez - disse-me da porta. Levaram-me para uma cela estreita onde passei o resto da noite sentada numa cadeira. No dia seguinte, transferiram-me para um campo de concentração para mulheres. Nunca esquecerei quando me tiraram a venda dos olhos e me encontrei num pátio quadrado e luminoso, rodeada de mulheres que cantavam, para mim, o Hino à Alegria. A minha amiga Ana Díaz estava entre elas e correu a abraçar-me. Instalaram-me imediatamente num beliche e deram-me a conhecer as regras da comunidade e as minhas responsabilidades. - Até que te cures não tens de lavar nem coser, mas tens de cuidar das crianças - disseram-me. Eu tinha resistido ao inferno com certa integridade, mas quando me senti acompanhada, quebrei. A menor palavra de carinho provocava-me uma crise de choro, passava a noite com os olhos abertos na escuridão no meio da promiscuidade das mulheres, que faziam turnos para cuidar de mim, acordadas, sem nunca me deixar sozinha. Ajudaram-me quando as más recordações começavam a atormentar-me ou me aparecia pela frente o coronel Garcia mergulhando-me no terror, ou quando Miguel me ficava preso num soluço. - Não penses em Miguel - diziam-me, insistiam. - Não se deve pensar nos entes queridos nem no mundo que existe para lá destes muros. É a única maneira de sobreviver. Ana Díaz conseguiu um caderno escolar e ofereceu-mo. - É para escreveres, para veres se tiras de dentro de ti o que está podre, se melhoras de uma vez e cantas connosco e nos ajudas a coser - disse-me. Mostrei-lhe a mão e neguei com a cabeça, mas ela pôs-me o lápis na outra mão e disseme que escrevesse com a esquerda. Pouco a pouco, comecei a fazê-lo. Tentei ordenar a história que começara no canil. As minhas companheiras ajudaram-me quando a paciência me faltava e o lápis me tremia na mão. Em certas ocasiões, atirava tudo para longe, mas em seguida apanhava o caderno, endireitava-o, arrependida, porque não sabia quando poderia conseguir outro. Outras vezes acordava triste e cheia de pressentimentos, virava-me para a parede e não queria falar com ninguém, mas elas não me deixavam, sacudiam-me, obrigavamme a trabalhar, a contar histórias às crianças. Mudavam-me a ligadura com cuidado e punhamme o papel na frente. « Se quiseres conto-te o meu caso, para o escreveres», diziam-me, riam-se, gracejavam, alegando que todos os casos eram iguais e que era melhor escrever histórias de amor porque isso agradava a toda a gente. Também me obrigavam a comer. Repartiam as rações com inteira justiça, a cada qual segundo a sua necessidade e a mim davam-me um pouco mais porque diziam que eu estava só com a pele e o osso e dessa maneira nem o homem mais necessitado iria olhar para mim. Eu estremecia, mas Ana Díaz lembrava-me que eu não era a única mulher violada e devia esquecer isso, como tantas outras coisas. As mulheres passavam o dia a cantar em coro. Os carabineiros batiam na parede. - Calem-se, suas putas! - Façam-nos calar vocês, se puderem, seus cabrões, a ver se se atrevem! - E continuavam a cantar mais forte e eles não entravam porque tinham aprendido que não se pode evitar o inevitável. Tentei descrever os pequenos acontecimentos da secção de mulheres, que tinham prendido a irmã do Presidente, que nos tiraram os cigarros, que tinham chegado novas prisioneiras, que Adriana tivera outro dos seus ataques e se tinha atirado aos filhos para os matar, que tivemos que lhos tirar das mãos e me sentei com um menino em cada braço, para lhes contar as histórias mágicas dos baús encantados do tio Marcos, até que adormeceram, enquanto eu pensava no destino daquelas crianças, crescendo naquele lugar, com a mãe transtornada, criadas por outras mães desconhecidas que não tinham perdido a voz para uma canção de embalar, nem o gesto para um carinho e eu perguntava a mim própria, escrevia, de que maneira os filhos de Adriana poderiam restituir a canção e o gesto aos filhos ou aos netos daquelas mesmas mulheres que os acarinhavam. Estive no campo de concentração poucos dias. Numa quarta-feira à tarde os carabineiros foram buscar-me. Tive um momento de pânico, pensando que me levariam de novo a Esteban Garcia, mas as minhas companheiras disseram-me que se eles usavam uniforme não eram da polícia política e isso tranquilizou-me um pouco. Deixei-lhes o meu colete de lã, para o desman-charem e fazerem qualquer coisa quente para os meninos de Adriana e dei-lhes todo o dinheiro que tinha quando me detiveram e que, com a escrupulosa honestidade que têm os militares para o transcendente, me tinham devolvido. Meti o caderno nas calças e abracei-as a todas, uma por uma. A última coisa que ouvi ao sair foi o coro das minhas companheiras cantando para me dar animo, tal como faziam com todas as prisioneiras que chegavam ou deixavam o acampamento. Eu ia a chorar. Tinha sido feliz ali. Contei ao avô que me tinham levado num carro celular com os olhos vendados, durante o toque de recolher. Tremia tanto que ouvia o bater dos dentes. Um dos homens que estava comigo na parte traseira do veiculo, pôs-me um caramelo na mão e deu-me umas palmadinhas no ombro. - Não se preocupe, menina. Não lhe vai acontecer nada. Vamos soltá-la e dentro de algumas horas estará com a sua família - disse num murmúrio. Deixaram-me numa lixeira perto do Bairro da Misericórdia. O mesmo que me deu o doce ajudou-me a descer. - Cuidado com o toque de recolher - segredou-me ao ouvido. - Não se mova até amanhecer. Ouvi um motor e pensei que iam esmagar-me e que depois aparecia na imprensa que eu tinha sido atropelada num acidente de trânsito, mas o carro afastou-se sem me tocar. Esperei algum tempo, paralisada de frio e de medo, até que por fim resolvi tirar a venda para ver onde me encontrava. Olhei à volta. Era um sítio baldio, um descampado cheio de lixo onde corriam ratazanas por entre desperdícios. Brilhava uma lua ténue que me permitiu ver ao longe o perfil de um miserável bairro de cartão, zinco e tábuas. Compreendi que devia respeitar a recomendação do guarda e ficar ali até amanhecer. Teria passado a noite na lixeira, se não chega um rapazinho agachado nas sombras e me faz sinais em segredo. Como já não tinha muito a perder, caminhei na sua direcção, cambaleando. Ao aproximar-me, vi a sua carinha ansiosa. Deitou-me uma manta pelos ombros, pegou-me na mão e levou-me para o bairro sem dizer palavra. Caminhámos agachados, evitando a rua e os poucos candeeiros acesos, alguns cães ladraram, mas ninguém assomou para saber o que era. Atravessámos um pátio de terra onde umas roupas calam como pendões presas a um arame e entramos numa barraca desconjuntada como todas as outras ali. Dentro havia uma única lâmpada iluminando tristemente o interior. Comoveu-me a extrema pobreza: os únicos móveis eram uma mesa de pinho, duas cadeiras toscas e uma cama onde dormiam várias crianças amontoadas. Veio receber-me uma mulher baixa, de pele escura, com as pernas atravessadas de varizes e os olhos afundados numa rede de rugas bondosas, que não conseguiam dar-lhe um aspecto de velhice. Sorriu e vi que lhe faltavam alguns dentes. Aproximou-se e ajeitou-me a manta, com um gesto rude e tímido que substituiu o abraço que não se atreveu a dar-me. - Vou dar-lhe um chazinho. Não tenho açúcar mas vai-lhe fazer bem tomar qualquer coisa quente - disse. Contou-me que tinham ouvido o carro e sabiam o que significava um veículo circulando de noite durante o toque de recolher naqueles ermos. Esperaram até ficar certos de que se tinha ido embora e depois o menino saiu para ver o que tinham deixado. Pensavam encontrar um morto. - Às vezes vêm atirar-nos para aqui um fuzilado para a gente ganhar medo - explicou-me. Ficámos a conversar o resto da noite. Era uma daquelas mulheres estóicas e práticas do nosso país, que têm um filho de cada homem que passa pelas suas vidas e que além disso recolhem no seu lar as crianças que outros abandonam, os parentes mais pobres e qualquer pessoa que necessite de uma mãe, uma irmã, uma tia, mulheres que são a trave mestra de muitas vidas alheias, que criam filhos para os verem ir embora depois e que vêem também partir os seus homens, sem um queixume, porque têm outras coisas mais urgentes para fazer. Pareceu-me igual a tantas outras que conheci nos refeitórios populares, no hospital do meu tio Jaime, na casa do vigário onde iam perguntar pelos seus desaparecidos, na morgue onde iam buscar os seus mortos. Disse-lhe que se tinha arriscado muito ao ajudar-me, e ela sorriu. Então, eu soube que o coronel Garcia, e outros como ele, têm os seus dias contados porque não conseguiram destruir o espírito dessas mulheres. De manhã, acompanhou-me a casa de um compadre que tinha uma carroça de aluguer com um cavalo. Pediu-lhe que me trouxesse a casa e foi assim que cheguei aqui. Pelo caminho, pude ver a cidade nos seus terríveis contrastes, as barracas cercadas por tapumes para dar a ilusão de não existirem, o centro compacto e cinzento, e o Bairro Alto, com os jardins ingleses, os parques, os arranha-céus de vidro e os meninos louros passeando de bicicleta. Até os cães me pareceram felizes, tudo em ordem, tudo limpo, tudo tranquilo e aquela sólida paz das consciências sem memória. Este bairro é como um outro país. O avô ouviu-me com tristeza. Acabava de desmoronar-se um mundo que ele tinha acreditado ser bom. - Enquanto estivermos aqui à espera de Miguel, vamos arranjar um bocado esta casa - disse por fim. Assim fizemos. A principio passamos o dia na biblioteca, inquietos, pensando que poderiam voltar a levar-me outra vez para Garcia, mas depois decidimos que o pior é ter medo do medo, como dizia o meu tio Nicolau, e que havia que ocupar a casa por inteiro e começar a fazer uma vida normal. O meu avô contratou uma empresa especializada que a percorreu desde o telhado até à cave, passando com máquinas polidoras, limpando vidros, pintando e desinfectando, até que ficou habitável. Meia dúzia de jardineiros e um tractor acabaram com o matagal, trouxeram relva enrolada como um tapete, um invento prodigioso dos gringos, e em menos de uma semana tínhamos até álamos crescidos, a água tinha voltado a brotar nas fontes cantantes e mais uma vez se levantaram, arrogantes, as estátuas do Olimpo, limpas finalmente de tanta caca de pombo e tanto esquecimento. Fomos juntos comprar pássaros para as gaiolas que estavam vazias desde que a minha avó, pressentindo a morte, lhes abriu as portas. Pus flores frescas nas jarras e bandejas com fruta sobre as mesas, como no tempo dos espíritos e o ar impregnou-se com o seu aroma. Depois demos o braço, o meu avô e eu, e percorremos a casa, parando em cada lugar para recordar o passado e saudar os imperceptíveis fantasmas de outras épocas, que apesar de tantos altos e baixos, persistem nos seus postos. O meu avô teve a ideia de escrevermos esta história. - Assim poderás levar as raízes contigo se algum dia tiveres de ir embora daqui, filhinha - disse. Desenterrámos dos cantos secretos e esquecidos, os velhos álbuns e tenho aqui, sobre a mesa da minha avó, um montão de retratos: a bela Rosa junto de um baloiço descolorido, a minha mãe e Pedro Tercero Garcia aos quatro anos, a dar milho às galinhas no pátio de Las Tres Marias, o meu avô quando era jovem e media um metro e oitenta, prova irrefutável de que se cumpriu a maldição de Férula e de que se lhe foi mirrando o corpo na mesma medida em que se lhe encolheu a alma, os meus tios Jaime e Nicolau, um, taciturno e sombrio, gigantesco e vulnerável, e o outro, delgado e gracioso, volátil e sorridente, também a Ama e os bisavós del Valle, antes de morrerem no acidente, enfim, todos menos o nobre Jean de Satigny, de quem não há nenhum testemunho científico e de cuja existência cheguei a duvidar. Comecei a escrever com a ajuda do meu avô, cuja memória permaneceu intacta até ao último instante dos seus noventa anos. Com o seu punho e letra escreveu várias páginas e quando considerou que tinha dito tudo, deitou-se na cama de Clara. Eu sentei-me a seu lado, à espera com ele, e a morte não tardou a chegar-lhe suavemente, apanhando-o no sono. Talvez sonhasse que era a sua mulher que lhe acariciava a mão e o beijava na testa, porque, nos últimos dias, ela não o abandonou nem um instante, seguia-o pela casa, espreitava-lhe por cima do ombro quando lia na biblioteca e deitava-se com ele de noite, com a formosa cabeça coroada de caracóis, apoiada no seu ombro. A princípio era um halo misterioso, mas à medida que o meu avô foi perdendo para sempre a raiva que o atormentou durante toda a existência, ela apareceu tal como era nos seus melhores tempos, rindo com todos os dentes e alvoroçando os espíritos com o seu voo fugaz. Também nos ajudou a escrever e, graças à sua presença, Esteban Trueba pôde morrer feliz murmurando o seu nome, Clara, claríssima, clarividente. No canil, escrevi pensando que um dia teria o coronel Garcia vencido na minha frente e poderia vingar todos os que têm de ser vingados. Mas agora duvido do meu ódio. Em poucas semanas, desde que estou nesta casa, parece ter-se diluído, ter perdido os contornos. Suspeito que tudo o que aconteceu não é fortuito, mas que corresponde a um destino traçado antes do meu nascimento e que Esteban Garcia é parte desse desenho. É um traço rude e torcido, mas nenhuma pincelada é inútil. No dia em que o meu avô derrubou nos matagais do rio a sua avó, Pancha Garcia, acrescentou outro degrau a uma cadeia de factos que se deviam cumprir. Depois, o neto da mulher violada repete o gesto com a neta do violador e dentro de quarenta anos, talvez o meu neto viole a sua nas matas do rio e assim, pelos séculos vindouros, numa história infindável de dor, de sangue e amor. No canil, tive a ideia de que estava a fazer um quebra-cabeças em que cada peça tem uma posição precisa. Antes de as colocar, a todas, parecia-me incompreensível, mas estava certa de que se o conseguisse terminar, daria um sentido a cada uma e o resultado seria harmonioso. Cada peça tem uma razão de ser tal como é, inclusivamente o coronel Garcia. Em alguns momentos tenho a impressão de que já vivi isto e que já escrevi estas mesmas palavras, mas compreendo que não sou eu, mas outra mulher, que escreveu nos seus cadernos para que eu viesse a servir-me deles. Escrevo, ela escreveu, que a memória é frágil e o transito de uma vida é muito breve e sucede tudo tão depressa que não conseguimos ver a relação entre os acontecimentos, não podemos medir a consequência dos actos, acreditamos na ficção do tempo, no presente, no passado e no futuro, mas também pode ser que tudo aconteça simultaneamente, como diziam as irmãs Mora, que eram capazes de ver no espaço os espíritos de todas as épocas. Por isso, a minha avó Clara escrevia nos seus cadernos para ver as coisas na sua dimensão real e para enganar a má memória. E agora procuro o meu ódio e não consigo encontrá-lo. Sinto que se apaga na medida em que explico a mim própria a presença do coronel Garcia e de outros como ele, que compreendo o meu avô e tomo conhecimento das coisas através dos cadernos de Clara, das cartas da minha mãe, dos livros da administração de Las Tres Marias e de tantos outros documentos que estão agora sobre a mesa, ao alcance da mão. Ser-me-á muito difícil vingar todos os que têm de ser vingados, porque a minha vingança não seria mais que outra parte do mesmo ritual inexorável. Quero pensar que o meu ofício é a vida e que a minha missão não é prolongar o ódio, mas apenas encher estas páginas enquanto espero o regresso de Miguel, enquanto enterro o meu avô que descansa agora a meu lado neste quarto, enquanto aguardo que cheguem tempos melhores, gerando a criança que trago no ventre, filha de tantas violações ou talvez filha de Miguel, mas sobretudo minha filha. A minha avó escreveu durante cinquenta anos nos seus cadernos de anotar a vida. Guardados por alguns espíritos cúmplices, salvaram-se por milagre da pira infame onde morreram tantos outros papéis da família. Tenho-os aqui, a meus pés, atados com fitas de cores, separados por acontecimentos e não por ordem cronológica, tal como ela os deixou antes de se ir embora. Clara escreveu-os para que me servissem agora para resgatar as coisas do passado e sobreviver ao meu próprio espanto. O primeiro é um caderno de delicada caligrafia infantil. Começa assim «Barrabás chegou à família por via marítima...»

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